Sexta-feira, 3 de Setembro de 2010

Ernesto Sampaio

Carlos Loures

Nestes dias que antecedem a “Maratona”, temos feito um esforço por publicar textos dedicados à poesia e a poetas. Prosseguindo, vou hoje recordar a figura de Ernesto Sampaio, um bom poeta, sobretudo, um homem de uma grande cultura.

Conheci o Ernesto Sampaio (1935-2001) no café Gelo, em 1958. Na tarde de 16 de Maio eclodiram motins por ocasião da chegada a Lisboa, vindo da triunfal visita ao Porto, do general Humberto Delgado. Já houvera confrontos na estação de Santa Apolónia e repetiram-se, com maior violência, quando o general chegava à sede da candidatura, que funcionava no Teatro Avenida. No meio da refrega, encontrei-me lado a lado com o Ernesto Sampaio que conhecia, como já disse, do Gelo. E lá andámos na faina do arremesso de pedras, nos avanços e fugas – o trivial, nestas coisas. Já anoitecia, quando chegámos ao Gelo. Contámos aos outros, que tinham ficado a ouvir os rumores da refrega, o que se passara.

Ficámos com uma relação boa, embora um pouco formal (nunca nos tratámos por tu). Ele era uns anos mais velho e isso, naquelas idades e naquele tempo, tinha alguma importância. E talvez não fosse só pela idade – o Ernesto era de uma erudição que na altura me atemorizava. Foi a ele que confiei a primeira leitura de uma tradução que fizera de um texto de Breton, de que ele era exímio tradutor. Eu frequentara o liceu Charles Lepierre, sabia bastante de francês, como estudante, mas a tradução, que me apressei a deitar fora, estava, por certo, horrível, escolar. Enquanto a lia vi que ele se esforçava por não se rir. Quando acabou a leitura, disse-me: «Bem, tem umas infidelidadezitas, umas acepções certas, mas mal escolhidas, soluções demasiado literais… mas assim até fica mais surrealista!» Percebi logo que a tradução estava péssima e desatei-me a rir e o Sampaio que, por delicadeza, estava a conter uma gargalhada, soltou-a.

Tenho uma dedicatória muito amistosa no seu livro «Luz Central», colaborou na revista «Pirâmide».Saliente-se que, no grupo do Café Gelo, embora maioritariamente antifascistas, as pessoas tinham pouca paciência para falar de política que consideravam coisa repugnante. Era com o Forte, com o Virgílio Martinho e com o Sampaio que podia desabafar a minha revolta pelo estado de coisas (após a minha segunda prisão, Virgílio referia-me com o «poeta quadriculado», aludindo às grades do Aljube e de Caxias).

Ernesto Sampaio, não recusando o compromisso político-partidário, foi um dos mais lúcidos elementos do movimento surrealista. Depois da minha saída de Lisboa, vi-o poucas vezes mas falámos sempre com amizade. E, depois do meu regresso, vimo-nos também raramente.

Lembro-me, como última, de uma conversa rápida no foyer do Teatro Aberto, durante um intervalo. Criticámos a política cultural, com o cuidado de quem anda em terreno minado – eu sabia-os, a ele e à Fernanda, militantes do PCP; eles sabiam-me «esquerdista» - não queríamos ofender-nos. De forma que a nossa última conversa foi travada num terreno que sabíamos comum – o da condenação da perniciosa influência dos americanos na cultura europeia. Soube da sua morte pelos jornais. Um ano antes, morrera a actriz, da companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, Fernanda Alves (1930-2000), sua mulher. Quem privava com ele de perto, atribui a sua morte ao desgosto que sofreu pela perda da Fernanda. A ela dedicou o último livro que publicou - Fernanda.


Ernesto Sampaio nasceu em Lisboa em 10 de Dezembro de 1935 e faleceu, também em Lisboa, em 5 de Dezembro de 2001. Publicou Luz Central (1957), Para uma Cultura Fascinante (1958), Antologia do Humor Português (1964), A Procura do Silêncio (1986), O Sal Vertido (1988), Fourier (1996), Feriados Nacionais (1999), Ideias Lebres (1999) e Fernanda (2000).

Escolhi um pequeno excerto de Luz Central, também seleccionado na antologia de Perfecto E. Cuadrado, (Poesia Surrealista Portuguesa, Edicións Laiovento, Compostela, 1996):

Texto Poético (excerto final)


Noite sem rasto guia-me até ao meu destino
escondido na solidão das ruas
inconcreto na vastidão das horas
onde tu existes misteriosa e nocturna
no teu perfil de bruxa e de rainha
apátrida e nostálgica
deslizando no vidro da madrugada
azulando de raios gelados o Dia que nasce
viva e oculta
cada vez mais viva e oculta
cada vez mais única de amor humano
com a tristeza das luzes marítimas
com a gravidade de quem parte
suavemente para sempre


You are welcome to Elsinore

O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada
poro da aurora

Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma

Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim
dos tempos

E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o
mar das grandes lanças de água

É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem
véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo
São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade

É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado
com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra em cada cama onde morremos juntos

Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem
de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível

Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus
pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante

Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em
cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável

Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos
puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra

Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio
que esmaga e canta e ninguém deterá

Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num
sinal vermelho

Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da
porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu

Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias
minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa minhas nádegas de noite e de loucura MEU AMOR

Habito a lealdade dos presságios
Começo a ser um bom leito para o meu sangue
publicado por Carlos Loures às 12:00
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3 comentários:
De augusta.clara a 3 de Setembro de 2010
"Fernanda" esse livro que eu li e que é a prova dum amor imenso. Quem escreveu aquele livro só pode ter morrido de amor.
De carlos loures a 3 de Setembro de 2010
Nem sempre os lugares comuns estão errados; diria mesmo que raramente o estão. De qualquer dos modos, cá vai um - o Ernesto e a Fernanda - que muitas vezes, ou entre ensaios ou quando estes acabavam, atravessava o Largo D. João da Câmara e vinha ao Gelo e pude conversar com ela numerosas vezes - o Ernesto e a Fernanda eram duas metades do mesmo ser.
De Luis Moreira a 3 de Setembro de 2010
Ainda há lugar para o sonho e para o amor.Nem tudo está perdido!

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