(Conclusão)
João foi criado pelo padre Dinis e por uma freira que diz ser irmã do padre. Tem catorze anos quando descobre que a mãe, cuja existência ele ignorava, é a condessa de Santa Bárbara, que o marido sequestra e maltrata; mais adiante revelam-lhe os amores contrariados da mãe. O avô mandara matá-lo logo que nascesse, porém o padre Dinis convenceu Come-Facas a vender o recém-nascido por quarenta peças. Quinze anos mais tarde, quando João descobre o passado familiar, este Come-Facas volta a aparecer, chama-se Alberto de Magalhães, é rico, elegante e misterioso, há quem o diga filho de D. João VI; corresponde a Rodolphe d'Os Mistérios de Paris e, como ele, mostra-se tão à-vontade na ralé como na aristocracia. Luta com D. Martinho de Almeida por defender a honra da condessa de Santa Bárbara, revela-se um homem superior e complementar do padre Dinis. O padre também acumula identidades múltiplas, sendo o cigano que compra a criança e o Sebastião de Melo que aparece nos salões da aristocracia, entre outras máscaras e mistérios; virá a descobrir-se filho de um frade que, como por acaso, participa com ele na regeneração ante mortem do conde de Santa Bárbara. Quando este morre, a condessa, como Fleur-de-Marie, como Georgina, recolhe-se num convento; os conventos eram a providência dos romancistas. Muito a propósito, pois o rapaz é pobre, Alberto de Magalhães faz a Pedro da Silva, João até aos quinze anos, o dom de quarenta contos de réis, cujos rendimentos permitem enviar o jovem para um colégio francês, não sem antes o padre Dinis prevenir, a mulher das suas primeiras afeições há-de salvá-lo ou perdê-lo (página 299).
Surpreende-se o leitor. Parece que o padre adivinha... Não adivinha, não senhor: a alternativa é retórica, neste romance as mulheres são fatais e, por consequência, caso se apaixone por uma mulher, Pedro da Silva está perdido. Outra convenção ficcional. Ângela – basta este exemplo – foi a desgraça do amante e do marido.
Quando esta mulher entra enfim no convento, onde se espera que não faça mais vítimas, encontra Adelaide, a qual narra a história de outra freira, Francisca Valadares. E o primeiro volume conclui-se quando Ângela e Adelaide descobrem que o padre Dinis é o homem fatal (ah...) pelo qual Francisca Valadares morreu de amor.
- É ele... Donde conheces este homem?
No filme de Raul Ruíz vemos um leitmotiv, o teatro de brinquedo no qual João ensaia as peripécias com pequenas figuras. São isto na verdade as personagens de Mistérios de Lisboa: seres de cartão. Por exemplo, o conde de Santa Bárbara que, durante quinze anos, torturou a mulher, brutal, grosseiro, monstruoso, parte para a guerra no exército de D. Miguel mas logo regressa, fingindo-se doente, com saudades da criada, mas de súbito adoece, arrepende-se das vilanias e morre compungido. O leitor que, antes, se esforçava por acreditar naquele demónio, os terrores da condessa com o punhal sobre o coração (página 47), o que eu tenho sofrido há doze anos, (página 63), os ódios sanguinários do meu carcereiro (página 66), pois, saturado, o leitor já não acompanha a transmutação do diabo em anjo.
Neste romance não há povo; há criados. Explorados, de certa maneira, só os filhos segundos da aristocracia, que os pais se recusam a dotar, obrigando as raparigas a entrar no convento; e, se os morgadios tivessem sido abolidos a tempo, Ângela ter-se-ia casado com o homem que amava – não havia Mistérios de Lisboa e ficava Raul Ruiz sem argumento. Bernardo, um ex-criado que socorre, correndo riscos, a condessa de Santa Bárbara, quando é recompensado pelo patrão, que antes o ameaçava, não tira proveito da herança. A esmola avultada que recebeu despendeu-a em missas gerais por alma de seu amo (página 278). Bom servo! Em Mistérios de Lisboa não há miséria nem revolta pois em breve o céu recompensará as vítimas devotas. O que são as perseguições aqui em baixo nestes três dias de peregrinação? (página 75), inquire retoricamente o padre Dinis. E Ângela, que aprendeu a lição, recomenda ao filho (página 296): Fita os olhos no céu, meu filho.
Caminha sempre, elevando-te para lá. Isto aqui é um dia... Neste romance há diálogos sobre o amor de Deus longos como uma espera no Centro de Saúde da Penha de França (extensão Seguros). Por exemplo. Ou sobre o amor de mãe, este amor tão santo, este reflexo da ternura de Maria Santíssima, é o vínculo que prende as delícias dos anjos com as raras alegrias da terra (página 95). Outro exemplo. A heroína do primeiro volume é um anjo neste mundo extraviado e o leitor acompanha-lhe o percurso deste tanque de lágrimas até à antecâmara do céu. Diálogo entre Ângela e o Padre Dinis (página 246):
- Esperanças!
- No reinado dos que sofrem. Há muito que amar fora do mundo. Verá o que é a tranquilidade do amor de Deus. Quer entrar em um convento?
- Ah! sim, um convento, a minha ambição mais querida... um convento, meu bom amigo...
Assumo a responsabilidade de saltar por cima do segundo e do terceiro volumes dos Mistérios de Lisboa. Passo directamente aos outros livros de Camilo Castelo Branco. A vida é curta e vastas as bibliotecas.
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau