Carla Romualdo
A ocupação de tempos livres dos reformados do meu bairro é a ida à farmácia. Vão-se revezando no banquinho posto ali a modos de confessionário, contam a tensão alta, a diabetes, os bicos-de-papagaio, o sopro no coração, os filhos distantes, a casa vazia, o temor a não ter quem lhes valha.
Cá no bairro não há reformados nas universidades sénior nem sócios do Inatel, não há quem aprenda xadrez ou mandarim, ou vá por fim visitar as Berlengas ou percorrer a Rota dos Templos Marianos. As horas livres passam-se na farmácia, e aviar receitas é somente uma pequena parte do muito que a farmácia tem para oferecer. À falta de emoções tumultuosas, dessas que uma experiência tardia de salto de parapente poderia proporcionar, sentam-se destemidamente no banquinho e medem as tensões todas as manhãs, picam o dedo à cata de uma glicose com a mania das grandezas, mostram sem vergonha a unha encravada do pé ou a manchinha suspeita no braço, descrevem, com detalhe de maníaco, aquela pontada-à-espécie-de-uma lâmina-que-se-crava-na-carne.
Bem pode o jovem afogueado bufar atrás deles, comentar que está atrasado para o trabalho, queixar-se que só queria paracetamol para a dor de cabeça, que de nada serve. Os reformados do meu bairro desfrutam de cada instante na farmácia e não dispensam as animadas, ainda que sempre respeitosas, discussões com o farmacêutico, seja sobre as propriedades do anticoagulante, as percentagens da comparticipação, a análise da situação política – “uma pouca vergonha” – ou as virtudes das benzodiazepinas – “Eu sem isto já não durmo, seu doutor”.
Os reformados do meu bairro detestam os domingos. Saem de casa contrariados nesse dia, resmungam pela rua a caminho da padaria, passam pouco depois com o saco da regueifa, e vão espreitar a cruz verde com uma réstia de esperança que seja dia de serviço na farmácia.
Suspeito que, em algum canto da cidade, o farmacêutico experimenta a mesma angústia e anseia secretamente pela chegada da segunda-feira. Porque se vissem esse homem, com olhos bondosos e bigode afável, a voz ligeiramente nasalada, um pouco aguda, e a agilidade com que saltita por entre os gavetões dos comprimidos, a facilidade com que evoca o nome do periquito do senhor asmático ou o aniversário da morte do marido da senhora da flebite, concordariam que em nenhum outro lugar é mais feliz.
Animador de tempos livres, terapeuta de reabilitação de solitários amedrontados pelos médicos e obcecados pelas virtudes dos fármacos, há-de entretê-los até os ver passar no carro fúnebre e não deixará de vir à porta saudar a sua passagem nesse dia, com a bata branca imaculada e as costas ligeiramente curvadas.
E por isso eu espero tanto na farmácia, e saio sem chegar a comprar nada, prometendo voltar depois, porque sei que me intrometo no que não me pertence, como quem força a entrada em casa alheia sem nunca ter sido convidado. E de cada vez que espreito a essa casa apetece-me largar a correr e não parar tão cedo.
E a história da vizinha que andava a tomar uma pastilha igual ...
De adão cruz a 1 de Outubro de 2010
Carla, Carla, Carla! Que bela e bem tratada descrição da realidade! Mas, infelizmente, a realidade não é essa. Ou, por outra, é essa mesma. A realidade é que os velhinhos, a terceira idade, estão a ser lidibriados, explorados, agredidos e assassinados pelas normas, os conselhos, as recomendações e as drogas que procuram nos seus tempos livres passados na farmácia. Em primeiro lugar, essa merda de ver tensões, acúcar, colesterol, nas farmácias, é de um ridículo incomensurável, sem qualquer benefício para o doente, que apenas necessita de uma avaliação global e integrada do seu estado, que não existe e que ninguém lhe proporciona porque não dá dinheiro. A ÚNICA forma de fazer clínica médica. Toda essa palhaçada nada interessa, a não ser para a farmácia, que vai buscar aí uma mais valia e uma simpática e aliciante adesão do desgraçado do paciente á droga respectiva. Para um profissional traquejado, esta pouca vergonha mete nojo. Tanto nojo como se de outra Fátima se tratasse. A medicamentalização da sociedade é um crime. As pessoas que os atendem nas farmácias não têm a mínima preparação para entender estes fenómenos de assalto à terceira idade, pois que de um assalto se trata. São muito simpáticos para os velhinhos mas muito nocivos. Aqui há uns anos, um destes investidores capitalistas da "saúde", dizia que a terceira idade era um campo a explorar. Os velhinhos não comem, não bebem, não se divertem, porque deixam a reforma toda na farmácia. E com que gosto! Vão ali buscar a saúde em caixinhas e frasquinhos. Vinte e cinco por cento das pessoas da terceira idade nas sociedades industrializadas são internadas por efeito dos remédios, e nove por cento morrem. Nesta altura, a terceira causa de morte no mundo são os remédios. Há muita gente responsável dentro da medicina, mas também há muita gente dentro da medicina responsável por esta pantominice.
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