Quarta-feira, 28 de Julho de 2010

Catalunha: a decisão é hoje tomada


Carlos Loures

O Parlamento da Catalunha decide hoje se a proibição das touradas no território catalão vai ou não por diante. Prevê-se uma votação muito renhida, pois 85 deputados, os do CiU e os do PSC, terão liberdade de voto. A Iniciativa Legislativa Popular, que exige a abolição das touradas, acredita que a sua posição prevalecerá. As sondagens indicam que a abolição vencerá por três escassos votos. Enquanto esperamos, reproduzo um texto que publiquei quando da discussão parlamentar.

A «tradição» das touradas

No 2º volume dos « Cadernos de Lanzarote», José Saramago transcreve um artigo que publicou na revista Cambio 16. Transcrevo dois trechos:

«O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre correria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediável, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro?» (…)

«O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou, tão puro como viveu, casto de espírito como o está de corpo, pois virgem ire morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um cero momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte».

Quando José Saramago leu o texto a sua mulher, Pilar, disse - «Não podes compreender…” Tinha razão» diz o escritor»Não compreendo, não posso». É sempre o que os defensores das touradas, quando vêem que os seus «argumentos» não são aceites, dizem. Quem acha que as touradas são um espectáculo degradante e advoga a sua proibição imediata «não compreende». Porque, dão a entender, para compreender uma coisa tão poética, tão tradicional, é preciso ter uma sensibilidade especial.

Pergunto - o que há para compreender? Uma negócio onde se cruzam ganadeiros, apoderados, toureiros, empresários… pega num animal, confina-o num «anel infernal», e tortura-o até à morte. O que há para perceber neste fenómeno que nada tem a ver com património cultural, nem com tradição e muito menos com poesia – que tem a ver, sim, com os obscuros corredores da mente humana onde se oculta um atávico prazer em fazer sofrer outros seres como catarse para os sofrimentos pessoais.

Os aficionados desenvolvem uma teoria de contornos iniciáticos: quem não entende a magia da corrida não tem o direito de a criticar. Ou seja, para poder contestar as touradas é preciso gostar delas, estar por dentro do mistério da corrida, sentir a poesia de uma tarde de touros… Obscuras banalidades deste tipo, mas nem só um argumento sólido e aceitável.

Nos tempos de Roma usavam-se pessoas, embora já houvesse quem protestasse. O que responderiam os defensores do espectáculo – que era uma tradição e que os escravos nasceram para morrer. E haveria também apreciações sobre a beleza poética de ver animais selvagens e famintos despedaçar seres humanos, sobre a «nobreza» com que uns morriam sem se defender e a falta de aprumo com que outros tentavam vender cara a vida. Nem sei porque é que os defensores das touradas não incorporam o circo de Roma na sua tradição. A Antiguidade Clássica daria um toque de erudição à «Fiesta». Assim só têm o Hemingway para dourar o seu historial.

Falando da tradição taurina em Portugal, ela é tão forte e tão antiga que a própria tourada á portuguesa é acompanhada por pasodobles. Os aplausos do público exprimem-se em «olés» e a terminologia taurina é toda em castelhano. Tradição portuguesa? Sempre que se fala na história das touradas, lá vem o conto de Rebelo da Silva, «A última corrida de touros em Salvaterra». Só este conto é metade da tradição, a outra metade é espanholice pura.

Vem isto a propósito da discussão acesa que vai pelo Parlamento catalão sobre a proibição, ou não, das touradas na Catalunha. Perante a Comissão parlamentar do Meio Ambiente, 14 peritos em diversas áreas esgrimiram hoje argumentos a favor e contra a tauromaquia. Está em causa a anunciada proibição das corridas de touros na comunidade. Esta medida é apoiada por uma iniciativa legislativa popular que reuniu 180 mil assinaturas.

Os pro-taurinos defenderam a bravura do touro e a sua condição de animal nascido para morrer lutando, bem como a sua resistência ao sofrimento. Os anti-taurinos descreveram em pormenor o sofrimento do animal. Passando ao plano cultural, os defensores falaram nos valores da «fiesta», a emoção, a comunhão na praça, a catarse colectiva da multidão.

Os anti insistiram na crueldade da tortura e da morte do animal, da psicótica aberração de extrair prazer dessa barbaridade. Os pró lamentaram que os aficionados catalães tenham de viver na clandestinidade, embora afirmem que o público é apaixonado pelo espectáculo taurino e que são os políticos quem acirra o povo contra a tradição. Num terceiro plano, o da identidade, todos os deputados, da direita à esquerda, deixaram claro que a abolição da tauromaquia na Catalunha nada tem a ver com a identidade nacional.

Um toureiro e ganadeiro de Madrid, disse que, ao fim e ao cabo, o protagonista do debate é o touro. E com a autoridade de quem está por dentro, falou em nome dos interesses do animal: «É o animal mais formoso do mundo e o melhor tratado. Se fecharem as praças, extinguir-se-á». E depois, derivou para a poesia barata «É um espectáculo, um sentimento, a paixão da vida e da morte, do respeito e da entrega». No entanto, não respondeu às perguntas dos deputados, pois eram formuladas em catalão.

Os pró falaram de sofrimento, escudando-se na capacidade do touro para sofrer. A escritora Natalia Molero interveio, aludindo à «capacidade que o touro tem de libertar meta-endorfinas durante a lide para anestesiar a dor».

Os anti contra-atacaram com força. Desmontaram um a um os argumentos dos defensores. Jorge Wagensberg, um cientista, descreveu todo o arsenal utilizado para matar o touro, descreveu os instrumentos, da bandarilha ao estoque, tudo bem afiado e reluzente e disse. «Isto dói? Claro que dói!”. O etólogo Jordi Casamitjana, perito em sofrimento animal, utilizou elementos que permitem avaliar o sofrimento do touro, incluindo fotografias, e concluiu: «De um ponto de vista ecológico e zoológico, o touro de lide sofre individual e socialmente, física e psiquicamente».

O meu camarada de lides (editoriais), Jesús Mosterín, interveio, na qualidade de filósofo, com ironia cáustica: «Escandalizamo-nos porque em África se corta o clítoris às mulheres e noutros países causa escândalo que se continue fazendo um espectáculo público do sofrimento dos animais». E prosseguiu: «É verdade que as corridas de touros são tradicionais», concluindo sob os protestos dos deputados pro-taurinos: «Maltratar as mulheres também é uma tradição e, apesar disso, está a ser combatida».

Josep María Terricabras, outro filósofo, de forma mais suave, percorreu a lista de argumentos básicos dos defensores da «fiesta», para chegar a uma conclusão: «Aos partidários da fiesta falta um argumento ético fundamental. Fazer sofrer um animal por prazer é totalmente reprovável. Os touros são maltratados, como antes o foram as mulheres e os escravos». A sessão prosseguirá hoje com depoimentos de outros 13 peritos em diversas áreas.

Apenas quero levantar uma questão – quando é que em Portugal discutimos este assunto? A cobardia dos sucessivos governos tem permitido, mesmo no pós-25 de Abril, que vergonhas como as de Barrancos continuem. Invoca-se ali a tradição. Qual tradição? Um espectáculo que viola a lei e todas as regras da segurança, para já não falar nos princípios humanitários, iniciado em 1928 já é uma tradição? Mas mesmo que fosse. Como disse Mosterín, há tradições inaceitáveis e que têm sido combatidas com êxito. A prostituição, a pena de morte, a escravatura, duraram milénios. Não é motivo para que não tenham sido e continuem a ser combatidos.

Porém, quando vemos o Bloco de Esquerda, sempre tão preocupado com os problemas ecológicos e com os direitos dos animais, a aceitar uma trânsfuga do Partido Comunista numa autarquia ribatejana (Salvaterra de Magos, a do conto de Rebelo da Silva), defendendo a senhora abertamente os touros de morte, a esperança de que esta chaga cultural seja banida esmorece. A avidez pelos votos, submerge convicções e programas.

A tourada em Portugal está longe de ter as raízes que tem no estado vizinho, onde move interesses de grande monta. Quando é que em Portugal nos ocupamos da discussão a sério desta «tradição» tão nacional que até só se exprime em castelhano?

Em 1836, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas (coisa que o marquês de Pombal já tinha feito no século anterior): “Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas, bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de hora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros.” Porém as «razões» do costume prevaleceram e nove meses depois as corridas regressaram.

A maioria municipal socialista de Viana do Castelo, em 27 de Fevereiro de 2009, decidiu não permitir a realização de qualquer espectáculo tauromáquico no espaço público ou privado do município, sempre que ele dependa de qualquer autorização a conceder pela autarquia. Viana do Castelo (com maioria socialista) antecipou-se à Catalunha. Portugal, com um governo socialista, não deveria, pelo menos, encetar o debate sobre o tema? Quando é que se reconhecerá aquilo que há quase dois séculos já era óbvio para algumas pessoas – as touradas são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas?

A «tradição» das touradas
publicado por Carlos Loures às 12:00
link | favorito
3 comentários:
De Luis Moreira a 28 de Julho de 2010
Como já tenho dito nunca entrei numa praça de touros. Não gosto de sofrimento e não gosto do ambiente marialva.
De Luis Moreira a 28 de Julho de 2010
Está decidido!Foi aprovada a proibição.Não há mais touradas.
De carlos loures a 28 de Julho de 2010
A tourada está intimamente ligada ao conceito de «espanholidade». Cortar com as touradas é um passo para a Catalunha no sentido da plena independência. E nós? Continuamos a ouvir pasodobles e olés num espectáculo deprimente que, dizem, está ligado à tradição portuguesa. A qual tradição?

Comentar post

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links