Boaventura de Sousa Santos Um Discurso Sobre as Ciências (2)
(Continuação)
Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática? Perguntas simples a que Rousseau
responde, de modo igualmente simples, com um redondo não.
Estávamos então em meados do século XVIII, numa altura em que a ciência moderna, saída da revolução científica do século XVI, pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton, começava a deixar os cálculos esotéricos dos seus cultores para se transformar no fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade. Uma fase de transição, pois, que deixava perplexos os espíritos mais atentos e os fazia reflectir sobre os fundamentos da sociedade em que viviam e sobre o impacto das vibrações a que desejam ser sujeitos por via da ordem científica emergente. Hoje, duzentos anos volvidos, somos todos protagonistas e produtos dessa nova ordem, testemunhos vivos das transformações que ela produziu. Contudo, não o somos, em 1985, do mesmo modo quo o éramos há quinze ou vinte anos. Por razões que alinho adiante, estamos de novo perplexos, perdemos a confiança epistemológica; instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder; admitimos mesmo, noutros momentos, que essa sensação de perda seja apenas a cortina do medo atrás da qual se escondem as novas abundâncias da nossa vida individual e colectiva. Mas mesmo aí volta a perplexidade de não sabermos o que abundará em nós nessa abundância.
Daí a ambiguidade e complexidade do tempo científico presente a que comecei por aludir. Daí também a ideia, hoje partilhada por muitos, de estarmos numa fase do transição. Daí finalmente a urgência de dar resposta a perguntas simples, elementares, inteligíveis. Uma pergunta elementar é uma pergunta quo atinge o magma mais
profundo da nossa perplexidade individual e colectiva com a transparência técnica de uma fisga. Foram assim as perguntas de Rousseau; terão de ser assim as nossas. Mais do que isso, duzentos e tal anos depois, as nossas perguntas continuam a ser as de Rousseau. Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre aciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou colectivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente do perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade. A nossa diferença existencial em relação a Rousseau é que, se as nossas perguntas são simples, asrespostas sê-lo-ão muito menos. Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. As condições epistémicas das nossas perguntas estão inseridas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta. É necessário um esforço de desvendamento conduzido sobre um fio de navalha entre a lucidez e a ininteligibilidade da resposta. São igualmente diferentes e muito mais complexas as condições sociológicas e psicológicas do nosso perguntar. É muito diferente perguntar pela utilidade ou pela felicidade que o automóvel me pode proporcionar se a pergunta é feita quando ninguém na minha vizinhança tem automóvel, quando toda a gente tem excepto eu ou quando eu próprio tenho carro há mais do vinte anos.
Teremos forçosamente de ser mais rousseaunianos no perguntar do que no responder. Começarei por caracterizar sucintamente a ordem científica hegemónica. Analisarei depois os sinais da crise dessa hegemonia, distinguindo entre as condições teóricas e as condições sociológicas da crise. Finalmente especularei sobre o perfil do uma nova ordem científica emergente, distinguindo de novo entre as condições teóricas e as condições sociológicas da sua emergência. Este percurso analítico será balizado pelas seguintes hipóteses do trabalho: primeiro, começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais; segundo, a síntese que há que operar entre elas tem como pólo catalisador as ciências sociais; terceiro, para isso, as ciências sociais terão de recusar todas as formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou idealista com a consequente revalorização do que se convencionou chamar humanidades ou estudos humanísticos; quarto, esta síntese não visa uma ciência unificada nem sequer uma teoria geral, mas tão-só um conjunto de galerias temáticas onde convergem linhas de água que até agora concebemos como objectos teóricos estanques; quinto, à medida que se der esta síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática.
(Continua)
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau