Costumo ler os jornais quase integralmente. Leio os artigos que me interessam porque me interessam e leio os
outros pela linguagem ou por conterem uma faceta da política, da sociedade, da actualidade que não deixa de me interessar. Quando a leitura não acompanha o ritmo de compra, mais os jornais e revistas que, de uma ou de outra maneira, me vêm parar às mãos, Expresso, Diário de Notícias, Visão, Le Monde, Libération, Nouvel Observateur, recorto o que não leio de imediato e vou constituindo dossiers cuja leitura intercala com a de livros, resultando dos movimentos desta pilha eu ler, por vezes, com cinco anos de atraso, algum artigo ou crónica – o que aliás, ao contrário do que se pode imaginar, não raro contribui para o prazer do texto. Alegrias que doravante efémeras... Das quais pretendo abusar enquantohouver jornais impressos em papel.
Acabo agora de ler, com apenas dois meses de atraso, um artigo de Pierre Assouline publicado no jornal Le Monde no dia 24 de Abril de 2011: La mémoire vide des temps informatisés (A memória vazia dos tempos informatizados). Há em França um Instituto dos Textos e Manuscritos Modernos (ITEM) que criou e tem desenvolvido a genética textual, uma disciplina que estuda os rascunhos, cadernos, provas, projectos, correspondências, sucessivas versões, todo o material acumulado na criação de uma obra.
Pierre-MarcBlasi, director do ITEM, dá o alarme pois, desde que os escritores se servem de computadores, desapareceram estes documentos. Os autores modificam o texto no ecrã, correspondem por via electrónica, arrumam os diários como os projectos em pastas informáticas, perdem-nos numa pen ou, quando mudam de computador, abandonam o que parece inútil. Podíamos todavia pensar que uma parte será preservada. A verdade é que, se ainda hoje lemos no papiro e no pergaminho, em contrapartida os raros documentos legados há trinta anos aos arquivos em suporte electrónico não podem ser estudados por ter desaparecido o material para os ler. A validade média de uma pen ou de um disco rígido não ultrapassa os cinco anos, além situa-se um futuro tecnológico que os tornará obsoletos e portanto inexistentes.
Com os arquivos deixados pelos séculos XIX e XX há trabalho para gerações de especialistas. Mas nisto reside o alarme do director do ITEM: Tornamos o futuro órfão de nós. Um futuro com avós, com bisavós, com o século XVIII – nós não faremos parte desta genealogia. Ou, quando muito: de uma maneira menos complexa.
Este artigo fez-me reflectir já que, como os outros escritores da minha geração, também tenho escrito os romances no ecrã – da primeira à última palavra. A Difel não fez provas dos meus três primeiros romances; e eu devolvi à editora as dos seguintes sem tirar fotocópias. Enviei cartas até por volta do ano de 2002 mas, logo que tive endereço electrónico, cessei a correspondência manuscrita ou impressa em papel; e o correio electrónico não é, enviado com outros meios, o que teríamos escrito no papel: a forma, o fundo e o suporte são indissociáveis.
Agora a minha única escrita com caneta é o diário e, claro, os blocos nos quais vou registando o que vejo, museus, inscrições, graffiti, o que oiço, conversas, pérolas da rádio, que mais tarde, não raras vezes, serve de ponto de partida ou de passagem para a escrita.
Quando li o artigo de Pierre Assouline, a minha primeira reacção foi: universitários a meterem o nariz na génese dos meus textos? Era o que faltava! Não saio de casa nua... Depois lembrei-me que o romance cuja escrita concluo, que tem 251 páginas, já teve cerca de 350. Haverá portanto uma parte que o leitor não lê mas, para mim, de certa maneira, lá continua, aquilo que no cinema ou na fotografia se designa com o termo francês hors-champ. Aquelas cem páginas não são indispensáveis para contar aquela história mas permitiram-me conhecer as personagens para além do romance e por conseguinte, de certa maneira, embora não façam parte dele, pertencem-lhe.
Em contrapartida, desde que comecei a escrever esta crónica, suprimi um parágrafo na introdução, no qual me tinha deleitado, de maneira inútil, sobre a leitura dos jornais. Se houvesse feito um rascunho no papel, este parágrafo talvez lá estivesse, recuperável ainda que riscado; eu copiei-o para outra pasta e, logo que conclua a crónica, suprimo-o. Para quê guardar documentos insignificantes?
Antigamente, quando os escritores se serviam de papel, tinta e músculos, o texto era muito pensado antes de escrito. Em 2011 as obras continuam a ser pensadas mas o acto de escrever tornou-se tão rápido que a frase acompanha o ritmo do pensamento. Há por consequência uma fase de produção do texto que antes se fazia
mentalmente e agora se faz visualmente. O que seria de nós – e de quem estuda a genética dos textos – se guardássemos rigorosamente tudo?
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