Sexta-feira, 31 de Dezembro de 2010

Música romântica do Século XX - 43

Carmen la de Triana, é um filme de Florián Rey rodado em1938 nos estúdios da UFA, em Berlim. Estava-se em plena Guerra Civil. Imperio Argentina (1910-2003) foi a estrela principal desta versão cinematográfica da Carmen,  de Prosper Mérimée. O filme, de índole costumista e tradicionalista, veicula os valores da espanholidade defendidos por Franco e pela Falange. Uma canção, tornou-se famosa - Los piconeros (os carvoeiros), com letra de Ramón Perelló e música de Juan Mostazo. Existem múltiplas versões - Rocío Jurado, Sara Montiel, Amália Rodrigues, Concha Piquer... Apresentamos a original, a de Imperio Argentina.





Uma curiosidade. No filme de Fernando Trueba La niña de tus ojos (1998), onde, de maneira pícara, se conta a odisseia dos actores espanhóis que foram a Berlim rodar Carmen la de Triana, Penélope Cruz interpreta em alemão Los piconeros. Assim:


publicado por Carlos Loures às 01:00
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Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

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Em Nome da Liberdade

Ethel Feldman

Entre touros e porcos - sangue
O homem trabalha todos os dias
Num só, mata a sede e a fome
O corpo treme e fode

Aquele morreu de morte matada
Na cela o grito seco, calado
No corpo, a dor não revelada
Um buraco na terra
Dentro dela, a mulher adúltera
No rosto, a vergonha explorada
Na mão do justiceiro, pedras
Na procissão, um anjo de cera
Nas costas, o peso
Entre touros e porcos -  sangue
Ordena a tradição, submissão
Grita o porco por compaixão
Na mão do homem - faca afiada
De morta matada
Morreu apedrejada
Um é preto, outro pobre
Criança sem nome, com fome
Na rua, a procissão
Nas costas, um anjo
Pobres de espírito
Pobres, sem nome
Dia de festa
Dá-me teu corpo suado, em nome do Homem
Rega meu ventre de vinho, em nome do Homem
Rasga-me por dentro, em nome do Homem
Amanhã parte, em nome da Liberdade
Ama.



publicado por João Machado às 23:55
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Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - A Reuniversidade


Na minha última crónica descrevi um cenário perturbador do futuro da universidade em resultado dos processos de reforma actualmente em curso. Fiz questão de salientar que se trata apenas de um cenário possível e que a sua ocorrência pode ser evitada se forem tomadas algumas medidas exigentes.


Primeiro, é preciso começar por reconhecer que a nova normalidade criada pelo cenário descrito significaria o fim da universidade tal como a conhecemos. Segundo, é necessário tirar as consequências dos vícios da universidade anterior ao processo de Bolonha: inércia e endogamia por detrás da aversão à inovação; autoritarismo institucional disfarçado de autoridade académica; nepotismo disfarçado de mérito; elitismo disfarçado de excelência; controle político disfarçado de participação democrática; neofeudalismo disfarçado de autonomia departamental ou facultária; temor da avaliação disfarçado de liberdade académica; baixa produção científica disfarçada de resistência heróica a termos de referência estúpidos e a comentários ignorantes de referees.


Terceiro, o processo de Bolonha deve retirar do seu vocabulário o conceito de capital humano. As universidades formam seres humanos e cidadãos plenos e não capital humano sujeito como qualquer outro capital às flutuações do mercado. Não se pode correr o risco de confundir sociedade civil com mercado. As universidades são centros de saber no sentido mais amplo do termo, o que implica pluralismo científico, interculturalidade e igual importância conferida ao conhecimento que tem valor de mercado e ao que o não tem. A análise custo/benefício no domínio da investigação e desenvolvimento é um instrumento grosseiro que pode matar a inovação em vez de a promover. Basta consultar a história das tecnologias para se concluir que as inovações com maior valor instrumental foram desenvolvidas sem qualquer atenção à análise custo/benefício. Será fatal para as universidades se a reforma for orientada para neutralizar os mecanismos de resistência contra as imposições unilaterais do mercado, os mesmos que, no passado, foram cruciais para resistir contra as imposições unilaterais da religião e do Estado. Quarto, a reforma deve incentivar as universidades a desenvolverem uma concepção ampla de responsabilidade social que se não confunda com instrumentalização. No caso português, os contratos celebrados entre as universidades e o Governo no sentido de aumentar a qualificação da população tornam ridícula a ideia do isolamento social das universidades mas, se nem todas as condições forem cumpridas, podem sujeitar as instituições a um stress institucional destrutivo que atingirá de maneira fatal a geração dos docentes na casa dos trinta e quarenta anos. Quinto, para que tal não suceda, é necessário que a todos os docentes universitários sejam dadas iguais oportunidades de realizar investigação, não as fazendo depender do ranking da universidade nem do tópico de investigação, não sendo toleradas nem cargas lectivas asfixiantes,nem a degradação dos salários (mantendo as carreiras abertas e permitindo que os salários possam ser pagos, em parte, pelos projectos de investigação).


Sexto, o processo de Bolonha deve tratar os rankings como o sal na comida, ou seja, com moderação. Para além disso, deve introduzir pluralidade de critérios na definição dos rankings à semelhança do que já vigora noutros domínios: nas classificações dos países, o índice do PIB co-existe hoje com o índice de desenvolvimento humano do PNUD.


Tudo isto só será possível se o processo de Bolonha for cada vez mais uma energia endógena e cada vez menos uma imposição de peritos internacionais que transformam preferências subjectivas em políticas públicas inevitáveis; e se os encarregados da reforma convencerem a UE e os Estados a investir mais nas universidades, não para responder a pressões corporativas, mas porque este é o único investimento capaz de garantir o futuro da ideia da Europa enquanto Europa de ideias.


(Publicado em 23-09-2010 na revista "Visão")
publicado por Carlos Loures às 21:00
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Guerra Colonial - Um testemunho de Adão Cruz



O efeito de uma mina


Adão Cruz em Binta- Guidage
Binta-Guidage
Fiz este trajecto penoso, mais do que uma vez, entre Binta e Guidage, mas em 1967. Eram aquartelamentos

que faziam parte do meu batalhão. De uma das vezes, a coluna em que eu seguia demorou cerca de sete horas para fazer vinte quilómetros, por causa dos atascamentos. Nesse dia fomos atacados por um enxame de abelhas selvagens. Para quem não sabe, tal ataque era mais temido do que uma emboscada. Para além de consequências menos graves, tive um soldado com um choque anafiláctico que quase me ia morrendo. Tenho fotos dessa terrífica viagem. Encontrava-se nessa altura em Guidage a comandar o pelotão, o meu grande amigo alentejano alferes Barrulas que aí sofreu vários ataques. Num desses ataques, estando eu em Bigene, via os clarões ao longe, com o coração nas mãos, e comentava para os meus companheiros "pobre Barrulas, coitado". Encontrei-o anos mais tarde numa festa do Avante e abraçámo-nos longamente.

(fotos de Adão Cruz)
Binta - Guidage - Preparando o terreno
O alferes Barrulas à direita e Adão Cruz ao centro
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A partir de dia 3 de Janeiro, todos os dias às 18 horas

CRONOLOGIA DA GUERRA COLONIAL

uma obra do historiador José Brandão
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publicado por Carlos Loures às 18:00
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Os poetas. ladrões de fogo ou artífices do verbo?







Carlos Loures
Definir a natureza da arte poética, é, como poderemos ver no apreciável painel que vamos expor na nossa “maratona poética”, uma discussão tão antiga quanto a civilização. Platão, Aristóteles, Horácio, Boileau, milhares de filósofos e de poetas discorreram sabiamente sobre este tema. Teremos oportunidade de, nas 24 horas do dia 8 de Setembro, ler 72 textos – poemas, textos poéticos, citações… Uma ampla panorâmica sobre esse tema tão discutido ao longo dos séculos.
“Ladrões de fogo” foi uma designação que usei num texto que publiquei na revista “Pirâmide” , da qual já aqui tenho falado. Nesse texto comparo os poetas a Prometeu. O poeta é um ladrão de fogo, um mago. Pelo poder da palavra cria a beleza para a ofertar aos homens. A comparação faz sentido, é sugestiva, mas talvez haja outra, menos bela, mas não menos verdadeira. Vejamos.
O poeta produz esta magia usando palavras comuns e não palavras mágicas. Esta capacidade de, com palavras usadas no dia a dia, construir um poema, pode conduzir-nos à tal conclusão, complementar da primeira – além de mago, o poeta é um artífice.
A comparação com Prometeu trazendo o fogo do Olimpo para a terra ou, como também já li algures, com Orfeu enfeitiçando a natureza, homens, animais e plantas, com o seu canto melodioso, é muito bonita. Mas equipará-lo a um trabalhador leva-nos a uma imagem , menos “poética” no sentido convencional, mas mais integradora da arte poética no quotidiano.: -o poeta é um artífice. A expressão «artes e ofícios» tem aqui pleno cabimento - o poeta é, portanto, um homem comum, um artista como um sapateiro ou um alfaiate o são. Em vez de cabedal ou de tecido, usa palavras, sentimentos e conceitos como matéria prima. Ofício: poeta. Daria lugar a conversas como esta: - "Ah, sim o Jorge. Olha, foi colocado como poeta na Covilhã".

Na verdade e humor aparte, a divinização do poeta, isola-o e condena-o ao ostracismo. Ora um poeta, um escritor, um artista deveria ter uma função na sociedade. Como teve. Bem sei que na Pré-História não havia televisão, nem blogues, mas quem, nas sociedades primitivas dispensaria que à noite, acabadas as tarefas diárias, se contassem histórias? Podemos puxar pela imaginação: o fulgor das labaredas das fogueiras cria sombras sinistras nas paredes da caverna. O poeta, o contador de histórias descreve as peripécias da caçada, as crianças aconchegam-se temerosas às mães e as passagens mais excitantes da narrativa são sublinhadas com gritos de medo ou com um rumor de assentimento. Esse contador de histórias, o aedo da Grécia, bardos, jograis, trovadores, tiveram a mesma tarefa de um poeta, ou de um escritor dos nossos dias – efabular a realidade e devolvê-la, valorizada pelo verbo, aos seus protagonistas - os homens comuns.
Vejo, com algum desgosto, persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas. Ora (e foi isso que tentei dizer com os meus textos anteriores), na minha maneira de ver a poesia nada tem a ver com essa indefinição. Ela  é, tal como o sonho na “Pedra Filosofal” como diz o Gedeão . "uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” e o poeta, um trabalhador tão necessário como todos os outros. Claro, há grande poesia intimista, que ao dar-nos conta da dor, da angústia do indivíduo que a confessa, nos torna conscientes das nossas próprias dores e angústias. Não estou a querer reduzir o território da poesia.
Não foi por acaso que escolhemos para o arranque da "Maratona Poética" o poema de Fernando Pessoa,
vestindo o seu heterónimo de Bernardo Soares, Autopsicografia. aquele que diz: "O poeta é um fingidor/
Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente... Todos conhecemos esta primeira quadra. Mas há mais duas e, quanto a mim, é na segunda que se encontra a receita poética pessoana: "E os que lêem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm."
Ao fingir as dores que realmente sente o poeta torna quem o lê consciente das dores da Humanidade.
publicado por João Machado às 16:00
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Para Sempre, Tricinco ALLENDE E EU - autobiografia de Raúl Iturra - (39)

Uma outra senhora simpática e cativante, é a minha antiga discente, narrada por mim em capítulos anteriores, a hoje Doutora Antónia Pedrouço de Lima. Uma anedota é precisa para aliviar a leitura: amiga pessoal de Susana Matos Viegas, também a minha discente, no dia no qual Susana estava a dar a luz, foram a passar essas temidas horas em tutoria no meu Gabinete: era dia e hora marcados já. O que não estava marcado, era o nervosismo de Antónia e as dores dissimuladas de Susana, e o meu próprio enervamento! Acabou a tutoria de uma hora, foram para o hospital, e de imediato o bebé nasceu: uma rapariga, hoje em dia, mulher muito querida, em Coimbra com a mãe, o seu marido Nuno Porto e a sua irmã.
Antónia Pedroso de Lima, ou Antónia Lima como é habitualmente nomeada, era também do grupo de discentes que me acompanhava nas minha migrações dentro da Península Ibérica, até ser enviada por mim para Tarragona, para ensinar e estudar num curso de doutoramento do Departamento de Antropologia da hoje Universidade Catalã de Rovira i Virgil , referida no sítio net da nota de rodapé. Antónia Lima voltou mais sabida e aprendeu a organizar Histórias de Vida, base para a sua tese de Doutoramento sobre famílias aristocratas do Portugal. É referida na net e como está na minha memória pessoal, como ter defendido uma tese que cito em nota de rodapé . Antónia Lima presidiu a Comissão Científica do nosso Departamento entre Maio e Junho de 2006, membro eleito da dita Comissão no biénio 2004-2006para passar a seguir, a ocupar vários cargos administrativos, a serem desempenhados com seriedade e rigor para si própria e com justiça para os outros, especialmente na Comissão Científica e como Directora da Unidade de Ensino do Departamento, cargo que ocupa até o dia de hoje. Foi Presidente do CEAS e vice-presidente do mesmo, no tempo em que eu era Presidente da Assembleia do CEAS. Sempre tivemos uma relação aberta e gentil, especialmente nos meus períodos de visita a Tarragona e, a seguir, foi a pessoa que mais me apoiara no desempenho do meu cargo de Presidente do Departamento. Ensinou Antropologia Urbana em Barcelona e Tarragona, com bolsa concedida em 2004 pelo FCT e ganhou o prémio atribuído pela JNICT e a Câmara Municipal de Lisboa, para os jovens investigadores de Portugal, que passo a referir no texto, pela sua importância: 1987 – Primeiro Prémio do Concurso Jovens Investigadores, AE ISCTE (patrocínios: JNICT e Câmara Municipal de Lisboa) com o ensaio Análise dos diferentes níveis de troca na Póvoa da Atalaia (Beira Interior): Um estudo comparativo no tempo baseado em rituais de casamento, em conjunto com Susana Matos Viegas e Maria Ribeiro Soares, sob a orientação do Prof. Doutor João Leal. É falado dela como uma excelente docente, a maior gloria para um académico.



As minhas lembranças associam ao hoje Doutor José Filipe Chagas Verde, com Maria Antónia Lima, por ver que sempre falam um para o outro, como se fossem amigos muito especiais e colegas íntimos. Os dois foram os meus discentes antes de serem docentes do Departamento. Enquanto Maria Antónia acabava o curso, Zé Filipe começava. Não esqueço as nossas conversas de Gabinete, quando era discente e essa a sua inteligência para entender e, as vezes, se aborrecer com aulas mal proferidas. Era um suplicio dar aulas a este sabido discente: aborrecia-se facilmente! Ainda lembro o dia das suas provas de Aptidão Científica e Pedagógica, essas provas de Mestrado para os docentes Assistentes continuarem a exercer as suas funções. Tinha eu convidado para examinar as provas, ao meu amigo e colega, examinado por mim para o seu Doutoramento., o hoje Catedrático José Madureira Pinto. As provas, em 1994, não podiam ser outras que sobre semiologia e compreensão das palavras, ideias que o têm acompanhado toda a sua vida. O seu orientador de provas, cujo nome vou omitir, tencionou fazer pouco dele e, com as suas brincadeiras, conseguia enervar ao candidato. A sala estava cheias, esperavam-se boas provas do candidato, mas as tantas, disse. “Não consigo, demito-me”. Como Presidente de júri, enviei ao Candidato fora da sala, solicitei ao público abandonar a sala de provas, chamei a atenção em privado ao orientador e pedi para estar em silêncio. Como era senhor, aceitou, guardou silêncio, pedi desculpas ao nosso convidado de júri, mandei entrar apenas ao candidato, ofereci agua, que aceitou, e as provas continuaram. Acabou por obter o mais alto valor. A sua assistência a Semiologia, em breve mudou para História de Antropologia, com outro Doutor. São as minhas pessoais lembranças. Em 2003 foi Doutor pelo ISCTE, passou a Professor Auxiliar, essa promoção automática, prémio para quem tem feito o esforço de pesquisar, estudar e escrever a sua tese, enquanto dá aulas. A tese foi feita calma e demoradamente, mas dentro do tempo devido, esses famosos 5 anos!, que todos nós temos sofrido. A especialidade do hoje Doutor, têm-se mantido dentro da sua linha de pesquisa, bem como as suas publicações e o seu ensino optativos: hermenêutica, semiologia, história da Antropologia e psicanálise. Os seu livros revelam a sua inclinação a análise da mente, livros referidos em nota de rodapé . Em 2008, o Diário da República aprova a nomeação definitiva do nosso docente José Filipe, e dos referidos Paulo Raposo, Filipe Reis e Francisco Oneto, como Professores Auxiliares, dentro do quadro do ISCTE. Se o leitor quiser saber mais, pode visitar as coordenadas dos sítios que tenho tido a preocupação de citar, e facilitar a sua pesquisa.


Discente a passar a docente, chama discente antigo e novo docente, que esperou três anos até ser capaz de mudar da Licenciatura de Sociologia para a de Antropologia. É o caso do meu colega na pesquisa e colaborador em ideias para a Galiza e a língua luso-galaica, António Fernando Gomes Medeiros .Para mim, nem é preciso ler o seu CV e saber da sua história. Tive a grande honra de estar no seu júri de provas de Aptidão Científica, bem como no do seu doutoramento: éramos colegas de investigação na cultura luso-galaica. Tem leccionado em Antropologia das Sociedades complexas, ou, por outras palavras, nas sociedades europeias, com Brian Juan O’Neill. Tem a fama de ser uma pessoa amável, gentil e um pouco hesitante no ensino, na sua tentativa de escolher palavras correctas para se exprimir melhor. A sua obra refere as sua preferências de investigação, que vão em nota de rodapé, algumas das muitas já escritas. Apenas uma pequena ironia: não sei como tem tempo para ensinar, escrever e criar uma imensidão de filhos, todas raparigas, a sua melhor obra, no meu ver. Com todo, pelo menos referir também um par de textos, como esse o seu ensaio antropológico denominado A Moda do Minho, editado em 2003 pelas edições Colibrí; ou o seu texto num livro colectivo: O artesanato na Região do Norte, de 1989, editado pelo IEFP. Não consigo esquecer o dia em que o seu pai estava muito doente e ele me telefonar para dizer que desistia da tese de doutoramento. A minha resposta, é conhecida por ele e lhe pertence, pelo que mais nada acrescento: acabou a sua tese e a defendeu em 2003. É, desde esse dia, o melhor e dedicado docente que temos em casa. Está referido o seu currículo em e, eternamente, na minha memória, como, estou certo, eu, na memória dele.


A semiologia de Filipe Verde, chama outras semiologias. È o caso do nosso docente gentil, Francisco Gentil Vaz da Silva, mais outro roubo feito por nós para o convidar ao nosso Departamento. Entrou por concurso e foi um excelente colaborador. Em uma das minhas presidências, solicitei integrar a Comissão Executiva, o que ele aceitou de forma agradável. O nosso trabalho era directamente dedicado ao Departamento, mas o trabalho em conjunto da pé para referir algumas intimidades, ultrapassados os dissabores de novidade de andar a colaborar na estruturação do Departamento, ainda em construção no tempo que me ajudara. Foi, ainda lembro, um colaborador resgatado da solidão da Universidade do Minho em 1987. Pensei que, como escrevíamos sobre crianças, a nossa escrita devia-nos unir e solicitei textos. De forma simpática e agradável, ofereceu-me uma cópia da sua tese de Doutoramento, defendida no ISCTE, em 1995, época na qual o Departamento já podia outorgar pós graduações. Em conjunto com José Carlos Gomes da Silva e outros, organizamos o Curso de Doutoramento requerido por vários, ao qual eu me opunha: o doutoramento é a liberdade de um académico para dizer e argumentar o que estimar conveniente, dentro dos parâmetros da nossa ciência. Mas, como Presidente, sentia a obrigação de abrir essas avenidas de Allende, dentro dessa a nossa criação em outro país. Como nunca mais o Curso era apresentado para ser levado ao CC, simplesmente tomei a liberdade de redigir os Estatutos, levar os mesmos ao CC, após aprovação no nosso Departamento, leccionamos e, com satisfação posso dizer que orientei a tese e levei ao doutoramento a três dos nossos candidatos, que aprenderam Antropologia no dito curso. Refiro esta aventura, porque Francisco Vaz colaborou na mesma. A sua especialidade é Semiologia e História da Antropologia. Ao me oferecer a sua tese, reparei que era uma outra maneira de ver a mente da criança: eu a estudava directamente como Etnopsicologia, ele, a través de contos e Histórias, como a análise do Capuchinho Vermelho que ele faz ao analisar as palavras e o contexto dentro do qual recorre essa história infantil. As suas publicações são muitas, referidas todas a análise de Histórias Folclóricas, o que tem feito que ele pertença a Associações Internacionais de e folclore, como diz o seu currículo DáGois. Tive a sorte de ser muito amigo da sua Senhora mãe, a Dra. Helena Vaz da Silva, por sermos os dois membros da UNESCO, com encontros simpáticos em reuniões na França e em Portugal. Não acompanhei o seu cortejo quando entrou na eternidade, por ter sido ao mesmo tempo da minha Senhora Mãe entrar também no seu sítio eterno. É natural que as nossas análises da mente da criança sejam diferentes, por causa de se ter formado em Humanidade e Ciências Sociais, com especialidade em Semiologia. Membro do corpo docente da Universidade Norte-americana da Califórnia, o que lhe permite passar parte do seu tempo entre nós e outra parte, sem ordenado nosso, em Califórnia. O seu currículo está referido no sítio net, citado na nota de rodapé . Apenas referir que tem sido um grande colaborador do Departamento e hoje, é membro da Comissão Científica do mesmo. Foi o primeiro a colaborar comigo como Presidente da Comissão Executiva do Departamento, cargo cumprido a rigor, como sempre faz. O mais esclarecido currículo de Francisco Vaz aparece na página web, que passo a citar em nota de rodapé, porque especifica todas as sua actividades da burocracia do Departamento, bem como a sua participação científica na construção do mesmo, essa mais valia para todos nós.

Notas:
A antiga Universidade de Catalunha, desde o dia da Regionalização do País da Espanha, passou, por Decreto do Governo Autónomo do País Catalã, a ser denominada Rovira i Virgil, está referida na página web: http://www.urv.cat/ , Governo da Generalitat presidido por José Montilla, refrido no sítio net: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Presidentes++Generalitat+Catalunha+&btnG=Pesquisar&meta=



2001 – Obtenção do Grau de Doutor em Antropologia, ISCTE, com a dissertação intitulada Grandes Famílias, Grandes Empresas. Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa, com a classificação final de Muito Bom, com Louvor e distinção, por unanimidade. Retirado da página web: http://www.ics.ul.pt/posgraduacoes/mestrado/antropsocialcultural/antrop/mapl-curriculum2006.pdf


A sua tese passou a ser livro em 2003, um das suas várias puiblicações: (2003) Grandes Famílias, Grandes Empresas. Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa. D. Quixote: Lisboa.


Relações Familiares na elite empresarial de Lisboa. In António CostaPinto e André Freire (Eds) Elites, Sociedade e Mudança Política. Oeiras: Celta: 151-180. Directora da Unidade de Ensino do Departamento de Antropologia do ISCTE.


Triénio 2006/09 – Presidente do Conselho Científico dos investigadores do Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS).


Triénio 2006/09 – Vice-Presidente do Conselho Científico dos investigadores do Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS).


Biénio 2005/06 – Membro da Comissão Científica do Departamento de Antropologia do ISCTE.


Biénio 2005/06 – Membro da Comissão Pedagógica do Departamento de Antropologia. Retirado da página web rederida mais acima


Filipe Verde, como é denominado, está referido no sítio net: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Jos%C3%A9+Filipe+Chagas+Verde&btnG=Pesquisa+do+Google&meta= que refere largamente ao nosso brilhante docente. Os seus textos, no seu currículo do Ministérios da Ciência, em: http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=3533361020438568 que refere a sua linha de ensino: Antropologia e Hermenêutica, Semiologia, História da Antropologia. Apenas o título de um livro, é capaz de nós dar uma ideia do seu interesse na pesquisa: Mito, Culpa e Vergonha : reflexões sobre a ética ameríndia. 2003. O seu texto das Provas referidas, passou a ser livro em 1994: Os limites da linguagem e o excesso de significação: elementos para uma definição de simbolismos.


António Medeiros, guardado na minha memória, mas o público pode visitar, para saber mais, o sítio net: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Ant%C3%B3nio+Fernando+Gomes+Medeiros&btnG=Pesquisar&meta= , especialmente na página web: http://www.degois.pt/visualizador/cv.jsp?key=4161657838542691 , que refere o seu currículo.


O currículo de António Medeiros, para o leitor ver, está em: http://www.degois.pt/visualizador/cv.jsp?key=4161657838542691


Currículo de Francisco Vaz, em: http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=4635434560399621 e a sua obra, que não vou analisar por falta de competência, mas que o Leitor pode ver no sítio net: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Francisco+Gentil+Vaz+da+Silva&btnG=Pesquisar&meta=


Currículo mais informativo do nosso docente Francisco Vaz, pagina web: http://www.fchs.ualg.pt/ceao/INC/CV-francisco%20silva.htm

(Continua)
publicado por Carlos Loures às 15:00
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A Sereiazinha (5) - por Hans Christian Andersen



(Continuação)


Foi presenteada com lindos vestidos de seda e de musselina. No palácio, era a mais bonita de todas, mas era muda, não podia nem cantar nem falar. Belas escravas vestidas de seda e ouro avançaram e cantaram para o príncipe e para os seus régios pais. Uma cantou melhor do que todas as outras e o príncipe bateu palmas e sorriu-lhe. A sereiazinha ficou triste, pois sabia que ela própria cantaria muito melhor! Pensou: «Oh! Bem devia saber que eu, para estar com ele, dei a minha voz, por toda a eternidade!»

Depois dançaram lindas escravas suas danças, ondulando ao som da mais bela música. Então levantou a sereiazinha os lindos braços brancos, ergueu-se nas pontas dos pés e deslizou sobre o chão, dançou, como ninguém antes dançara. Em cada movimento foi a sua beleza ainda mais visível e os olhos falaram mais profundamente ao coração do que os cantos das escravas.

Todos ficaram encantados, especialmente o príncipe que lhe chamou a sua esposazinha e ela dançou mais e mais, se bem que cada vez que os pés tocavam o chão, era como se pisasse facas afiadas. O príncipe disse que devia ficar sempre com ele e recebeu permissão de dormir fora diante da porta do seu quarto, numa almofada de veludo.

Mandou também fazer-lhe um traje de homem para que pudesse segui-lo a cavalo. Cavalgaram pelos bosques odoríferos, onde os ramos verdes lhe batiam nos ombros e os passa¬rinhos cantavam por detrás das folhas frescas. Trepou com o príncipe às altas montanhas e se bem que lhe sangrassem os pés delicados, a ponto de outros o notarem, riu disso e seguiu-o, até verem as nuvens passarem por baixo deles, corno se fossem um bando de aves voando para terras estranhas.

Em casa, no palácio do príncipe, quando de noite os outros dormiam, saía ela para a larga escadaria de mármore e aí refrescava os pés escaldantes, pondo-os na água fria do mar e pensava então naqueles lá no fundo.


Uma noite vieram as irmãs de braço dado, cantavam tristes enquanto nadavam, e ace¬nou-lhes e elas reconheceram-na e disseram-lhe como tinha deixado todos tristes. Noites segui¬das a visitaram depois, e, uma noite viu ao longe a velha avó que há muitos anos não subia à superfície do mar, e o rei do mar, com a sua coroa na cabeça, estendendo as mãos para ela. Mas não ousaram aproximar-se tanto da terra como as irmãs.

De dia para dia era mais querida para o príncipe, que gostava dela como se gosta duma criança boa e amável, mas fazê-la sua rainha nem sequer o pensava e ela sua mulher tinha de ser, senão não conseguiria obter uma alma imortal; antes viria na manhã do noivado a transfor¬mar-se em espuma do mar.


- Não gostas mais de mim de que de todas as outras? - pareciam dizer os olhos da sereia¬zinha, quando ele a tomava nos braços e lhe beijava a linda testa.

- Sim, és para mim a mais querida - disse o príncipe -, pois tens o melhor coração de todas, és a mais delicada e pareces-te com uma jovem que uma vez vi, mas que certamente não mais encontrarei. Eu estava num navio, que naufragou, as ondas levaram-me para terra junto a um templo santo, onde várias jovens prestavam serviços. A mais nova encontrou-me aí na baía e salvou-me a vida. Só a vi duas vezes, era a única que podia amar neste mundo, mas tu pareces-te com ela, quase suplantas a sua imagem na minha alma, ela pertence ao templo santo e, portanto, a minha boa sorte levou-me para ti, não vamos nunca separar-nos!... «Ai! Não sabe que lhe salvei a vida!», pensou a sereiazinha. «Trouxe-o sobre o mar para o bosque, onde está o templo, pus-me por detrás da espuma da água a ver se vinha algum ser humano. Vi a bela jovem de quem gosta mais do que de mim!» E a sereia suspirou fundo, chorar não podia. «A donzela pertence ao templo santo, disse ele, não virá nunca para o mundo, não se encontrarão mais. Estou em casa dele, vejo-o todos os dias, quero cuidar dele, amá-lo, oferecer-lhe a minha vida.»


Mas agora ia o príncipe casar-se com a bonita filha do rei vizinho, contava-se. É por isso que se aparelha tão lindamente um navio. O príncipe viaja para ver as terras do rei vizinho, diz-se, mas é para ver a filha do rei vizinho, que vai levar um grande séquito. Mas a sereiazinha abanou a cabeça e sorriu. Conhecia os pensamentos do príncipe muito melhor do que todos os outros.

- Tenho de partir em viagem! - disse ele a ela. - Tenho de ver a bela princesa, meus pais assim o querem. Mas não me obrigam a trazê-la para casa como noiva, isso não! Não posso gostar dela! Não se assemelha à bonita jovem do templo, como tu te assemelhas. Se alguma vez tenho de escolher noiva, será a ti, minha esposazinha muda de olhos falantes!

E beijou-lhe a boca rubra, brincou com o seu cabelo longo e pôs a cabeça junto ao coração dela, que assim sonhava com a felicidade humana e com uma alma imortal.

- Não tens medo do mar, minha mudazinha? - disse ele, quando já estavam no navio magnífico que deveria conduzi-lo às terras do rei vizinho. E falou-lhe de tormentas e calmias, de peixes estranhos no fundo, e do que os mergulhadores aí haviam visto. E ela sorriu com as suas descri¬ções, conhecia melhor do que ninguém o fundo do mar.

Nas noites claras de luar, quando todos dormiam, com excepção do timoneiro, que estava ao leme, sentava-se na amurada do navio a olhar para baixo na água clara e pareceu-lhe ver o palácio do pai. Sobrepondo-se a tudo estava a velha avó com a coroa de prata na cabeça que olhava através das correntes fortes para a quilha do navio. Depois vieram as irmãs ao de cima da água, olharam tristemente para ela e agitaram as mãos brancas. Acenou-lhes, sorriu e queria dizer-lhes que tudo corria bem e que era feliz, mas um moço de bordo aproximou-se e as irmãs mergulharam de tal modo que este ficou na crença de que o branco que vira era espuma do mar.

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 14:00
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Uma classe política que se despreza

Luis Moreira


Muita gente ainda pensa que Alberto João o Presidente da Madeira é um tipo próximo do palhaço, ou de quem roça o rídiculo ou mesmo a má educação. É, óbvio, que não é nenhuma dessas coisas. É um político com um apurado sentido das forças em presença e usa as fragilidades do adversário em proveito das suas posições. Na maioria das vezes sente-se que o Presidente da Madeira tem um profundo desprezo pela classe política nacional. Soube hoje que moveu uma acção em tribunal contra um adversário político, por uma frase escrita num blogue, há, portanto, quem pense dele o mesmo e, os caciques que monopolizam a economia da Madeira, sendo todos da sua cor política, também não abonam a sua transparencia.

Esta sensibilidade acentua-se e generaliza-se. Vejam a posição tomada pelo Presidente dos Açores, perante o anunciado corte nos vencimentos dos funcionários. Não corta nos vencimentos e é tudo legal, transfere umas massas que tinha para abrir uns caminhos e paga ao pessoal. A legalidade do acto ainda acentua mais o desprezo que lhe merece quem, ao nível central, lhe deu tão íniqua ordem! Soube-se por estes dias que os funcionários que vão ser poupados ao esforço pedido a todos são os boys de César, são os que ganham mais, chefes de divisão, sudirectores, directores...



Vejam o que se passa na Caixa Geral de Depósitos. Veio o seu Presidente com uma mentirinha que faria corar uma donzela. Fogem os quadros se concretizar a ordem do governo. É, claro, que não fogem nada. Os que podiam fugir, por terem dado provas , já estão na primeira linha e estão a fazer lugar para irem para a reforma, os de segunda linha estão à espera que os de primeira linha saiam para lhes ficarem com os lugares e, daí para baixo ninguém os quer. A declaração pública de desautorizar o governo tem um nome. Desprezo!


Agora, temos a PT, a tal de interesse nacional que o governo defendeu com a célebre golden share. Acabou por fazer tudo o que os seus sócios privados quiseram que fizesse. Não contentes, anteciparam a distribuição das mais valias do negócio para, com isso, desviarem do Fisco milhões de euros. Como não concordam com o corte dos salários decidiram, num acto de grande generosidade, distribuir parte das mais valias pelos trabalhadores assim repondo o corte que o governo tinha anunciado. Tudo legal e revelando um profundo desprezo pelas ordens do governo!


Para terminar com chave de ouro, o tribunal de Contas vem hoje anunciar que não consegue validar as Contas do Estado de 2009! Reparem, não as chumba porque isso determinaria existir uma ou várias razões fortes, conhecidas, estudadas, que possam ser discutidas à luz de técnicas e teorias diferentes. Não, o desprezo é a forma como anuncia a "impossibilidade" face ao primarismo da(s) marosca(s). (mudança de critérios para impedir comparações, verbas registadas em rúbricas diferentes, verbas não registadas, enfim, criatividade...)

E, agora são os sindicatos das duas maiores corporações de interesses do país (magistrados e professores) que interpuseram acções em Tribunal porque, segundo eles, o corte nos salários é inconstitucional. E os privados ficaram de fora o que também é inconstitucional. Numa palavra, por um lado estou com os sindicatos porque, basicamente, têm razão (alguma vez teria que ser); por outro lado, receio que qualquer dia quem governa sejam os Tribunais que não foram eleitos para o efeito.

Estes queridos conhecem-se bem uns aos outros!

publicado por Luis Moreira às 13:00
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O meu amigo Romeu Correia



Carlos Loures

A revista “Nova Síntese” (Edições Colibri), publicou no seu número 4, dedicado ao tema “O rural e o urbano no neo-realismo”, um texto do Professor Alexandre Castanheira, com o título “Romeu Correia, um neo-realista esquecido”. O texto começa com uma citação do crítico literário João Gaspar Simões que, no jornal Sol de 21 de Maio de 1949, dizia sobre “Trapo Azul”, o romance de estreia de Romeu Correia: «Um jovem cheio de talento que insuflou ao “neo-realismo” decrépito uma vida que o “neo-realismo” nunca tivera entre nós».


Não vou referir-me hoje ao magnífico texto de Alexandre Castanheira, nem dissecar esta precipitada notícia necrológica de Gaspar Simões, crítico inteligente, mas controverso, que considerava decrépito um movimento que ainda mal ensaiara os primeiros passos. Basta consultar as datas de publicação de grandes obras de Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, para verificar que as grandes obras do neo-realismo não tinham ainda sido publicadas em 1949. Mas o texto incentivou-me a escrever hoje sobre Romeu Correia.



Conheci-o pessoalmente pelo final dos anos 50, acabara de publicar a sua peça “Sol na Floresta”. Travámos uma amizade duradoura, embora nunca nos tratássemos por tu (era quase da idade do meu pai). A verdade é que eu o «conhecia» já há uns bons dez anos. Quando em 1948 saiu o seu livro “Trapo Azul”, um vizinho, morador na Baixa, mas nascido em Almada, em conversa com os meus pais, a que eu assistia (mas com dez anos não podia intervir na conversa dos adultos) disse que tinha saído um livro cheio de calúnias para com as gentes daquela vila, hoje cidade.


Era uma coisa tão miserável que, dizia ele, pela primeira vez na vida tinha rasgado um livro, deitando-o fora a seguir. Como quem não quer a coisa, eu perguntei o nome do livro e quem era o autor. Os meus pais olharam para mim com ar apreensivo. O meu vizinho dignou-se responder-me: «”Trapo Azul”, de um tal Romeu Correia». Isto foi a um serão em nossa casas e no dia seguinte convenci a minha mãe, que também ficara curiosa, a irmos comprar o livro. Foi na Férin, salvo erro, que o encontrámos. E lá o trouxemos para casa. A minha mãe lia-o primeiro e, depois, logo se via se eu o podia ou não ler. Aceitei o acordo.


Ela leu o livro duma assentada e de manhã deu o veredicto. Era um bom romance, mas não era próprio para mim. Claro que mais não foi preciso para que uma grande curiosidade me assaltasse. Manhoso, fingi-me completamente desinteressado e fui observando que a vigilância ao volume ia sendo cada vez mais descuidada, deixou de estar fechado à chave numa gaveta e semanas depois já ninguém se lembrava daquele perigo para a minha educação.


Quando sabia que ia estar uma hora ou mais sozinho ia lendo, memorizando a página em que interrompia a leitura e deixando-o tal e qual na posição em que o encontrara dentro da gaveta. E assim o consegui ler em relativamente pouco tempo. Esse exemplar não o encontrei entre os livros de minha mãe e o que tenho foi-me oferecido pelo autor ao qual contei as minhas aventuras para ler o seu livro.


Mas voltando a esse primeiro encontro com Romeu Correia, foi (se a memória não me falha) no segundo piso do Café Avis, nos Restauradores do lado do Eden, Era um café estranho – no primeiro piso era frequentado por gente de extrema-direita, legionários, inclusive, ali levados pela grande cruz de Avis em néon que brilhava sobre a porta principal. No piso superior, era para a malta de esquerda. Disseram-me ser ali que o Amílcar Cabral dava explicações de Matemática.


Parava também por aquele segundo piso um grupo heterogéneo onde se incluía o Renato Ribeiro e sua mulher, a Fernanda Barreira, o Manuel de Castro, o Manuel de Seabra, o Romeu Correia que trouxe um dia a Maria Rosa Colaço, e este vosso amigo. O estranho é que os legionários nos viam passar e se faziam comentários era em voz baixa. Nunca houve ali provocações. Um dia hei-de escrever um texto sobre «os meus cafés». Muitos.


Os cafés do Romeu Correia eram outros. Ao Avis só ia para se encontrar comigo, com a Maria Rosa, com o Renato… À noite vinha de Almada no barco e parava na Coimbra, da Alexandre Herculano num grupo de que o Namora e o Bernardo Santareno faziam parte (uma vez que fui lá para o encontrar, eles estavam lá) e, à hora do almoço podíamo-lo, sempre sozinho, encontrar no café Bom (trabalhava na sede do Banco Ultramarino, na Rua do Ouro). O Café Bom ficava na Rua da Betesga em frente à cervejaria Mó, que ainda existe. Ali estava ele, preenchendo com a sua letra grande e irregular folhas soltas de páginas brancas. Era mais um romance em gestação.


Romeu Correia falava de uma forma apaixonada, revivendo as suas histórias e emocionando-se com as recordações. Não raro, fechava os olhos para que a memória lhe fosse mais fiel. Numa noite de Verão, creio que em 1959, numa esplanada da Avenida descreveu-me a Amália gravando «O Céu da Minha Rua», tema musical da série que a RTP produziu a partir do seu romance homónimo. Não saiu bem durante uma série de tentativas e quando o realizador queria desistir, às quatro ou cinco da manhã, Amália fez uma última tentativa, rasgando as meias com as unhas enquanto cantava. E saiu bem. «Uma mulher muito inteligente e cheia de raça», concluiu.

Romeu e Almerinda Correia

Noutra das suas descrições, esta feita no Avis, contou-me como, ainda no início da sua carreira no BNU, fora cobrador. Por vezes ia almoçar a casa, a Almada, se tinha alguma cobrança na margem esquerda. Naquele dia após uma cobrança de uma avultada importância, chegou a casa e encontrou Almerinda, sua mulher, profundamente adormecida. Jovem e bonita, era atleta de alta competição, descansava de horas de treino e de trabalhos domésticos. Resolveu fazer uma brincadeira poética, uma homenagem – cobri-la de ouro . colocou-lhe sobre o corpo notas de mil escudos, centenas delas. E depois acordou-a.


A surpresa de Almerinda, a sua expressão ao ver o dinheiro foi uma coisa linda, disse ele. Eram pobres e ela nunca vira tanto dinheiro na vida. Mas depressa percebeu o que se passava e disse-lhe «arruma lá toda esta porcaria!» e ajudou-o a recolocar as cintas nos maços e a metê-los na mala.


Outra recordação que o fazia vibrar era a do seu trabalho como artista de circo. Boxeur amador, com campeonatos ganhos, fazia um número em que com a ajuda de um projector, num jogo de luz e sombra, lutava consigo próprio.


Já nos anos 70, quando voltei a Lisboa, reatei a amizade que fora mantida com uma outra carta e no convívio durante as férias de Verão. Romeu e Almerinda passavam quinze dias todos os anos na Colónia de Férias da FNAT e, em Agosto, eu estava por ali perto, em Santo António ou, posteriormente, em São João da Caparica com a minha mulher e os dois filhos. Encontrávamo-nos sobretudo no cinema da colónia, pois éramos todos apaixonados por cinema.


A última vez que estive com ele foi no lançamento de um livro da Maria Rosa, no forum municipal de Almada que hoje se chama Forum Romeu Correia. Foi pouco tempo antes de ter falecido, notava-se já que estava doente, mas tendo ficado ao meu lado enquanto o livro da nossa amiga era apresentado, falou-me com entusiasmo de uma História da Incrível Almadense que andava a preparar.


Um bom escritor e um grande amigo. Um homem cuja vida daria um romance. Aqui fica uma resenha biográfica.


Romeu Correia, (17 de Novembro de 1917- 12 de junho de 1996) nasceu e faleceu em Almada. Escritor, ficcionista e dramaturgo, foi colaborador de diversos jornais e revistas, nomeadamente da Vértice. Em Outubro de 1942, casou com Almerinda Correia, que viria a ser campeã nacional de atletismo. O próprio Romeu Correia foi atleta de alta competição e campeão nacional de boxe amador. A sua obra está traduzida em numerosas línguas e tem sido objecto de teses académicas, em universidades portuguesas e estrangeiras.


Recebeu, em 1962 e 1975, o prémio Casa da Imprensa; em 1984, o Prémio de Teatro 25 de Abril, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro; e, pela peça O Vagabundo das Mãos de Oiro (1962), o Prémio da Crítica. Em 1958, a sua peça Céu da Minha Rua foi transmitida em directo pela RTP com Amália Rodrigues no papel principal.


Escreveu: Sábado sem Sol (contos, 1947), Trapo Azul (romance, 1948); Calamento (romance, 1950); Gandaia (romance, 1952); Casaco de Fogo (teatro, 1953); Desporto-Rei (romance, 1955); Céu da Minha Rua (Isaura) (teatro, 1955); Laurinda (teatro, 1956) Sol na Floresta (teatro, 1957); O Vagabundo das Mãos de Oiro (teatro, 1960); Bonecos de Luz (romance, 1961); Bocage (teatro, 1965); Jangada (teatro,1966); Amor de Perdição (teatro, 1966) 3 Peças de Romeu Correia: Laurinda, Sol na Floresta e Céu da minha rua (teatro, 1968); O Cravo Espanhol (1970); Roberta (1971); Francisco Stromp (biografia, 1973); José Bento Pessoa (biografia, 1974); Um Passo em Frente (contos, 1976), Os Tanoeiros (nova versão de Gandaia)(romance, 1976); Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada - nas artes nas letras e nas ciências (história, 1978); As Quatro Estações (teatro, 1981) Jorge Vieira e o Futebol do seu tempo (biografia, 1981) Tempos Difíceis (teatro, 1982); O Tritão (romance, 1982),; Grito no Outono (teatro, 1982); O Andarilho das 7 Partidas (teatro, 1983); O 23 de Julho (narrativa, 1986) Portugueses na V Olimpíada (ensaio, 1988); Cais do Ginjal (novela, 1989); Palmatória (1995)







(Este texto, com ligeiras diferenças, foi publicado antes no blogue Aventar)
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Uma coisa é certa, de Adão Cruz. Ilustração de Adão Cruz.

 
 





Uma coisa é certa
aqui sentado na margem deste regato debruado a pedaços de neve o avesso do pensamento já não incomoda.
O silêncio acorda os olhos de pó e a melodia há muito perdida nas encostas nevadas renasce na canção deste rio.
Não importa ser-se aqui planta ou pedra ou torvelinho de água brincando à roda do abismo.
Os soluços são apenas o cantar da água e o tempo de recordar há muito se deslembrou.
A montanha despiu a neve a saudade deixou de respirar tristezas a angústia tem o tamanho da neve e o abraço do sol o tamanho da angústia.
Os lábios rasgados do sexo cósmico devoram os beijos que não têm como a neve a força de um regresso.
O tempo de sorrir não morreu no naufrágio das flores das noites nuas.
Por isso não importa não saber cantar se a música dos teus dedos nasce nos cabelos de hoje.
publicado por João Machado às 08:00
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Noctívagos, insones & afins - Carta do Professor Raúl Iturra a José Sócrates

Senhor Primeiro-Ministro – com respeito, mas com firmeza:

A frase que intitula este texto acabou por ser famosa quando escrevi uma carta aberta à anterior Ministra da Educação. Era minha para ela. Mas, desta vez, a frase continua a ser minha para ser usada por si.

É sabido que governa em minoria e de todo não tem tido nenhuma ideia sábia na nomeação dos ministros do Ministério da Educação. O que aconteceu que a anterior ministra, já é parte da História, nem vale a pena lembrar mais, está em todos os blogues, sítios da Internet, da nossa curta cadeia de comunicação. Era mais fácil e rápido telefonar e dizer-lhe as minhas palavras. No entanto, a palavra escrita perdura, enquanto as faladas as leva o vento, ou são manipuladas ou esquecidas. O respeito e a firmeza não são palavras minhas para si. É uma frase para o Senhor Primeiro-Ministro nunca esquecer: respeito pelos seus eleitores e firmeza nas suas decisões.

Respeito pelos seus eleitores, parece-me que tem, apesar de muitos falarem mal de si, especialmente os seus colegas dos partidos da esquerda portuguesa, e ainda mais os seus rivais que lhe disputam o poder, do CDS-PP e do PSD. Dá-me a impressão que nenhum deles tem visto, nem está muito interessado, o que acontece na educação no nosso País. Bem sei, pelos meus antigos estudantes, hoje deputados da nossa Assembleia, que visitam os seu eleitores, sobretudo, em períodos pré eleitorais, mas sei também que os melhores informadores dos deputados são os jornais que lêem, os jornalistas que comentam e os noticiários da rádio e das televisões. Foi Mário Soares quem inaugurara o que passaram a ser as Presidências Abertas. Bem como Jorge Sampaio. Eram programadas, avisadas atempadamente, e eles ouviam e debatiam ao pé do rio, à sombra das árvores de um mato, e o Presidente enviava o que entendesse à Assembleia. Na maior parte dos casos, eram as problemáticas do povo que tinha depositado neles a sua Soberania, para a Assembleia legislar. Como também faz o Senhor PM.
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Visita, ouve, está informado, como se fosse um Primeiro-ministro em trabalho de campo, como fazemos nós, os Antropólogos, especialmente os que dedicamos o nosso saber à Educação e à etnopsicologia da infância.

É assim que o PM, como tantos de nós, sabe que a população escolar tem a tendência para diminuir. Este País é cada vez mais de velhos e concentrado em centros urbanos que proporcionam trabalho, como, entre outros, Lisboa, Porto, Braga, Bragança.

A minha surpresa foi grande, como deve ter sido a sua, ao reparar que em sítios como Os Vales, em Alfândega da Fé, ou Cotas, Alijó, Vila Real, as escolas tinham um número mínimo de estudantes que até a professora se aborrecia. Sítios do Norte e do Sul do país, têm a tendência a diminuir a sua população escolar. A professora dos Vales tinha 8 estudantes, de diferentes graus de ensino básico e devia repartir-se entre os mais novos que não sabiam ler e escrever, e os mais crescidos, que precisavam da história, da matemática e da geografia. No sítio em que fiz e faço o meu trabalho de campo em Portugal, Vila Ruiva, Concelho de Nelas, nos anos 80 do Século passado, havia pelo menos quatro docentes para uma população escolar de mais de quarenta estudantes de diversos ciclos, enquanto na Vila de Senhorim, da mesma Freguesia, havia um infantário com oito pequenos e pequenas e uma escola com quatro estudantes. Vila Ruiva tem 12 aldeias e nem todas têm escola. Como, aliás, acontece em vários sítios do país. Facto que me faz lembrar o desenvolvimento da Espanha, nos anos 70, quando estudava as formas de pensamento das crianças das Paroquias galegas. O Ministro da Educação do Ditador, Fraga Iribarne, teve a sagacidade de concentrar em Agrupamentos Escolares as crianças de todas as pequenas aldeias na vizinhança de Vilatuxe, como em outras Paroquias.

Dividiu o país em Agrupamentos até cem estudantes que cursavam, desde o ensino básico até ao secundário, no mesmo local, vindos desde as suas distantes aldeias, para a mais central, a de Vilatuxe. Ou no Chile, onde, também, estudei crianças que frequentavam o ensino desde a primeira classe até finalizarem o Secundário. A regra nestes países, era calcular as distâncias, nem longe nem perto, dando origem à organização de um segundo mapa desses países: o mapa académico. Esta concentração escolar obrigou as autoridades a construírem vias de asfalto necessárias aos autocarros que transportavam os estudantes. A jornada de estudos começava às 8 da manhã e terminava às 15. Os que moravam mais distantes, podiam optar pelo regime de internato, os almoços eram da responsabilidade das escolas, um comer proporcionado pelo Estado, o que baixava os custos do lar destinados à educação.

É aí onde, Senhor Primeiro-ministro, deve ter firmeza. Em Portugal, nesta nova etapa, cada vila ou aldeia vai disputar a primazia para acolher o agrupamento escolar. Haverá as que, pouco preocupadas, sem sítios nem condições para dar as aulas o reivindicarão. O seu dever é dividir o mapa escolar do país conforme as distâncias e a população a servir.

Atenção Senhor PM: não se deixe amedrontar. O investimento não é em submarinos nem em TGVs: é para aumentar o saber das nossas crianças, o futuro da nossa nação, o investimento mais importante do Estado

Crianças que devem estudar para aprenderem e orientarem os destinos da nação e não serem apenas passadas de um para outro ano escolar, sem serem examinadas. A minha querida Ana Benavente, quando foi Secretária de Estado para o ensino básico, criou um sistema no qual todos passavam para o ano seguinte, com exames no fim desse ciclo. Grande fracasso: o que se sabia no último ano, era o que se lembrava. O resto, era História.

Deve ter respeito e firmeza no processo que eu denomino ensino - aprendizagem, com debate entre docentes e pais dos estudantes. A sua Ministra é uma excelente escritora, mas para a educação…!!!! Porquê sempre senhoras que de educação nada sabem e não planificadores, economistas, arquitectos, engenheiros, para construírem a base da nova forma de ensinar com entusiasmo e prática?

Não se amedronte, Senhor Primeiro-ministro: estude os exemplos fornecidos, nomeie uma comissão parlamentar de terreno, não de Assembleia, capaz de se deslocar aos sítios e responsável para delinear uma nova escolaridade, com docentes e cientistas da Educação a orientarem.

Esse é o seu dever. Se assim o não fizer, o seu governo vai cair e os seus rivais da direita, vão investir em prédios e pouco em profissionais. As universidades têm cursos de Antropologia e Sociologia da Educação: tome essa vantagem.

Boa sorte para si e tenha a força suficiente para consultar docentes e espertos em educação para um novo mapa do país: o da Educação.

O seu constituinte

Professor Doutor Raúl Iturra

Catedrático ISCTE-IUL

Entopsicólogo

Criador da Antropologia da Educação em Portugal
publicado por Carlos Loures às 03:00
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Os dez mais - Um conto de Natal de José Saramago - História de um muro branco e de uma neve preta

Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras.

A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.

Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.

A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas.

A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.

Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.

As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
“Porquê?”, pergunt
a a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.

Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso.


Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, “Um Natal Há Cem Anos” e “A Neve Preta”, publicadas no jornal A Capital no final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no volume Deste Mundo e do Outro. A junção delas (que de certa maneira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que tenham razões para pensar que não.

(Coord. Vasco Graça Moura, Gloria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, col. Mil Folhas, Público)
publicado por Carlos Loures às 02:00
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Música romântica do Século XX - 42

Em 8 de Janeiro de 1943, estreava-se no Porto uma opereta (como na época se designava os "musicais") A Costureirinha da Sé , de Arnaldo Leite e Heitor Campos Monteiro, com uma companhia de Lisboa composta por actores muito famosos na época  - António Vilar, Costinha e Luísa Durão e uma jovem estreante - Maria Clara ... Dessa opereta, um fado cantado por Maria Clara transformou-se num grande êxito nacional - o Fado da Sé. Como era típico desse período da ditadura (e em plena Guerra Mundial), exaltava-se os valores da pobreza e da humildade e na canção transparece esse apelo à aceitação da penúria. Maria Clara cantava-a muito bem, mas não encontrámos disponível uma gravação, pelo que incluímos a varsão de Maria de Fátima Bravo no filme feito em 1958 por Manuel Guimarães a partir da opereta, interpretação que não se afasta muito do estilo de Maria Clara.

publicado por Carlos Loures às 01:00
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A meteorologia não nos dá grandes esperanças de uma boa noite,

mas aqui no Estrolabio não há tempestade.À uma hora, música romântica - portuguesa - às duas horas, um dos dez textos mais lidos entre Maio e Dezembro. Às três a nossa assistẽncia habitual aos noctívagos, insones e outros amigos ou cúmplices da noite.

Agora, ficamos com uma douta intervenção de um Professor que o Agildo Ribeiro interpretava com graça:


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publicado por Carlos Loures às 00:30
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Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010

Receita do ano novo, por Carlos Drummond de Andrade


   Faltam dois dias  e alguns minutos para 
o Ano Novo. Para se irem preparando leiam este poema que nos foi enviado pela Augusta Clara e pelo Manuel Simões.
Receita de ano novo 
 


Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade
(1902 - 1987)


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
 

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
 

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
 




publicado por João Machado às 23:55
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