Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

Uma viagem a Cuba

Carlos Loures




Fidel Castro foi, na semana que ontem terminou, entrevistado por Jeffrey Goldberg, um jornalista norte-americano ligado à especialista e em Relações Exteriores, Julia Sweig. Foi uma longa entrevista, durante a qual se abordaram temas como o conflito israelo-árabe e a tensão entre os Estados Unidos e o Irão. Fidel parece ter encetado um processo de autocrítica – depois de ter reconhecido, em declarações anteriores, o exagero da sua política persecutória relativamente aos homossexuais, admitiu perante Goldberg que o modelo cubano não serve para exportação, porque nem sequer em Cuba funciona. O Carlos Antunes, em texto que aqui publicou no Sábado, já se referiu a este tema. Esta extraordinária afirmação de Castro, veio lembrar-me o fervor e o entusiasmo com que, no início dos anos 60, nós seguíamos as suas vibrantes intervenções.

Mas, quando em 1962, na sequência da chamada «crise dos mísseis», para se proteger dos Estados Unidos, Cuba foi forçada a transformar-se num satélite da União Soviética, ao fascínio seguiu-se uma profunda desilusão. Porém, aqueles primeiros três anos da Revolução Cubana, tal como os 18 meses da nossa Revolução dos Cravos, foram algo que marcou os jovens daquela época. Não escapei à regra. Ouvir o verbo emocionado e emocionante de Fidel, lendo na Praça da Revolução, as declarações de Havana, particularmente a segunda, era arrepiante. É sob a emoção dessas recordações que escrevo este texto.

.Embora a admiração pela Revolução Cubana há muito tivesse morrido, era um projecto meu visitar Cuba, como quem revisita a juventude e algumas das ilusões perdidas (porque há outras que nunca se perdem e é isso que nos mantém vivos). Há poucos anos atrás, com a minha mulher e um casal amigo (o Gomes Marques e a Célia) metemos mãos à obra. As agências só ofereciam pacotes inaceitáveis – três dias em Havana e quatro em Varadero. Mas nós íamos lá fazer uma viagem de doze horas, atravessar o Atlântico para ir à praia, com a Caparica e as praias da linha aqui tão perto? Mas acabámos por descobrir uma alternativa aos pacotes usuais. Uma boa alternativa que agora vejo que já está mais divulgada. Um carro de aluguer à nossa espera no aeroporto de Havana, hotéis reservados por um itinerário escolhido por nós, a começar e a acabar na capital – Havana, Matanzas, Cienfuegos, Sancti Spíritus, Camagüey, Ciego de Ávila, Santiago de Cuba, Trinidad, Santa Clara, Havana… Tudo por um preço razoável, pouco acima do que custavam os tais pacotes. Durante duas semanas percorremos quase quatro mil quilómetros, vimos o que queríamos, sem guias turísticos a incomodar-nos. E lá fomos à Baía dos Porcos, ao Quartel de Moncada, à Sierra Maestra, ao museu da Revolução, a todos os lugares de culto. Visitámos Havana em pormenor, fomos aos locais frequentados por Hemingway, e até almoçámos em Varadero. Varadero é um local de veraneio, sem nada de especial (a não ser o mar maravilhoso das Caraíbas) – Hotéis, edifícios de apartamentos, etc. Nada, nesse aspecto, que Vilamoura ou Torre Molinos não tenham – tal como pensávamos, não se justifica ir tão longe. Mas o nosso itinerário foi uma maravilha.



Falámos com muita gente. Pudemos verificar que, apesar de algum medo à repressão que inegavelmente existe, as pessoas falaram connosco com à-vontade. Encontrámos mais descontentes nas grandes cidades, Havana e Santiago, principalmente. As condições de vida são constrangedoras. Racionamento dos bens mais elementares – lâminas de barbear, pensos higiénicos, géneros de primeira necessidade, arroz, ovos, leite, tudo é racionado. As casas de Havana, algumas lindíssimas, estão em ruínas. O turismo é uma das saídas. Cozinha-se em casa para os turistas. São os chamados «paladares», alternativas aos restaurantes. Combina-se previamente, escolhe-se a ementa e à hora combinada lá temos a mesa posta e anfitriões dispostos a deixar-nos sós ou a conversarem connosco, como preferirmos. Pelas ruas andam pessoas das mais diversas idades a cooptar clientes para os paladares. Em Ciego de Ávila um professor universitário de avançada idade andava nesta tarefa, recitando-nos de memória poemas de Nicolás Guillén. Para não falar da prostituição, mais ou menos encoberta, que pessoas normalíssimas, qualificadas, quase todas com cursos superiores, se vêem obrigadas a praticar para completar ordenados baixíssimos. A prostituição em Cuba é, de uma maneira geral, uma forma desesperada de sobrevivência.



Nos campos, sobretudo em granjas colectivas, encontrámos mais adeptos do regime, gente saudando-se de punho cerrado. Também é verdade que nos campos a vida não é tão difícil, pois os bens alimentares essenciais são ali produzidos e, portanto, escasseiam menos. Porém, numa coisa todos estão irmanados, fidelistas, antifidelistas: no ódio aos Estados Unidos. Mesmo os opositores ao regime, têm consciência de que sem o bloqueio norte-americano, o povo não sofreria tanto. É evidente que o bloqueio tem perpetuado a ditadura e impedido o advento da democracia. Toda a gente sabe isso. Só a CIA e a Casa Branca se obstinam em não o reconhecer. E Obama, que parece ser mais inteligente do que a generalidade dos antecessores, poderá, mesmo que queira, contrariar a CIA e os falcões do Pentágono? As recentes declarações de Fidel, reconhecendo erros, constituem metade da ponte. Será que o presidente norte-americano terá margem de manobra para construir a outra metade?
publicado por Carlos Loures às 12:00
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34 comentários:
De carlos loures a 13 de Setembro de 2010
Sobretudo se a poesia, a pintura, a música, não servirem de cortina para tapar as misérias do mundo, mas forem um grito de protesto contre elas.
De adão cruz a 13 de Setembro de 2010
No fundo. todos sentimos o mesmo, porque acredito piamente que somos pessoas sérias e de consciência inviolável, ainda que sujeita a tantos perigos de violação. Claro, Augusta, que se eu não sentisse necessidade de tentar a poesia, estaria ainda mais morto. Quando digo que ainda nos damos ao luxo de tentar a poesia, é uma forma de dizer, revoltada, diante deste miserável cemitério que é o nosso planeta. Nem o desespero é solução, concordo. Gritar e denunciar, como dizes, à medida dos nossos (meus) frouxos gritos, como é óbvio, ainda é o que nos resta.
Augusta, corri a União Soviética de lés a lés,de Moscovo à Sibéria, de Leninegrado a Samarcanda, em pleno comunismo, de camioneta, de avião (17 viagens de avião), de comboio, de metropololitano, de barco e a pé. Nunca vi um país tão cativante,do ponto de vista social. Os países que, na altura, se lhe comparavam, eram os países nórdicos que percorri, também, de lés a lés. Staline é um osso na garganta, indiscutível, e o que o Carlos Loures diz atrás é verdade, quando refere a preocupação da criação de um império contra-poder. Mas isso não foi impeditivo da tentativa de criação de uma siociedade socialista, pelo contrário, quase se impunha como condição sine qua non do erguer da barricada contra o poderoso, traiçoeiro, e pérfido inimigo da liberdade dos povos e do mundo.
De augusta.clara a 13 de Setembro de 2010
Que belas viagens deves ter feito, Adão. Como eu invejo isso.Ir a Samarcanda como o Corto Maltese :)
A minha preocupação actualmente é a forma que essa luta deve tomar. Eu sei que é uma discussão muito difícil e, também, não sei por que ponta lhe pegar mas, talvez, a começar a debater aqui. Que mundo queremos? Podemos parecer ingénuos com esta conversa. Mas as grandes descobertas não começaram, muitas vezes , com interrogações tomadas como pueris, à partida?
Tenho muita pena mas, agora, tenho que vos dizer até logo. E, por favor, não deixem de fazer poesia.
De augusta.clara a 13 de Setembro de 2010
Esqueci-me de dizer uma coisa em resposta ao Carlos: o que é verdadeiramente belo é sempre revolucionário. Acho eu.
De carlos loures a 13 de Setembro de 2010
Num certo sentido, e com as devidas cautelas, diria que sim. Porque depende do conceito de belo.
De clara castilho a 13 de Setembro de 2010
Eu cá gosto é destes textos que provocam a discussão, que nos tocam e orbigam a comentar!!!Já obras publicadas aqui postas aos bocadinhos - nem dá para ler! Obrigada a todos, também eu fico na expectiva, também eu invejo as viagens do Adão e os conhecimentos que daí retirou. Como é que passamos para o aqui e agora?
De Luis Moreira a 14 de Setembro de 2010
Não podemos deixar de retirar destas fantásticas experiências as devidas ilações. As boas e as más.As boas, que permitiram que a análise da luta de classes fosse mais longe e com isso, se tenha chegado à social-democracia do norte da Europa. o casamento quase perfeito entre o estado social e a iniciativa dos cidadãos.As más, porque demonstraram à evidẽncia que o homem é um ser que quer ter liberdade de acção, quer ter liberdade de optar, ter iniciativa. Não foi a ideologia que derrotou Cuba e a União Soviética, foi a tecnologia, que cá chegou e melhorou de modo fantástico a vida das pessoas, e lá não. Quando a Televisão começou a mostrar o nível de vida do ocidente (os ex RDA não conseguiram impedir a recepção do sinal de TV da vizinha Alemanha). Podem-me dizer, mas trocaram um modo de vida por um frigorifico? parece que sim! e isso explica tudo.Não podemos exterminar ninguem,nós humanos somos mesmo assim!
De António Gomes Marques a 14 de Setembro de 2010
Sobre Cuba já fiz um longo comentário que nada contradiz o que o Carlos Loures escreveu agora. Fizemos, de facto, uma excelente viagem por Cuba e não escondo a emoção em Santa Clara, lembras-te Carlos, enquanto lia, na parede de entrada do monumento dedicado ao Che Guevara a carta de despedida, as lágrimas caíram-me, lágrimas que tu. Carlos, conseguiste conter. As minhas lágrimas foram provocadas pela carta, mas também pelo sonho não concretizado.E como doeu e ainda dói!
Também, Carlos, podemos falar da antiga União Soviética e dos Países Bálticos, que visitámos conjuntamente, como também poderia falar de outros países chamados socialistas -RDA, Checoslováquia, Bulgária, Jugoslávia- onde a vida não parecia tão miserável como a que vimos em Cuba, mas ainda hoje estou convencido que os cubanos não eram menos felizes do que os povos com que contactámos naqueles países, apesar do racionamento de que falas em relação a Cuba e que nos outros países que cito não vi.
Lembras-te, Carlos, do nosso almoço em Sancti Spíritus? Ainda tenho gravado na memória o profissionalismo da linda cubana a dizer-nos «Senhor desculpe, mas não há» e, depois de termos corrido a ementa, acabámos os quatro a comer «pollo asado», único prato que havia, embora a lista fosse longa e com anúncio de pratos apetitosos.
Temos de marcar um dia para revermos o filme e as fotografias.
Não posso terminar sem, mais uma vez, dar conta da raiva que sempre sinto, quando se fala de Cuba, ao pensar como tudo seria diferente se não fosse o criminoso bloqueio americano.
De Sales a 14 de Setembro de 2010
O Raul Castro anunciou hoje que o estado cubano vai ter de despedir 80% dos seus trabalhadores dependentes em 3 anos, suponho, e criar formas de trabalharem emnegócios não estatais.
De Luis Moreira a 15 de Setembro de 2010
E na Europa caminhamos para o mesmo. As pessoas têm que ter iniciativa, não podem ter,aos 30 anos, um emprego para toda a vida. É que para eles terem emprego para toda a vida, há quem não tenha emprego, nem precário,nem outro...
Uma sociedade de funcionários é o pior pesadelo que se pode ter.

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