Sexta-feira, 8 de Julho de 2011

Um Novo Coração 46 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 46

 

 

Arco, última jornada, 25/02/05

 

 

Hoje é o meu último dia na “Casa de Saúde”. Como sempre, já antes do alvorecer eu acordara, porém com a tranquilidade própria da tomada de consciência das coisas que estão acabando. Deitado na minha cama, me vinha de procurar devassar através da cortina da janela as sombras densas que cobriam a paisagem inteiramente conhecida. Mais que ver, eu intuía os contornos das colinas recobertas de verde e o subir dos caminhos na direção dos montes mais altos. Pela constância do olhar fixado e pela força da minha miopia que desde há muito declina e se esforça sempre na procura de superamentos, as sombras como que começam a dissolver-se e a minha imaginação das coisas cede o lugar às coisas mesmas, agora quase percebidas.

 

São já as seis e daqui a pouco entrarão as enfermeiras; mas hoje elas quase não me dão atenção, como se eu já tivesse partido.

 

Desço para o café um pouco antes das oito e caminho pelos corredores que se me fizeram familiares, mas caminho sem considerar as pessoas que começam a circular por eles. Caminho passeando, absorvido por uma vontade de alargar os espaços e assim encontrar-me não confinado em corredores, mas dentro de estradas que me levem para longe. Por elas vou sem pensar senão em ir, para onde sei que devo chegar. Então tudo é tranquilo e assim vou, sentindo-me muito leve, sereno, quase possuído do poder de caminhar pelo ar que me circunda e que é frio, mas de um frio confortante.

 

No salão do bar não me sento nas poltronas, mas estou de pé diante das janelas envidraçadas e fixo o jardim lá fora. A luz pálida do inverno desenha em aquarelas a paisagem: são cores tênues, como que filtradas pela luz que a medo revela os protagonistas da paisagem e seus contornos, linhas, formas.

 

O dr. Citton, apoiado na sua muleta, mas muito serenamente, me faz retornar ao salão e juntos vamos para o café da manhã. Ele hoje vai fazer um dos seus últimos testes e depois irá à piscina para um longo banho terapéutico. Então lhe digo que parto antes do almoço e que lhe deixarei um meu livro trazido por Gianni com o carro de Paola que me levará de volta para Veneza.

 

Depois de despedir-me do meu amigo médico, subo devagar para o segundo andar e vou preparar definitivamente as minhas coisas. Em verdade quase tudo já está pronto, devo somente decidir o que fazer dos objetos de uso fornecidos pela “Casa de Sáude”. Os chinelos brancos e felpados que me serviram principalmente para minhas andanças no banheiro, ali os deixo; assim também faço com as toalhas de banho e de rosto, com o roupão branco. Esse, se o quisesse para mim, me custaria 25 euros; não quero. Todo o resto, roupas e livros, esses já estão arrumados na minha maleta e na minha pasta. Devo evitar o excesso de peso, sempre pensando que já se passaram quase dois meses da minha operação, mas o meu caro osso esterno dá ainda sinais das penas sofridas. As horas da manhã correm velozes nesse divagar sem fim e no cumprimentar médicos, enfermeiros e enfermeiras que me sorriem como que felizes por me verem tão bem disposto na minha partida. Todos me dizem, certamente sem atenção para o meu determinado olhar    breve nos revemos, não é verdade?

 

Gianni deve chegar ao meio-dia e faltam somente quinze minutos. Desço, pago a conta de meus extras na portaria e me sento na sala-de-espera. Gianni chega, me abraça contente   como você está bonito!  Gianni me diz que é melhor partir logo; almoçaremos pela estrada; nos preparamos para a viagem de volta.

 

O carro guiado por Gianni deixa Arco, volto para Veneza. Volto. Estou seguro que volto; retorno com aquele gosto que sempre provo em recuperar as minhas coisas vividas. Eu as quero, como quero a volta. Sei que quero é estar de novo diante das coisas que compõem a minha vida, as minhas experiências, os meus movimentos, o meu reconhecimento do estar no mundo, no meu.

 

O carro corre veloz e livre pela auto-estrada. Admiro a paisagem e sinto algo de muito diverso daqueles sentimentos vividos na viagem de duas semanas atrás. Agora vivo de certezas, de claras certezas. Certamente se me olho estou mais magro, até mesmo muito mais magro que o normal. Estou pesando sessenta quilos; nesses últimos dias tive medo de chegar a pesar menos de sessenta. Olhava para a balança com quase temor dos cinquenta e nove. A enfermeira encarregada de registrar o peso dos pacientes, a que veio do Panamá e me falava só em espanhol, ria e me dizia   usted está muy bien! Mas eu via com desconfiança aqueles sessenta quilos. Quero voltar ao meu peso ideal, sessenta e quatro.

 

Gianni diz que está na hora do almoço. Então, caro leitor, queridos leitores que me acompanharam até aqui, só agora, de repente, me recordo que ainda não lhes comuniquei, como certamente eu tinha prometido, o menú, a lista complementar que  sempre tive à disposição para o caso de querer mudar os pratos de meus já sobejamente conhecidos almoços e jantares na “Casa de Saúde”. Mas agora, queridos amigos, não quero esconder mais nada, pelo contrário sinto grande satisfação de fazer com que vocês todos conheçam a lista suplementar, a dos muitos maiores prazeres em confronto com os pratos do dia a dia que ajudaram a fazer com que agora eu me sinta como um passarinho leve, quase somente aéreo. Faço ver a lista, prestem atenção, ela aqui está. E podemos começar a devorá-la -

 

Arenque norueguês defumado, com maçãs grannysmith num tapete de saladas, e com iogurte aromatizado às cebolinhas;

Bresaola (e para quem não sabe, trata-se de uma espécie de salame, de carne bovina salgada e secada) da parte da ponta da anca, com salada especial e nozes;

Controfiletto de carne bovina ai ferri;

Filé de boi ai ferri;

Queijos mistos;

Paillard de novilho ai ferri;

Presunto cozido de Parma, um pouco defumado na madeira;

Presunto crú de Parma;

Salmão defumado;

Bifinhos de novilho ao limão;

Truta defumada com saladinhas especiais da época;

Pudins;

Sorvetes;

Iogurtes;

Sucos de fruta;

Bolos;

Tortas.

Frutas – maçã, pera, kiwi, laranja, tangerina, abacaxi, pêssego, caqui etc.

 

Enquanto leio para os meus caríssimos leitores o menú suplementar àquele outro normal de massas várias, risotos, pratos de peixes e mariscos os mais distintos, pratos de carne de boi e de vitelo, coelho, frango, galinha, e também sopas, muitas sopas e verduras e legumes e saladas as mais coloridas, empenhado em lhes pedir sempre e sempre desculpas por ter escondido tão longamente essas revelações, enquanto leio a lista epicuréia vejo que muitos, muitíssimos deles se me aproximam fisicamente. Então descubro que uma grande e magnífica mesa já está ali posta. Anna Rosa, com sua irmã Mariella, pegaram Gianni pela mão e começaram a preparar tudo. Logo chegou meu irmão Ariel e com ele minha cunhada Ildete, mais os meus sobrinhos Rossana, Gisele e Rodrigo. A mesa se alarga sempre. Chegam meus primos, Malusa e Quim, Penha e Luís, mais outros três sobrinhos, Nélia Paula e André, com Nelly; Amanda, com Liana. Começa uma grande festa, cada um chega com mais pratos. Todos estão convidados, parentes, amigos, conhecidos, leitores de todas as partes. Vão chegando, e logo se sentam e comem e bebem, pois não falta vinho e também a cerveja. Chegam de todas as partes, vindos das águas distantes e das estradas mais compridas, de navio, avião, carro, trem. Logo vejo meus amigos de Veneza, todos à mesa. Ali estão comigo Lodovici, Roberto Marina e Luca, Maurizio e Michela, Alberto e Mariele, Candido e Gavina, Vilma e Vega, Manuela Francesco e Antonio Rizzoli, Sandro Meccoli, Alfredo e Maria Camilla Bianchini, Gabriella e Marino Peruzza, Gabriella e Giorgio Zaninni, Vittorio Pescatori, Lida e Gianni Perini, Laura e Ennio Gallo que é ao mesmo tempo o romancista Paolo Barbaro, Gianguido e Louise, Paola Brugnera, Maria Luisa e Philip, Margit, Giusi, Marina Storaci, Adriana Vigneri, Bruna Pieresca, Silvana, Donatella, Gabriele e Grazia, Lilli e Silvano, Mathilde Dolcetti, Bianca, Alberta e Sergio Perosa, Marra, Rino, Mario Togni, Pajalich, Anna Maria Carpi, Eugenio Bernardi, Gianni Vianello, Mario Vianello, Gigi Rincicotti e Donatella, Aldo Bresciani, Matteo Lo Greco e Julieta, Sandro Castro, Romero Pilar e Milena, e quem, lá mais adiante? Claudio Massaria, Dante, Alberto, Otello e Daniela, Piero e Federica, Rossela e Marino Zorzi, Angelo e Silvana, Bruno e Isabella, Irma e Umberto Troni, Carlo Dell’Oliva, Bruna e Piero Salata, Nilse e Roberto Galante, Dorotea, Tomaso Raso, Flavio e Andreina, Luigi Milone, Stefano e Roberto, Billy Boelhower, dr. Raviele, dr. Venturini, dr. Risica, dr. Tenderini, dr. Lotter. Todos os venezianos se reunem num prolongamento da mesa que se faz cada vez maior e Roberto Fiorentini com o violão toca e canta suas canções em dialeto, nas quais se figuram os velhos doges e a vida quotidiana da cidade. Depois, Francesco Rizzoli com seu violão clássico quase mandolim, enquanto os outros continuam a comer sem hesitações, entoa os arabescos de um “estudo” de Villa-Lobos. Por que, Luca Fiorentini, você não trouxe o violoncelo? teriamos podido escutar uma “Bachiana” do brasileiro, não? De outras partes da Itália chegam mais amigos: Sandra e Rita, Giuliana, Gianpaolo e Marco Paolo, Bianca Ferrini, Rivarola, Donatella Pini, Sylvia Truxa, Simonetta, Rosanna, Dedo e Marina, Patrizio e Patrizia, Giacobelli, Paola Bottalla, Gianfelice Peron, Maurizia Rossella, Vincenzo Milanesi; Roberto Vecchi, Piero Ceccucci, Silvano e Sônia, Giulia e Beppe Tavani, Ettore, Nello Avella, Giuliano Soria, Luciana Stegagno Picchio, Ilaria Caraci, Bellini, Belén Tejerina, Beppino Bevilacqua, dr. Citroni, dr Velo. São muitos os que chegam e muitos deles estão lá no fundo da mesa de tal maneira que quase não os distingo. Mas eles estão lá. Anna Rosa, Mariella e Gianni continuam a correr daqui pr’ali, procurando acomodar os recém-chegados. Tranquilos descem diretamente dos aviões para a mesa já sem fim os que chegam de mais longe: Manuel Simões, Isabel e Emídio, Carlos Loures, José Saramago, Fernando Martinho, Manuel Alegre, Vasco Graça Moura,  Casimiro de Brito, Ana Hatherly, Fernando Gil, Arnaldo Saraiva, Anibal Pinto de Castro, Carlos Ascenço André, Pires Laranjeiras, Rita Marnoto, Maria Aparecida Ribeiro, Amadeu Torres, Fernando Cristóvão, Gil Teixeira Lopes, OPS, Keith Botsford, Willy Acher, Florent Kohler, Sylvie, Annamaria e Richard Schwaderer, Goetz Back, Max Back, Berthold Zilly. Mais de longe ainda, depois de todos os parentes e amigos que logo acorreram ao descobrir da mesa, chegam mais brasileiros, amigos de longes tempos, da minha viagem de sempre: Nadyr, Helena Maria, Juarez, Maria das Dores, Waldir, José Roberto e Sônia, Thiago e Terezinha, Luiz Fernando e Eliete, José Botafogo, Anita e Elias Kaufman, Benjamim Silva, Adir Botelho, Lena Bergstein, Gerson Tavares, Cilene e Paulo Roberto Pereira, Ivan Pinheiro Machado, Carlos Dimuno, Carlos Vaz, Bruno Contarini, Flávio Vieira de Sousa, Gilberto Terra, Percília José Augusto e Neusa, Rosinha Flávio e Lucinha, Nilma, Mirian de Carvalho, Lúcia Riff; e os mais recentes no tempo, Andréia e Bebeto, Norma e Francesco. De um grande avião da VARIG desce um grupo que não parece ter fim  Nélida, Zélia, Nejar e Elza, Olinto e Zora, Niskier, Bechara, Evaristo, Padilha, Alberto da Costa e Silva, Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar, Ledo Ivo Gonçalo e Denise, Venâncio, Secchin, Murilo Melo Filho, Ivan Junqueira, Eduardo Portella, Sérgio Corrêa da Costa; e mais, Domício Proença Filho, Cláudio Murilo, Diogo Mainardi, Marly de Oliveira, Lélia Coelho Frota, Suzana Vargas, Ferreira Gullar, Armando Freitas Filho, Adriano Espínola, Anderson Braga Horta, Gilberto Mendonça Teles, Wilson Martins, Fábio Lucas, Maria Helena Ribeiro da Cunha, Massaud Moisés, José Aderaldo Castelo, Hernani Donato, Mauritônio Meira, Affonso Romano de Sant’Anna, Silviano Santiago, Marco Lucchesi, Kleber Leite, Alexei Bueno, Pedro Lyra, Fernando Py, Assis Brasil, Wander Mello Viana, José Clemente Pozenato, Flávio Loureiro Chaves, Miguel Sanches Neto, Alcides Buss, Salim Miguel, José Louzeiro. Logo todos os setores da grande mesa, que se faz sempre maior, todos se falam como se essa fosse uma “tavola rotonda”. Silviano Santiago e Sergio Perosa se abraçam e começam a recordar quando há alguns anos passados, juntos numa comissão composta de críticos literários de vários países, batalharam e conseguiram nos Estados Unidos que um de seus prêmio literários mais importantes a nível internacional fosse dado a João Cabral de Melo Neto; pena, diz Perosa, que ele tenha morrido logo depois, porque após o prêmio americano era um candidato seguro para conquistar o Nobel. Giuliano Soria se alegra festosamente pelo reencontro com Zélia Gattai Amado e lhe recorda   que maravilha foi o nosso congresso internacional em Turim pelos sessenta anos de literatura de Jorge Amado!

 

Todos conversam entre si nas tantas línguas e não somente com os vizinhos de mesa mais próximos; muitos deles se levantam de encontro a um outro mais particularmente procurado e então, sem parar de comer as sua coisas, caminham longamente, pois os comensais são como que sem fim e formam um movimento localizado que pode levar até mesmo a imaginar, pelo alargamento infindo da mesa de festa, que eles não estão propriamente ali sentados, mas que, por serem tantíssimos, como que vão na direção de suas terras de origem. Mas em verdade ali estão festosamente, na estrada de Veneza, todos à mesa, com os pratos que se renovam, os gostos e sabores que se revelam sem cessar aos paladares prontos para receber mensagens insuspeitadas.

 

Eu caminho ao encontro de todos e é como caminhar na minha própria direção.

 

Eles são dezenas, são centenas e centenas, e eu me sinto unido a essa multiplicidade como num encontro com a vida. Comamos, amigos, comamos!

publicado por Augusta Clara às 22:00
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