Sexta-feira, 24 de Junho de 2011

LIÇÕES DE ETNOPSICOLOGIA DA INFÂNCIA - XXI, por Raúl Iturra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

http://www.youtube.com/watch?v=NZnugRzs0xU

Antonio Mascagni Cavalleria Rusticana

 

 

 


 

Sétima Lição

O PEQUENO PECADOR...

 

 

Olhos felizes, sorrisos brilhantes. Silêncio no beijo. Respeito na carícia. Uma mão doce a percorrer o corpo. Suavidade, ternura, sedução. Silêncio: uma criança está a ser projectada. O imaginário de dois, transferido a um entre momentos de sedução, brinca e pensa: como é que será, os teus olhos, a minha boca, o teu andar? A felicidade prometida no Jardim do Éden, a felicidade que nasce nesse primeiro encontro? Quando um corpo chama o nosso, faz sentir a nossa pele rizada, a querer correr dentro da outra uma e outra, e outra vez, com doçura, com respeito, com a alma a brilhar[1]. A paixão. O amor. O presente dos novos, o futuro dos velhos. A lembrança dessa outra pessoa que nos faz sentir a alma quente e terna, a cabeça perdida, ideias que iluminam e aquecem a tarde de um Domingo de Inverno. O Jardim de Éden. O paraíso antes, durante e depois do tema que nos leva a estas ideias: a glória de sermos pais... um dia, em breve. Já: « À partir du moment où on est deux (couple), on est déjà trois, même si l’enfant n’est pas encore pensé consciemment. Il y a toujours dans le désir d’avoir un enfant un besoin personnel à assouvir»[2]. A paixão da afectividade faz-nos sentir a urgência de nos projectarmos e eternizarmos dentro de um outro ser humano, porque o nosso amor é tão grande, que dois não são suficientes para poderem guardá-lo. Eis o motivo desta frase e de todo o texto que citei no início da lição quarta.

 

A afectividade apaixonada, conceito pouco usado entre os analistas que procuram uma outra parte do texto citado, para podermos começar no Jardim do Éden, desencadeou o motivo do título desta lição. A realidade contextualiza o amor, trava a paixão e faz andar pela vida como se o cuidado de olhar nos olhos do outro pudesse perder-se ao entrar um terceiro na relação a dois. Um terceiro desejado pelo par, parte de si próprios, plenitude dos laços de ternura com espaço afectivo para o cobiçar para nós e guardá-lo dos outros, sentimentos mútuos de paixão materializados num novo ser, que passa a ser querido, mas dentro de uma grandiosidade que apenas García Márquez é capaz de descrever para um sentimento amoroso. Como o amor que descreve à Mama Grande, sem romance, sem a primeira sedução que muda para outras hierarquias: “Poco antes de las once, la muchedumbre delirante que se asfixiaba al sol, contenida por una elite imperturbable de guerreros uniformados de dormanes guarnecidos y espumosos morriones, lanzó un poderoso rugido de júbilo. Dignos, solemnes en sus sacovelas y chisteras, el presidente de la república y sus ministros; las comisiones del parlamento, la corte suprema de justicia, el consejo de estado, los partidos tradicionales y el clero, y los representantes de la banca, el comercio y la industria, hicieron su aparición por la esquina de la telegrafia. Calvo y rechoncho, el anciano y enfermo presidente de la república desfiló frente a los ojos atónitos de las muchedumbres que lo habian investido sin conocerlo y que solo ahora podian dar un testimonio verídico de su existencia. Entre los arzobispos extenuados por la gravedad de su ministerio y los militares de robusto tórax acorazado de insignias, el primer magistrado transpiraba el hálito inconfundible del poder…la mama Grande estaba entonces demasiado embebida en su eternidad de formaldehido para darse cuenta de la magnitud de su grandeza…estaban asistiendo al nacimiento de una nueva grandeza. Ahora podía el Sumo Pontífice subir al cielo en cuerpo y alma…”[3].

 

 

Esta transferência do amor à mama grande para o encantamento das actividades do imenso grupo social é uma análise da paixão que acontece entre seres humanos. A Mama Grande era amada, temida, esperada, respeitada, obedecida, desenhada, a sua palavra era um Edito à Justiniano, as suas ideias eram lei e não havia rapariga que pudesse mexer sem o seu conhecimento nem homem a agir sem a sua autorização. Como o bebé que nasce na ideia dos pais, sem os pais cultivarem primeiro um carinho calmo e sereno entre eles, que possa levar a separar duas actividades que os teóricos e a lei esquecem: a de pais e a de cônjuges, como me ocorrera um dia escrever[4]. Os pais são os ancestrais das crianças, devem-lhe carinho e cuidados, alimentos, estudos e novas ideias, dentro de uma relação que, até hoje me parecia eterna; os cônjuges, são apenas os amantes de olhos nos olhos que podem durar até ao dia da morte de um deles, podem ou não ser pais das mesmas crianças, ou podem, recorrer à nova instituição denominada divórcio, lei que não existe para separar a paternidade da filiação, excepto nas heranças, mas não na consanguinidade. Um matrimónio pode ser desfeito, uma paternidade dura até que permaneça na lembrança do último parente conhecedor dessa paternidade – maternidade, ou as fotos, ou a árvore genealógica, no carinho e na lembrança. Na materialidade dos afectos. O que o autor nos ensina é a passagem de sensações e carinho de uma actividade a outra.

 

É o que Guthrie nos diz no texto francês até agora comentado: «Travail de séparation. Les parents confrontent l’enfant imaginaire à l’enfant réel. Un processus de deuil commence. L’enfant existe. Le processus de deuil doit être achevé à l’accouchement. L’enfant naîtra réel, autonome et différent. La femme pense à son accouchement, craint les douleurs, le risque de l’enfant mort-né, ou anormal ». O trabalho de separação mencionado é uma realidade, um golpe da realidade, o começo da análise da diferença entre a criança imaginária, idealizada pelos progenitores para complementar uma falta de acompanhamento entre os pais, essa ideia de Criação que parece estar no pensamento de todas as culturas, como Alice Miller e Françoise Dolto analisam: o luto pela criança aparece, começa, porque o ideal não existe mais e o que nasce passa a ser um problema quer para a casa, quer para a vida social e, às vezes, o motivo do afastamento dos cônjuges por serem progenitores[5].

 

Este tipo de análise faz-me pensar a ideia central da nossa cultura o nosso comportamento e o comportamento regulamentado quer pela lei, quer por textos sagrados que, dentro da cultura, têm força de lei. O próprio Wilfred Bion começa a analisar as formas pelas quais uma criança pode passar a ser um torvelinho no meio dos outros e no meio dos adultos. Se lembrarmos bem, Bion propõe que todo o ser humano é uma finitude ou é finito, um 0, do qual se parte para aprender com a experiência. Por outras palavras: nas formas religiosas de entender a mente de Wilfred Bion, todo o ser humano está subordinado a grupos, de cuja experiência aprende, como define, ainda discípulo de Melanie Klein, nos anos 40 do Século passado[6]. Texto no qual propõe que o entendimento dos fenómenos sociais são possíveis na medida que o inconsciente é revelado entre todos e fazem História ou consciente, o que denomina a Quinta Hipótese. É a ideia para entender as formas de tratar as pessoas, entre as quais as crianças que, como Klein[7] já propunha, funcionam melhor em grupo, especialmente do mesmo tipo de origem. O infinito pode ser trazido ao finito por meio do grupo, como explica no já citado, Learning from experience de 1962. A criança é essa finitude que dentro do grupo familiar pode ter memória e perder a ideia de plenitude e omnipotência que a caracteriza, quando separada da sua família. Se assim não acontecer, a criança pode desenvolver uma neurose uma histeria para chamar a atenção dos seus adultos. Quase é possível afirmar, a partir do texto citado de Klein, que em grupo há possibilidade de entender a realidade que existe para a menina que relata no seu texto de 1946. A criança exibe um comportamento que ela denomina posição paranóica, relativa ao facto de não se sentir amada pela mãe, não ter acesso ao seio e ao seu alimento, e que é através do jogo e da brincadeira que consegue entender o sentimento de perseguição que os grupos lhe causam. Porque as crianças têm um superego – uma memória de si próprias e uma auto-estima maior do que a dos adultos, sem ter vergonha de confessar o que não lhe parece claro. Este facto faz mal ao adulto, incapaz de sentir uma realidade perante si sem ter que disfarçar por motivos de interacção social. É preciso recordar que os factos se desenrolam na época da guerra, que Freud denomina Thanatos[8], isto é, o princípio não refutado da procura do prazer e da alegria, de vida, que criança como Richard está a procurar. Bion, desenvolve a ideia de que as crianças dentro do jogo de História desenvolvem o problema muito complexo e preocupante para os pais de trazer o infinito para si e desenvolver o sentido do poder e da omnipotência, que causa estragos entre a população infantil e a população adulta. A criança não obedece às ideias dos seus pais por pensar que estão enganados e eles, os mais novos, têm a razão. O próprio Bion desenvolve uma ideia a partir deste facto e a sua hipótese do saber 0 ou infinito e o saber finito que as pessoas têm e diz que ter grupo é ter uma mente, e a criança tem um grupo mais semelhante entre si do que os grupos adultos. Os adultos têm uma epistemologia de opção de cálculo e lucro, como mencionei e a criança tem em conta a emotividade e o que pode ganhar com uma manipulação da mesma[9]. A mente da criança fascina Bion, que de imediato retira mais um saber sobre os mais novos rebeldes com os adultos: When two characters or personalities meet, an emotional storm is created. If they make a sufficient contact to be aware of each other, or even to be unaware of each other, an emotional state is produced by the conjunction of these two individuals, these two personalities, and the resulting disturbance is hardly likely to be something which could be regarded as necessarily an improvement on the state of affairs had they never met at all. But since they have met, and since this emotional storm has occurred, then the two parties to this storm may decide to "make the best of a bad job”[10]. Esta citação acrescenta ideias sobre o nosso jovem pecador. Porque o texto de Bion permite, muito embora não tenha falado directa e exclusivamente de crianças, dar uma ideia mais importante do que Klein tinha definido ao falar das reacções próprias dos mais novos: o afastamento de uma forma de comportamento esperada destes pequenos, normalmente de união com adultos, subordinação aos mesmos e aceitação do que os mais velhos dizem. Das análises feitas por estes eruditos, é possível aceitar a afirmação de Bion que refere que a verdade é um facto contingente – não fixo, não provado – mas fundamental. Fundamental porquê? Porque reflecte a forma cultural de entender o contexto da verdade que está definido pelo acontecer histórico que resulta da passagem do inconsciente à História e do consciente ao factual quotidiano.

 

Como diriam Freud e Bion: o primeiro, a verdade é o prazer; o segundo, a antítese de escolher o sofrimento para entender a verdade do infinito e poder preencher os Alfa e Ómega da realidade quotidiana. Conceito vazio na cabeça dos mais novos, que acabam por tomar os seus posicionamentos, bem longe do que os adultos iludidos esperavam na ilusão da paixão, como foi descrito no começo, quase como num conto de fadas. A procura do sofrimento, de que fala Bion, para explicar a verdade, não é gratuidade: permite o crescimento mental na procura de saber encontrar um caminho alternativo à frustração. Se Freud falava de Eros e Thanatos, Klein de posicionamento paranoide e esquizoide – note-se bem, não de paranóia ou esquizofrenia – Bion de procurar alternativas à frustração, podemos concluir perante estas três ideias básicas para a terapia dos nossos dias que o acusar os pequenos de quererem matar o pai, ter ciúmes da mãe, sentir perseguição da família, pretender omnipotência, são realidades bem mais positivas que revelam uma mente infantil capaz de crescimento e não de doenças ou dos modelos neuróticos que Alice Miller critica no seu livro O saber proscrito, várias vezes citado[11].

(Continua)

[1] « L’histoire de l’enfant commence dans l’imaginaire des parents. On l’imagine grand, beau, fort et plus tard riche. A partir du moment où on est deux (couple), on est déjà trois, même si l’enfant n’est pas encore pensé consciemment… » Psychiatrie Infirmière,  Website http://psyciatrieinfirmiere.free.fr/infirmiere/formationInfirmiere/psychologie/cours.htm

[2] Ver nota anterior e as obras de Alice Miller referidas, especialmente o texto preparado por mim, tendo por base a minha participação no projecto The Natural Child Project: All children behave as well as they are treate em http://www.naturalchild.com/alice_miller\ ou Los funerales da la Mamá Grande de  Gabriel García Márquez, 1974, Bruguera, Barcelona, website www.ciao.es/Los_funerales_de_mama_grande__144017 -

[3] García Márquez, nota 2, páginas154 a 157, intercaladas por mi.

[4] Iturra, Raúl, Junho 2000, p. 26. “Pais e Cônjuges” Jornal A Página", ano 9, nº 91,

[5] Ver não apenas nota anterior, bem como as citações de Alice Miller e Dolto, especialmente no caso de Miller o seu texto de 1985, publicado por Tusquets em Barcelona em 1994: El drama del niño dotado y la búsqueda del verdadero yo, que analisa a ilusão da uma infância que nunca foi vivida; ou Françoise Dolto, 1995: La difficulté de vivre, especialmente páginas79 a 209, sobre família e sentimentos.

[6] Bion, Wilfred, 1948-1951: Experiences in groups. Human Relations, reeditado em 1961 pelo Instituto Tavistock como Experiences in Groups, website para informação e debate http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Wilfred+Bion+Experiences+in+groups&btnG=Pesquisar&meta=

[7] Klein, Melanie (1947) 1973: Psychanalyse d’un enfant, Tchou. Paris. Também Imago, Rio de Janeiro 1991. Website  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Melanie+Klein+Psychanalyse+d%27un+enfant+1946&btnG=Pesquisar&meta=

[8] Freud, Sigmund, versão francesa revista pelo autor de 1923, já referida, define: “Além do princípio do prazer”1, trabalho no qual Freud desenvolveu suas ideias sobre pulsão de vida, pulsão de morte, compulsão à repetição, etc. é segundo ele próprio, um trabalho que se nutre de especulação2. A actividade especulativa difere por sua natureza da actividade de raciocinar. Ela permite-nos a suprema ousadia de avançar por espaços desconhecidos, liberando novas formas de pensamento e sensibilidade. Enquanto a Razão no mantém atados ao conceito – abstracção das realidades estéticas – o Pensamento nos fornece ideias que estão fora de senso comum. Eros/Thanatos produtos do pensamento e não da Razão, são ideias e não conceitos”. Retirado do artigo “Eros/Thanatos: uma exegese e uma pragmática de «Além do principio do prazer»”, de Nahman Armony,  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Freud+Thanatos&btnG=Pesquisa+Google&meta=

[9] Bion, Wilfred, 1979 a) A Memoire of the future, Book Two: The Past Presented, Imago, Rio de Janeiro. Website para informação e debate http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Wilfred+Bion+Memoirs+of+the+future&btnG=Pesquisar&meta=

[10] Bion, nota anterior, retirado do texto de R.D. Hinshelwood, website http://psychematters.com/papers/hinshelwood2.htm

[11] Ver Bion, 1970: Attention and interpretation, Tavistock Institute, Londres. Website para debate e ideias:  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Wilfred+Bion+Attention+and+Interpretation&btnG=Pesquisar&meta

 

publicado por João Machado às 14:00
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