É muito difícil encontrar um escritor português cuja obra, como a de
Raul Brandão, tenha influenciado
de forma tão evidente a escrita de tantos outros escritores das gerações e das escolas literárias que à sua se seguiram. A matriz positivista comtiana cujas pegadas encontramos também em escritores portugueses anteriores e posteriores, como Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa, para não falar na grande maioria dos escritores da chamada Geração de 70 e, depois, a dimensão humanitarista por ele assimilada, sobretudo, através da atenta leitura dos grandes ficcionistas russos Tolstoi, Dostoievski e Gorki, irá ter eco, século XX adentro, no grupo da Presença – José Régio, Branquinho da Fonseca, António Navarro, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga, Fausto José... e evidenciar a sua semente noutras obras posteriores, como a de Ferreira de Castro, José-Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, Herberto Hélder, para referir apenas alguns dos casos mais relevantes.
Na realidade, «poucos autores portugueses deixaram até nós um rasto tão visível», como disse a seu respeito Óscar Lopes. Pertencente a uma geração literária fortemente influenciada pelo Simbolismo-Decadentismo que de França nos chegava, escritores cujas obras iriam iluminar o século seguinte, fazendo parte daquela a que também chamaram a «geração de 90», da qual fizeram parte, entre outros, Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, Wenceslau de Morais, António Patrício, António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, todavia, Raul Brandão seria, entre todos eles, o que, rompendo com esse decadentismo finissecular, mais raízes veio a deixar na literatura das décadas futuras. A sua obra não terá por certo sido das mais vastas, contudo é das mais ricas na gama de tonalidades humanas das suas personagens e até mesmo nas hábeis dissonâncias que soube criar entre o trágico e o grotesco das situações ficcionais em que as envolveu. Talvez por isso, por essa modernidade latente na sua técnica efabulatória, tenha funcionado como um farol, como uma luminosa referência para as gerações seguintes.
Filho e neto de gente do mar, «o mar será também para ele um apelo sempre presente».1 A infância passa-a nesse ambiente que virá a descrever de forma tão eloquente quanto comovida em Os Pescadores. Nas suas Memórias descreve: «Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto do Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele.» [...] «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo, o que sei das árvores, da ternura, da cor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada»2
Na escola que, sob a direcção das senhoras Militoas, funcionava por essa época na Foz Velha, aprende as primeiras letras. Devido a incidentes da sua saúde frágil interrompe os estudos por dois anos, indo depois com os pais para o Porto, onde inicia o curso liceal no Colégio de São Carlos. Sobre este período da sua vida, recorremos de novo às suas Memórias: «Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro de uma cerca calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes dominados pelo mesmo sentimento de terror - 8×7? - 8×7? - Entre as bancadas passeia um homem atarracado e grosso de cabelo encarapinhado de mulato, botas de montar e a palmatória metida no cano das botas: - 8×7? - E o seu vozeirão mete medo. - Eu tinha todos os dias cólicas horríveis, antes de entrar no colégio de S. Carlos, e foi ali que principiei a estragar os meus nervos e a amargar a vida. [...] Foi ali», dirá também «que principiei a estragar os meus nervos e a amargurar a vida; há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror...»3 Porém, nem tudo terá sido tão sinistro como a aprendizagem da tabuada, pois é naquela escola que Brandão desperta para as letras – no Andaluz. Em 1888 completa o curso liceal e, no ano lectivo seguinte, começa a frequentar como ouvinte o Curso Superior de Letras da Universidade do Porto.
Entretanto, é promulgada a obrigatoriedade da prestação do serviço militar e Raul assenta praça, matriculando-se depois na Escola do Exército. Recorramos de novo às suas Memórias: «Na Escola do Exército ensinavam, no meu tempo, coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender.» Na realidade, a carreira militar não se adequava à sua natureza pacífica e contemplativa. No registo das provas que presta, em 1893, no Regimento de Infantaria nº. 6, do Porto, figuram as seguintes elucidativas classificações: «Tiro: atirador de 2ª classe; ginástica: medíocre; esgrima: medíocre.» No entanto, segundo parece, a vontade do pai e o desejo de sua mãe de o ver garbosamente uniformizado, prevaleceram.
De acordo com elementos constantes da sua folha de serviço, além de algum tempo de quartel, uma grande parte da sua vida de oficial decorreu imerso em papelada, em trabalho meramente burocrático. Quando, já na idade madura, faz um balanço da sua vida militar, diz-nos: «Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigo para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...»4
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