(Continuação)
Na primeira imagem do filme de Raul Ruiz vemos subir um cenário com o Aqueduto das Águas Livres. Lisboa é exactamente isto na obra de Camilo Castelo Branco: um cenário de papel. Não encontramos um nome, Lapa, Chiado, Rua Augusta, nem colinas nem varinas, nada que nos situe em Lisboa; apenas quintas e conventos.
E, na página 251 do volume I, na rara vez em que o narrador descreve um espaço, logo nos afoga o prazer na dúvida. Cito: Os primeiros raios do sol de Agosto douravam o castelo de Palmela. O céu límpido, o Tejo azulado, e o murmúrio matinal da natureza encantavam a alma naquele recolhimento íntimo, remanso providencial de suavíssima tristeza.
Que pensa o leitor? Primeiro grande mistério. A heroína encontra-se no Beato, vai de Lisboa a Santarém para perdoar as violências ao marido... No que me toca, duvido bastante que, mesmo sem prédios, mesmo com um céu límpido, seja possível; mas, se algum leitor me puder explicar como é que, do Beato António, se vê o castelo de Palmela à beira-Tejo, se põe um olho no Tejo e o outro em Palmela, por favor, não me prolongue a inquietude.
Camilo Castelo Branco publicou Mistérios de Lisboa n'O Nacional de 4 de Março de 1853 a 31 de Janeiro de 1855, isto é, dez anos depois do estrondo d'Os Mistérios de Paris. O que havia de raiva social na obra de Eugène Sue aparece aqui transmutado em esperança no além. Trata-se de praticar um resto de surf na onda descendente, aproveitando o título como chamariz e reciclando uma ou outra figura que, dez anos antes, já parecia estereotipada a Almeida Garrett.
A vida atribulada de Camilo Castelo Branco poderá decerto explicar algumas bizarrias do romance – das quais aliás o autor tem consciência. A narração começa com um capítulo intitulado Prevenções onde, como num prefácio, um narrador na primeira pessoa do singular afasta a responsabilidade:
Este romance não é meu filho, nem meu afilhado.
Se eu me visse assaltado pela tentação de escrever a vida oculta de Lisboa, não era capaz de alinhavar dois capítulos com jeito (página 5).
Por conseguinte, garante este primeiro narrador, o texto foi-lhe enviado do Rio de Janeiro e não é romance mas um diário de sofrimentos, verídico, autêntico e justificado (página 6). Aliás quem lho enviou também não é ainda o narrador da história mas apenas um anfitrião que em terras brasileiras acolheu aquele homem, uma figura singular (página 7) que ao morrer, em forma de agradecimento, lhe deixou as memórias: dê-se ao trabalho de ler, em horas de ócio, esses cadernos de papel que por lá estão, e poderá então dizer que o seu hóspede, silencioso em vida, conversou muito consigo do túmulo (página 14).
Por conseguinte, embora apresentada por um romancista, não vão ler uma história ficcional. Este subterfúgio narrativo foi, ao longo do século XVIII, de Diderot a Restif de la Bretonne, não só uma das ferramentas mais usadas no reforço da verosimilhança, mas também uma estratégia para desresponsabilizar o autor. Após este prefácio fictivo, o eu chama-se João porém, mais adiante, a mãe muda-lhe o nome e ele passa a ser Pedro da Silva. O responsável pelas incoerências e inverosimilhanças do texto é portanto Pedro da Silva – defunto. E esta morte é a maior garantia de veracidade: lemos as últimas palavras de um condenado. Mentir para quê?...
Vemo-nos forçados a aceitar o pacto de verosimilhança.
(Conclusão no próximo número.)
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