Sexta-feira, 30 de Julho de 2010
Manuela Degerine
Capítulo LXIV
Décima sétima etapa: de Vilarinho a Barcelos
Após o dilúvio da madrugada, os caminhos continuam alagados. Portanto, novidade do dia: arrumei os crocs. Impossibilitada de usar este imaterial calçado, interroguei-me, algo inquieta, enquanto redobrava o nó dos atacadores, que parte dos vinte e oito quilómetros caminharia com as botas. Talvez poucos metros...
Se não as aguentar, abandono a caminhada, pois será insensato, com feridas nos pés, enfiá-los em lama e águas sujas. No entanto, uma vez saída de Vilarinho, até a desistência se complica, por não haver transportes públicos. Restar-me-á pedir boleia – um recurso do qual, por razões de segurança, não convém abusar.
Sempre que, excepcionalmente, recorri a esta solução, conheci pessoas com as quais, de outra maneira, nunca teria contactado. Quase todos dispomos, mesmo vivendo numa capital, de um círculo de relações homogéneo e eu, tanto em Lisboa, como em Paris, convivo com pintores, escritores, doutores, seres únicos e preciosos – os meus amigos. No entanto também me interessa ouvir os outros, aqueles cujos trabalhos eu não imaginava de maneira concreta: transportar – e descarregar – papel para reciclagem, desenhar barras sinaléticas nas estradas, levar água às vacas nos prados... Estes condutores, capazes de parar, de levar uma desconhecida, contaram-me, nos limites de um trajecto, as suas ocupações e preocupações, as suas vidas familiares, os seus sonhados projectos; tais conversas, algumas muito curtas, outras de uma ou duas horas, representam contributos decisivos para o que hoje sou – e ensinaram-me mais do que a maioria dos professores na Faculdade de Letras de Lisboa. (E no entanto tive boa formação universitária.)
Consciente dos riscos de um mau encontro, reservo contudo a boleia para circunstâncias excepcionais. Na verdade... Uma mulher prudente não partiria agora para Bagunte.
Estou a vê-la... Entra no café e, embora pareça só, o dono não se surpreende, por cada dia atender, às mesmas horas, gente com mochila e bizarros costumes. Todavia esta mulher encomenda em português um galão e inquire a que horas passa a camioneta de Vila do Conde. Aqui ele mira-a com mais atenção: de manhã os estrangeiros costumam prosseguir a pé e só à tarde, quando o abrigo se enche, buscam meios de transporte colectivo.
- É portuguesa...
- Sou.
- Não vai para Santiago?
- Ia... Mas tenho várias bolhas, não posso calçar as botas, mais vale regressar a casa.
- Vem a pé de onde?
- Do Porto.
A Mulher Prudente não pode vir de Lisboa. Se vem de Lisboa, abandone ou não a caminhada em Vilarinho, sem ser imprudente, opta todavia por – em certas circunstâncias – correr alguns riscos. Já o leitor tirou as lógicas conclusões: não sou esta mulher. Por isso – agora parto. (Descubro-me como oximoro ambulante: a ousada prudência e a cautela aventurosa são a minha especialidade.)
É domingo. Seis e meia da manhã. Vejo um céu carregado de cinzento – convém aproveitar enquanto as nuvens hesitam. Sem dúvida, em alguns lugares, a tromba de água arrastou pedras, criou torrentes... Será possível prosseguir? E se de súbito algum temporal transformar em ribeira o trilho onde me encontro? Ocorrem-me imagens de telejornal, pontes derruídas, carros arrastados, casas demolidas, ravinas derrocadas, árvores arrancadas, em plena Europa, alguns em Portugal, até em lugares por onde passo: perto de Queluz, morreu uma mulher, dentro de um carro, levada pelas águas, num percurso quotidiano.
O meu roteiro indica um atalho através da mata. Desta vez, por causa da lama e destes receios, prefiro caminhar à beira da estrada – agora não há carros.
É de manhã, levo as botas calçadas: sinto a mochila leve e caminho com gosto. Devoro uma sandes. Depois, sentindo ainda fome, vou trincando nozes, uma barra, uma banana... Conservo um apetite de ogre. Bom sinal.
Cai-me, ora na cara, ora nas mãos, de vez em quando, uma gota de chuva.