As salas de espera oferecem-nos uma invariável colecção de revistas anódinas, a que só o tédio ou o nervosismo, ou a penosa combinação de ambos, nos faz recorrer, revistas que compilam dados inúteis sobre gente que não conhecemos, fotos de sorrisos branqueados com as mais recentes e dispendiosas técnicas de branqueamento, mamas aumentadas com silicone, lábios insuflados, rostos inexpressivos. São publicações concebidas para adormecer qualquer inquietação, e, na sucessão tranquila das suas páginas, vamos passando, sem sobressalto, por fotos de gente que posa para a câmara enquanto profere frases plenas de uma inofensiva banalidade, coisas como “Os filhos mudam a nossa vida”, ou “A Vanessa é a mulher dos meus sonhos”, ou “Este é o maior desafio da minha carreira”.
E entre vestidos glamorosos, sorrisos resplandecentes e histórias de amores e famas meteóricas, pontuadas por algum episódio mais negro de um divórcio ou de uma avó falecida aos 90 anos, enfiada num lar há mais de dez anos mas de quem o artista muito gostava, folheia-se a revista e, mesmo sem conhecer um terço dos que lá estão, cai-se naquele entorpecimento que nos faz esquecer o que nos trouxe à sala de espera.
Mas talvez isto, que até há pouco era suficiente, já não chegue e seja agora necessário um pouco mais de dramatismo, umas pinceladas largas de tragédia, histórias mais folhetinescas, que belisquem o leitor e o façam sentir a alfinetada dos dramas alheios, o alívio por não ser a vítima. Só neste contexto se poderia entender a história que encontrei numa dessas revistas, numa dessas descaracterizadas e cinzentas salas de espera.
O pai de um famoso totalmente desconhecido (categoria que, como sabem, sendo inteiramente paradoxal, com frequência se encontra nestas revistas) havia-se suicidado. E a publicação, acometida de brio jornalístico, resolvera investigar esse suicídio, falando com gente mais ou menos próxima ao falecido, com vizinhos, vagos conhecidos, comerciantes do bairro onde morava. E é assim que numa das páginas surge uma foto que eu por pouco não vi, folheando a revista a toda a pressa, mas que me fez voltar atrás e deter-me nela, é assim que aparece frente a mim o senhor Amável, dono da drogaria ao pé da casa do suicida, a mesma drogaria onde o pai do famoso desconhecido comprou a corda que viria a usar para se enforcar, ali estava ele, o senhor Amável, posando, visivelmente pouco à vontade, não deve estar acostumado a que o fotografem, e muito menos para as revistas, com um pedaço de corda nas mãos, mostrando aos leitores da revista esse pedaço de corda, ainda presa ao enorme rolo de onde saiu um outro pedaço de corda, o que nunca chegámos a ver, mas que sabemos que apertou o pescoço de um homem até o matar.
Sim, terá dito o senhor Amável, foi uma corda como esta, deste mesmo rolo que aqui está, que ele comprou, e nunca me passou pela cabeça que fosse para aquilo, claro, que a gente nunca sabe o que vai na cabeça das pessoas, e a nossa função é vender e não fazer perguntas. Mas foi com esta que ele se matou, é o que dizem, não sei porque eu não o vi, claro, não estive lá. Mas é possível, porque é uma boa corda, é resistente, e embora não seja muito grossa era bem capaz de dar conta do recado e aguentar o peso de um homem. Coitado do homem, nunca me passou pela cabeça que fosse para aquilo. Mas é mesmo assim, a gente vende o que nos pedem e não pergunta para que será.
Tudo isto terá dito o senhor Amável até o fotógrafo o mandar calar, e por isso apenas nos chegou a foto que retrata a sua incomodidade. E quando lhe disseram que se colocasse frente ao rolo, e que mostrasse aos leitores como era essa corda, tornando-se assim um nobre servidor do jornalismo, da imperiosidade de informar o público sedento de detalhes, o senhor Amável lá se colocou ao lado do rolo, fazendo um esforço para endireitar as costas que a idade e os anos ao balcão encurvaram, e agarrou um pedaço de corda entre os dedos, a horrível corda, mas também a resistente e prestimosa corda, que cumpre aquilo que o homem lhe pede, a mesma corda que um homem colocou à volta do seu pescoço, a mesma que o suspendeu no ar, e lhe garroteou o pescoço, essa horrível, sim, mas também resistente e prestimosa corda do senhor Amável.
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