Carlos Loures
Local onde ocorreu a chacina da "Leva da morte"92 anos depois, há quem queira descrever o consulado sidonista como um oásis de ordem no meio do caos da I República. Esquecem-se, entre outros actos de despotismo, os que pretendem branquear o sidonismo, do sinistro episódio da «Leva da Morte», ocorrido em 16 de Outubro de 1918. No ano anterior tinham acontecido muitas coisas – em Janeiro partira para França a primeira brigada do Corpo Expedicionário Português. Portugal entrava na Grande Guerra. Os contingentes continuariam a seguir para a frente de batalha. Em 25 de Abril formou-se o terceiro governo de Afonso Costa. Em Maio noticiavam-se as primeiras «aparições» de Fátima, logo aproveitadas pelas forças conservadoras.
O pano de fundo, eram os motins, as greves, mas esse caos social, económico e político serviu de trampolim ao major e professor Sidónio Pais que, mobilizando algumas unidades militares e, sobretudo, os cadetes da Escola de Guerra, e com algum apoio popular, desencadeou em 5 de Dezembro uma revolta. Mais uma. Afonso Costa foi preso, o ministério demitiu-se, o presidente Bernardino Machado partiu para o exílio. Instaurou-se uma ditadura militar, apoiada pelo Partido Unionista. O Congresso foi dissolvido, destituído o presidente da República, a constituição alterada. Instalou-se um regime presidencialista – aquilo a que se veio a chamar o sidonismo. A Sidónio, muitos chamavam o «Presidente-Rei». Era a «República Nova».
Os decretos eram publicados a velocidade estonteante. A máquina administrativa, a lei da imprensa, o ensino, tudo ia sendo reformulado. Foram restabelecidas as relações com o Vaticano e restituído ao clero privilégios que a República lhe retirara. As sucessivas revoltas contra a ditadura sidonista iam sendo dominadas. Em Janeiro de 1918, foi neutralizado um levantamento de marinheiros da Armada. Em 28 de Abril houve eleições presidenciais. Sidónio, único candidato, foi eleito. Em La Lys, as tropas portuguesas sofreram uma pesada derrota o que reforçou a germanofobia do presidente e dos seus apaniguados. A direita rejubilava - em Julho surgia a «Cruzada Nun´Álvares» formada por monárquicos e sidonistas católicos com o objectivo de unir a direita anti-republicana.
Tudo isto ocorria sem que os problemas fulcrais do País se resolvessem – continuava a miséria, a carestia da vida, o racionamento de bens essenciais… O descontentamento, mesmo dos que tinham saudado o aparecimento de Sidónio, reavivava-se. Recomeçavam as greves, os motins, os levantamentos populares. O benefício da dúvida terminara. Sidónio apenas resolvera problemas da hierarquia da Igreja, de terra-tenentes e industriais. O povo não figurava nos seus planos. Gente ligada ao Partido Democrático, agitava-se. As prisões enchiam-se de opositores ao «presidente-rei». A «lei-da-rolha» estendia-se a todos os domínios. Tudo estava tão mal como antes, só que agora nem sequer se podia protestar. E chegamos ao 16 de Outubro de 1918.
Uma revolução constitucionalista eclodiu em Coimbra na manhã de 12 de Outubro. O comandante da Divisão sediada na cidade foi preso pelos revoltosos e o alferes Sidónio Pais, o filho do presidente, perseguido pela cidade. Em Lisboa e no Porto, o movimento não encontrou eco, a revolta foi jugulada Face à rebelião que alastrava por todo o País, o governo decretou o estado de sítio. As prisões encheram-se de presos políticos, gente do Partido Republicano Português na sua generalidade.
Às 3 da tarde, não cabendo mais presos nos calabouços do Governo Civil de Lisboa, foi decido transferir parte deles para os fortes do Campo Entricheirado – São Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias. O comboio especial que os iria transportar, sairia às 18 horas do Cais do Sodré, sendo a partida adiada para as 21 horas. Ao cair da tarde, 153 detidos foram concentrados no pátio central do Governo Civil e, rodeados por 253 guardas sairam do edifício. Pormenor bizarro - o cortejo era aberto por corneteiros e tambores.
Entre os presos, destacava-se a figura enorme de Francisco Correia Herédia, um sexagenário forte e combativo. Fora deputado e fizera, antes do Regicídio, parte do grupo da dissidência Progressista, liderado por José Maria de Alpoim. Estava filiado no PRP de Afonso Costa e voltara ao Parlamento, agora como deputado republicano. Deixara de usar o título de visconde e usava apenas o nome civil. Os guardas armados, apontando as armas aos curiosos, gritavam:
- Fechem as janelas! Afastem-se das ruas!
Quando o cortejo, vindo da Rua Serpa Pinto, atravessando o Largo da Biblioteca e chegando a cabeça da coluna à Rua Vítor Córdon soou um tiro. Estabeleceu-se o pânico e desencadeou-se um forte tiroteio com os guardas a disparar quase à toa em todas as direcções. Quando a calma e o silêncio se restabeleceram a rua estava juncada de mortos e de feridos, alguns agonizantes. No rescaldo, apuraram-se sete mortos, seis presos e um guarda, sessenta feridos, sendo trinta e um preso e vinte e nove guardas. Entre os mortos, na valeta junto à Rua Vítor Córdon, estava o visconde de Ribeira Brava, degolado pelo que parece ter sido um golpe de baioneta.
No dia seguinte, o Governo emitiu um comunicado em que se dizia que tudo começara quando Francisco Herédia disparou sobre os guardas, tentando evadir-se. A disparatada versão pormenorizava que a pistola entrara na prisão dentro de um tacho de açorda! - a pistola nunca foi encontrada. Dizia-se também que dos bordéis da Calçada do Ferragial tinham sido disparados tiros contra a polícia. Foi preso um garoto de 12 anos, acusado de cumplicidade no ataque. No entanto, a versão em que toda a gente acreditou era a mais óbvia: o massacre fora preparado pela polícia sidonista. Os insólitos tambores e cornetas abrindo o cortejo foi interpretado como uma forma de referenciar a marcha da coluna aos olhos de quem do exterior iria intervir.
No sábado, 14 de Dezembro de 1918, regressando o ditador de uma viagem ao Norte, foi abatido a tiro na Estação do Rossio por um atirador que, ao que parece, não fazia parte de qualquer grupo político. Um tal José Júlio da Costa que, apesar de todos os esforços da polícia, do avultado número de prisões efectuado, nunca se provou estar organizado fosse em que partido fosse.
A chamada República Nova morrera com Sidónio. Nunca se diga que os doze meses da ditadura sidonista foram um hiato na violência e no caos da I República. A «Leva da Morte», episódio ocorrido faz hoje 92 anos, foi apenas um dos muitos crimes cometidos pelas autoridades nesse período.
No que respeita ao homem que assassinou Sidónio País as coisas não são muito claras. Libertado, em 19 de Outubro de 1921, por um grupo ligado à revolta da Noite Sangrenta, só muito mais tarde José Júlio da Costa voltará a ser preso, e desta vez para sempre. Um indivíduo chamado António Maria Fernandes, morador no Bairro de Alfama, decidira dar caça ao matador de Sidónio Pais. Na posse de um salvo-conduto passado pelo Ministério do Interior, que lhe permitia, se necessário, requisitar o auxílio da Guarda Republicana, este ignorado funcionário público pôs-se a percorrer o País e, depois de ter estado em Garvão e no Algarve, consegue saber que José Júlio da Costa se encontrava numa pensão para os lados de Matosinhos, para onde se dirige, acompanhado de um irmão de Júlio da Costa.
Na sexta-feira, 14 de Janeiro de 1927, o prédio onde se situa o Hotel e Café Central de Matosinhos está cercado pela Guarda Republicana e o proprietário, Alberto Midões, não terá muitas dúvidas em resolver o assunto, entregando José Júlio da Costa aos seus captores.
Na manhã de sábado, Júlio da Costa segue preso para Lisboa num compartimento reservado numa carruagem de segunda classe, e, ao chegar à Estação de Entrecampos, deixa tudo espantado com o seu aspecto trôpego e extravagante. Curvado, pálido, com uma mão no bolso, vestindo um sobretudo engelhado, por detrás do qual se vê um colete branco e uma camisa alaranjada, a completar com um chapéu alvadio amarrotado e umas botas amarelas, José Júlio da Costa é metido num carro celular, que segue em direcção à Avenida Duque de Ávila, para depois tomar o caminho do quartel de Caçadores, em Campolide. À frente vai uma companhia da GNR a cavalo e atrás segue outra. O homem que comanda esta operação chama-se Agostinho Lourenço. Fora governador civil de Leiria no tempo de Sidónio e era agora chefe da Polícia Política que a ditadura do Estado Novo começava a ensaiar.
Às oito horas da noite de 28 de Janeiro de 1927, José Júlio da Costa dá novamente entrada na Penitenciária de Lisboa, vindo a morrer louco, 19 anos depois, no dia 16 de Março de 1946, no manicómio Miguel Bombarda, em Lisboa, referindo a sua certidão de óbito que se tratou de morte por «esquizofrenia».
Como se comportou durante esses anos? Que conversas teve com carcereiros e enfermeiros? Que impressões guardaram dele os companheiros de cárcere ou das horas de passeio na cerca do Miguel Bombarda? Não se sabe. Guardas e enfermeiros, presos e loucos todos morreram, entretanto. E os que não morreram esqueceram-se. A morte e o esquecimento são as duas grandes notas dominantes na história do carrasco do presidente Sidónio Pais. O homem que, na noite de 14 de Dezembro de 1918, conseguiu a celebridade que procurava não a pagou com a vida, como seria de esperar, como ele próprio esperava. Pagou-a com o aniquilamento da sua personalidade e do seu nome e com a dúvida que deixou para sempre a seu respeito. Alguém quis que assim fosse. Mas quem?
Diz-se que Júlio da Costa foi durante muito tempo protegido e amparado por Ana de Castro Osório, ilustre republicana, colaboradora de Afonso Costa e fundadora da «Liga Republicana das Mulheres Portuguesas».
Outros, como Rocha Martins, acusam destacadas figuras do Partido Democrático de estarem por detrás da cobertura que durante longos anos protege o assassino de Sidónio Pais.
José Brandão, o meu amigo é um excelente historiador, mas como editor não iria longe - então faz-se uma coisa destas, um comentário que daria uma magnífico post? Temos de ser poupados. Se não se importar, vou transformar este comentário num texto autónomo e põ-lo à leitura dos noctívagos e das pessoas que vivem noutros fusos horários. Muito obrigado, José Brandão.
De S. Nunes a 20 de Fevereiro de 2012
O meu pai, o alfarrabista Augusto Nunes, já falecido, falou-me neste episódio, numa altura em que trabalhei na Rua Vitor Cordon. Por esse motivo, estranhei a passagem que diz "(...) Quando o cortejo, vindo da Rua Serpa Pinto, atravessando o Largo da Biblioteca e chegando a cabeça da coluna à Rua Vítor Córdon soou um tiro.(...)", porque não faz sentido. Se sairam do Governo Civil e desceram a Rua Serpa Pinto, o primeiro cruzamento foi o da Rua Vitor Cordon. Passar pelo largo da Biblioteca (hoje Largo da Academia Nacional das Belas Artes) já me parece desconhecimento geográfico e a foto apresentada inexacta. S. Nunes.
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