Carlos Loures Talvez Shakespeare devesse ter reformulado a famosa frase de Hamlet deste modo – To have or not to be – that is the question. Para que assim tivesse sido, teria de conhecer a sociedade actual onde, para se ser, para se existir, é preciso ter. Nos nossos dias, introspecções sobre o ser ou o estar? Perda de tempo – uma olhadela ao património e à conta bancária resolve a questão. Se tem, é e está. Não tem? Não existe, é como se não estivesse. E, no entanto, o William viveu a época em que os dados estavam a ser lançados. O protestantismo vinha impor o dever da riqueza, o pecado de ser pobre e de um homem não poder prover todas as necessidades da sua família, por oposição ao catolicismo que defendeu sempre (e persiste) na pobreza como virtude. Não me querendo desviar do essencial, diria que para que o ser se sobrepusesse ao ter era preciso criar pessoas com uma nova mentalidade – educadas em casa, ensinadas na escola, a colocar os valores morais acima dos materiais. Na formação dessa nova mentalidade, a escola teria de assumir um papel central. Quando se fala tanto no magno problema do Ensino, pareceu-me oportuno lembrar Ètre et avoir (Ser e Ter) um filme realizado por Nicholas Philibert em 2002 e interpretado por George López. Vi-o em DVD, não me recordo, mas penso que não foi exibido comercialmente. Conta a história de um ano lectivo numa pequena escola de aldeia, em França. Um jovem professor candidata-se ao lugar e é aceite. O seu objectivo é ensinar, mas há um problema – tem de ministrar o ensino numa sala onde há crianças de várias idades (entre os quatro e os onze anos), graus de conhecimento e de educação diferentes, e de etnias distintas, pois há filhos de emigrantes.
A forma engenhosa, metódica, profissional, como resolve o problema (os problemas), constitui uma lição magnífica sobre a arte de ensinar. Há outros filmes como o «Clube dos Poetas Mortos» que nos chamam a atenção para essa necessidade que todas as espécies enfrentam – transmitir os conhecimentos adquiridos ás crias. É uma imposição do sentido da sobrevivência. Só sobrevivem as espécies que transmitem o saber acumulado às novas gerações. Por isso, o perigo não é a extinção do homo sapiens, é o risco de a sua transformação em homo ignarus ou em homo nescius.
No filme de Philibert, narra-se exemplarmente a forma como este professor programa as aulas e as prepara, sempre sem esquecer as capacidades de cada um dos alunos, fixando objectivos, prazos. Sabe que os mais velhos o deixarão no Verá para acederem ao segundo ciclo, ao liceu e, por isso, conversa com cada um deles, ajuda-os a vencer a angústia de enfrentar o grupo nas idas ao quadro e as risadas que cada erro desperta nos que sabem, com os mais pequenos fazendo eco. O pânico de enfrentar multidões, de falar em público, acompanha-nos muitas vezes até à idade adulta.
O professor dispõe de autoridade, não está perante um grupo disposto a incinerá-lo. Esta sociedade transpira ódio à cultura. É uma atitude da imbecilidade perante a inteligência, um confronto em que a estupidez procura vencer o saber, tornando-o ridículo e risível. É um sentimento que passa de pais para filhos. O professor enfrenta pequenos energúmenos arrogantes, crianças que podiam ser normais, mas que a falta de educação em casa, substituída pela função deletéria da televisão, transforma em aberrações.
Em «O Clube dos Poetas Mortos», outro exemplo de como ensinar, o professor John Keating, ensaia a sua pedagogia pouco ortodoxa ante um grupo de alunos com características pessoais diferentes. Em todo o caso, não existem exemplares como os que os professores dos bairros periféricos de Lisboa, Porto ou Setúbal, enfrentam. A exortação do verso de Horácio, carpe diem quam minimum credula postero (Colhe o instante, sem confiar no amanhã), teria nessas colmeias suburbanas, uma leitura diferente e de efeitos imprevisíveis, pois os conceitos de fruição são completamente diferentes. Porque estamos a falar de duas concepções do mundo diferentes – uma em que os valores humanos, o ser, se sobrepõem ao consumo, ao ter. Outra, em que se não tens não és.