Segunda-feira, 31 de Maio de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo V

Etapa 2, de Alverca à Azambuja


Segunda parte: Azambuja

Aí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, asseadas e com ar de conforto as suas casas.

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra

O que farás, leitor aventureiro, se a imprudência te conduzir a este extremo? Após um balanço muito rápido, já que a solução é urgente, eu concluo que me não resta outro recurso: peço boleia. Parece um risco mas, comparado com os camiões, um risco sensato. Estendo o polegar, três minutos depois pára um carro, vejo um rapaz com aspecto correcto, pergunto se vai para a Azambuja – ele chama-se Dmytro e tem os olhos verdes. Oferece-me uma água neste café da Azambuja.

Almeida Garrett dedica o terceiro capítulo das suas Viagens à descrição do café, que não pode ser clássica, por estar fora de moda, devera ser romântica, o que não convém, por o romantismo de 1843 não ser verosímil, invoca por isso a fé de Boileau: a verdade. Nada, nada, verdade e mais verdade. Encontro-me aqui em simétrica posição. Também devera, seguindo a elegância do meu tempo, pôr aqui um rap, espalhar seringas no chão, convidar traficantes guest star, iá, lançar tags nas paredes, animar tudo com palavrões... Ficava o café da Azambuja digno do CCB. Todavia... Na verdade quase nada o distingue, nem sequer o mau gosto, da maioria dos cafés de Lisboa. Demorei eu tanto para aqui chegar... Andei tantos quilómetros a pé... Corri tantos riscos... Ficam os leitores desiludidos? Eu também. Bebo uma Água das Pedras com a rodela de limão. Para me consolar. Sabe-me bem. Única particularidade: há moscas. Moscas que picam e que ninguém consegue enxotar.


Abrigo-me no estereótipo do peregrino, conto a Dmytro que vou para Fátima, ele não me acha peregrina como as outras, faço perguntas para disfarçar a mentira, ele explica como vive na minha terra, a brutalidade dos patrões, a diferença entre o salário prometido e o salário pago, a hostilidade audível, embora intermitente, volta para a tua terra; os portugueses parecem-lhe mais individualistas do que os ucranianos. Percebo, por detrás do que ele conta, desequilíbrios da sociedade portuguesa, os milhares de licenciados sem emprego, a falta de mão-de-obra qualificada. Os ucranianos trabalham em Portugal com os mais rudes e ignorantes: isto deve dar uma estranha perspectiva dos portugueses. Almeida Garrett queixava-se de viver num tempo de barões, eu vivo no dos construtores, dos empresários, netos bastardos daqueles; estas palavras ganharam sentido pejorativo e sabemos todos porquê. Até hoje eu só associava o Carregado à primeira linha de caminho de ferro, aquela cuja construção Almeida Garrett objurgava, nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar, agora a esta imagem juntaram-se, por um lado, os esgotos espessos de mau-cheiro, os monstros denominados camiões e, por outro, a gentileza séria de um ucraniano.

Almeida Garrett criticava um progresso que endividava o país e ameaçava sete séculos de cultura – hoje trata-se da sobrevivência física neste espaço. Uma sociedade sem peões é uma sociedade degradada de múltiplos pontos de vista, mais poluída, mais violenta, menos solidária: uma sociedade na qual não apetece viver. Oiço os leitores inquirirem se o meu ideal de vida são as viagens a pé... Não: mas parecem-me um indicador fiável. Claro que, na azáfama de todos os dias, eu apanho o comboio, apanho o metro, apanho autocarros, apanho táxis, apanho aviões – vivo no século XXI. Todavia, para neste século continuarmos a viver, é urgente modificar alguns dos nossos hábitos e corrigir muitos dos nossos erros. Os portugueses circulam de carro porque os transportes públicos são insuficientes, porque as autarquias não lhes preservam espaço para a caminhada; e, quando falo de caminhada, não me refiro a cem metros em qualquer parque mas à possibilidade de ir a pé trabalhar, fazer compras ou acompanhar os filhos – à vida quotidiana. Nas cidades portuguesas que eu conheço não há passeios, excepto nos centros, perto da câmara ou da junta; e, mesmo quando os há, têm carros estacionados, o peão é obrigado a fazer ziguezagues, subir e descer do passeio, expondo-se a ser atropelado. As consequências são múltiplas, passam pela obesidade da população e chegam à monomania da rádio, a única do mundo que quase só fala de trânsito: alma doente num corpo doente.

As gerações que os antecederam transmitiram aos nossos pais a região de Lisboa, que agora atravesso, semelhante à que Almeida Garrett conheceu – em menos de cinquenta anos tornou-se uma lixeira, águas fedorentas, ares envenenados, campos cobertos de lixo. Transmitiremos isto às gerações futuras. Não nos podemos orgulhar deste progresso.

Informaram-me que os bombeiros voluntários dão abrigo aos peregrinos jacobeus; quero saber em que condições. O acolhimento é franco e caloroso. Mostram-me a sala de festas onde se encontram vinte e um colchões dispostos em três pilhas. Limpos. Indicam-me uma casa de banho. Igualmente limpa. Para tomar duche cumpre avisar, por os duches se situarem numa camarata masculina. Coloco o saco-cama em cima da pilha mais baixa de colchões, ponho no caixote as embalagens dos biscoitos e chocolates que, ao longo do dia, fui comendo, vou à casa de banho lavar a mochila que, por eu ter transpirado litros de suor, começa a exalar um odor desagradável; ponho-a a secar pendurada entre duas cadeiras. Quando digo que desejo tomar duche, colam um cartaz na porta da camarata: Cuidado, senhora no duche. Respeito, discrição e simpatia.

Escrevo um pouco, enquanto descanso, depois saio para ver a Azambuja que, até aqui, não passava de uma estação no trajecto entre Tomar e Oriente, isto é, quase no fim da viagem: um sinal para arrumar os livros ou o portátil. Descubro, com alguma surpresa, uma terra bem preservada. A amabilidade dos moradores, que dizem boa tarde, quando passo, manifesta um relacionamento sereno e harmonioso. A rua principal encontra-se embandeirada, um evento denominado Arte ao Vento, que lhe acrescenta um aspecto festivo. Subo e desço. Admiro as casas brancas com barras coloridas. Observo um ninho de cegonhas no parque. Entro na igreja barroca: talha dourada e azulejos de cor azul, branca e amarela. Converso com um seleiro numa loja-atelier. Como arroz de pato num restaurante.

Caminhei não menos de vinte quilómetros; não me doem os pés. Deito-me cedo. Durmo nove horas e meia.
publicado por Carlos Loures às 10:00
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1 comentário:
De Luis Moreira a 31 de Maio de 2010
O sono dos justos!

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