Descobri Os Mistérios de Paris de Eugène Sue quando, aos dezassete anos, li Viagens na Minha Terra – que contêm afinal tudo. Publicado no Journal des Débats de Junho de 1842 a Dezembro de 1843, foi o primeiro grande sucesso popular com centenas de milhar de leitores pelo mundo, ouvido por analfabetos, comentado por ministros, o antepassado glorioso dos folhetins radiofónicos e das telenovelas. E neste momento ainda representam Os Mistérios de Paris no teatro de verdura do Bosque de Boulogne... Almeida Garrett escreve Viagens na Minha Terra quando a misteriomania atinge o ponto culminante e é compreensível o tom com se refere às três personagens principais: Fleur-de-Marie, Chourineur e Rodolphe (este, ao mesmo tempo, herói dos tugúrios e grão-duque de Gérolstein).
Não pode ser clássica, está visto, a tal descrição. – Seja romântica. – Também não pode ser. – Por que não? – É pôr-lhe lá um Chourineur a amolar um facão de palmo e meio para espatifar rez e homem, quando encontrar uma Fleur-de-Marie para dizer e fazer pieguices com uma roseirinha pequenina, bonitinha, que morreu, coitadinha! E um príncipe alemão encoberto, forte no sôco britânico, imenso em libras esterlinas, profundo em gíria de cegos e ladrões... E aí fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que invejar à mais pintada e da moda neste século elegante, delicado, verdadeiro, natural!
Notamos em Almeida Garrett uma ironia não isenta de admiração. O escritor sabe que, não obstante o constrangimento da moda, a verosímilhança acabará por vencer, por isso cita a frase de Boileau: Rien n'est beau que le vrai. (Só a verdade é bela.) E descreve, diz ele, o café como o viu.
Os Mistérios de Paris é uma obra precursora do romance realista. A violência das instituições, a miséria e a linguagem do povo ascendiam pela primeira vez ao estatuto de tema literário, eram lidos e debatidos por toda a sociedade – e amplificavam de modo espectacular as teorias socialistas. Ainda hoje os especialistas debatem se Os Mistérios de Paris terão contribuído para a Revolução de 1848 ou se o sucesso da obra pode ser explicado pelo ambiente social que antecedeu esta revolução; é provável que tanto uma hipótese como a outra seja verdadeira. O folhetim foi acompanhado e prolongado por canções e imagens populares, foi repetidamente adaptado ao teatro, teve (vinte anos mais tarde) um descendente ilustre, Os Miseráveis de Victor Hugo – e deu à luz uma ninhada de pequenos mistérios. Mistérios de Londres. Mistérios de Nápoles. Mistérios de Munique. E... Mistérios de Lisboa.
Que eu nunca tinha lido. A desgraça póstuma de Camilo Castelo Branco é que as heroínas dele nos são hoje tão estranhas como as de um clássico chinês... (Os leitores dir-me-ão que Georgina e Joaninha não parecem mais familiares – e têm razão. Mas Viagens na Minha Terra oferece, para além da Menina dos Rouxinóis, muitas pontas por onde ainda lhe pegamos.) Ora no precedente 1° de Janeiro, dia de imprudências e megalomanias, dei-me como tarefa para 2011 a leitura das obras de Camilo Castelo Branco – e comecei logo a ler uma tradução francesa das memórias de Winston Churchill, Mes Jeunes Années, quase setecentas páginas.
Seguiram-se diversos outros livros. Só em Maio me lembrei de Camilo Castelo Branco. Reli, com cautela, Novelas do Minho, que mais de uma vez havia lido, não comecei mal, ainda gostei da linguagem, da ironia, do sarcasmo, como se costuma dizer a propósito de Camilo – confirmo. No dia 19 de Maio o canal Arte transmitiu as seis horas do folhetim de Raul Ruiz, Mystères de Lisbonne. Vi o filme. E – agora ou nunca – lancei mãos à obra comprando os três volumes de Mistérios de Lisboa (ed. A. M. Pereira, Lisboa, 1969). Acabo de concluir a leitura do primeiro tomo.
(Continua)
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau