Carla RomualdoNuma alta coluna, com a cidade a seus pés, erguia-se a estátua resplandecente do Príncipe Feliz. Coberta de lâminas de ouro e cravejada de pedras preciosas, por todos era admirada a cintilante figura do jovem nobre.
Num certo Outono, uma andorinha que se atrasara na viagem para paragens mais quentes porque ficara a namorar um junco, resolve-se finalmente a empreender a viagem para o Egipto e decide passar a noite no pedestal da estátua. Surpreende-se com as grossas gotas de chuva que lhe caem em cima e descobre que estas são, na verdade, as lágrimas da estátua. O Príncipe Feliz conta-lhe as misérias que vê do seu pedestal, as tristes vidas dos que vivem à sombra dos ricos e poderosos. Explica-lhe que em vida, no seu palácio, apenas conhecera o prazer e nada soubera do sofrimento, mas agora, dali do alto, via toda a fealdade e miséria da sua cidade. Pede-lhe então ajuda para fazer chegar as pedras valiosas com que cobriram o seu corpo àqueles que delas precisam.
A andorinha comove-se com a generosidade do Príncipe e vai despojando-o do rubi da espada, das verdes safiras que eram os seus olhos, do ouro que lhe cobria o corpo, até deixá-lo cego, feio e negro. Entretanto o Outono acabara, o frio tinha chegado, e a andorinha, que sabia o que estava reservado às aves que não escapavam ao frio manto que cobriria a cidade, despede-se do Príncipe mas ao tentar voar para longe vai inanimada aos seus pés. Nesse instante, ouve-se um estalido no interior da estátua. O seu coração de chumbo havia-se partido em dois.
Deparei-me com uma edição recente deste conto que Oscar Wilde publicou em 1888 e que era a história favorita da minha infância. Não o lia há muitos anos e dele guardava uma memória carregada de detalhes que vejo agora não existirem no original. Também reconheço uma fina ironia que me escapara então. Nessa época eu lia as páginas e chorava baba e ranho, e sabia que essas lágrimas não me entristeciam nem escureciam a luz que reconhecia nessa fábula. A comoção era uma espécie de reconhecimento da ligação que existia entre mim e as outras pessoas. Eu comovia-me e chorava porque era, e dava-me conta disso com a simplicidade luminosa que a infância permite, humana.
Não sei se esta história de Wilde terá muito sucesso hoje em dia. Tenho visto, agora que escolho livros para o meu filho, que as histórias para crianças sofrem muitas vezes uma espécie de purga de qualquer elemento sombrio. Queremos poupar os nossos filhos ao sofrimento, evidentemente. Queremos afastar todas as sombras do seu caminho, queremos que conheçam intensamente a alegria e que a perda se mantenha longe dos seus corações. Já dei por mim a pousar novamente na estante da livraria certos contos que parecem vir tingir esse idílio com as primeiras sombras. Mas agora que acabo de pousar este volume, e recordei como era lê-lo aos nove anos, sentada no tapete do meu quarto, no cantinho que era o meu lugar das leituras, fico a pensar nesse mistério dos contos para crianças, que, guiando-as por caminhos de bruxas e gigantes, terrores e angústias, as fazem chegar sãs e salvas, mais sábias mas também mais esperançosas.
E isso é possível porque elas possuem essa fé ainda sem as reticências que aquilo que achamos ser o conhecimento do mundo há-de colocar.
Há dias, quando mostrava ao meu filho a lua enorme que lhe entrava pelo quarto, ele ficou a olhá-la em silêncio durante uns instantes e depois estendeu a mão para ela e perguntou-me:
- Posso pegar?
(uma primeira versão deste texto foi publicada no blogue Aventar)