Sílvio Castro Um Novo Coração
Capítulo 39
Arco, 9ª jornada, 18/02/05
À mesa converso com o dr. Citton sobre questões relacionadas com os médicos e a medicina. Ele mais que responder-me, escuta as minhas divagações, mas no seu predominante silêncio encontro os pressupostos de um diálogo tranquilo e sincero.
Procuro provocar o meu amigo médico falando-lhe da idéia que se tem de uma grande separação entre médico e paciente. Nesse encontro, o paciente quase sempre tem pouca oportunidade de expressão, quase não fala, quase não consegue comunicar diretamente os seus males ou supostos tais. O médico fala sempre, tem sempre a última palavra. Não seria mais útil para ambos que o médico escutasse mais o que lhe pode comunicar o paciente ou, mais ainda, se esse não o sabe fazer, operar com ele uma fala que lhe possa permitir de dizer o que não sabe ou não pode exprimir?
A relação do homem com a medicina e com o médico foi sempre viciada de ambiguidade. Por culpa das duas partes, certamente. O médico muitas vezes se limita a diagnosticar com imediata auto-suficiência, principalmente se o estado do doente não é grave. Ou, senão, o faz para não expor-se a uma contestação de sua sabedoria professional. Pode-se chegar, com atitudes semelhantes, até mesmo a uma espécie de indiferença pela bondade do diagnóstico feito e, talvez mais ainda, da terapia prescrita. Dessa última tira a maior parte dos pacientes os seus motivos de dúvidas quanto à eficacia do tratamento que recebe. Como consequência, nos sujeitos mais sensíveis nesses casos se forjam os contestadores globais da medicinaem geral. Quando tal fato acontece, se retorna às raizes de um relacionamento que se perde no tempo e que viu formas fortes de proclamação da ineficácia dos médicos e da medicina. Tal fenômeno gerou no tempo, conforme os momentos de maior ou menor carência de meios assistenciais, o apelo do doente aos mais diversos tipos de cura, tipos esses que sempre fizeram regredir a potencialidade da terapia médica enquanto tal, gerando sempre mais dores, males, mortes.
Pergunto ao dr. Citton, por que os homens duvidam dos médicos? Será porque simplesmente duvidam dos próprios males ou porque não encontram sempre consolações? Possivelmente será por razões mais complexas, e o digo rememorando que até mesmo Petrarca escreveu um Invectiva contra medicum.
Outra questão que discuto com o meu amigo, sem chegar a uma invectiva, é sobre a complexidade da linguagem médica, em geral absolutamente desconhecida pelo paciente. O médico não abandona jamais a sua comunicação técnica. Por que, quando o paciente tem perda de sangue pelo nariz, lhe fala sempre de “epistaxe” e não de perda de sangue pelo nariz? Falando de rins, fígado, intestino, diz dos “órgãos emunatores”? A um paciente particularmente crítico parece que o doutor procure dar à linguagem falada a mesma impossibilidade de compreensão imediata que se encontra nas suas receitas escritas por mérito de uma caligrafia indecifrável…
Em verdade, esse paciente super-crítico não sonha outro sonho senão aquele que o possa levar a um mago absoluto, capaz de suavizar qualquer dor que o atormenta. O sonho do paciente é uma forma de magia, com a qual retornaria sempre a uma vida feita somente de bem-estar físico. Quando ele assim se sente, o apreço que tem pelo seu médico é de quase idolatria. O dr. Citton ri gostosamente e me repete ah! como eu gostaria que todos os meus pacientes me idolatrassem!…
Acabado o jantar, como acontece todos os dias, depois de cada refeição, o dr. Citton e eu saímos do restaurante, na direção do bar, onde tomamos um café. Depois eu me dirijo como sempre para as poltronas que estão no fundo do salão, com a televisão ligada e as muitas pessoas, homens e mulheres, pacientes e parentes conversando animadamente, como num salão-social de um clube. Enquanto eu me sento, preparando o meu celular para receber a mensagem diária de Anna Rosa, o dr. Citton sobe para o seu quarto, pois é a partir dali que fala ao telefone com a sua mulher.
O meu celular finalmente estrila. Falar com minha mulher é como transformar o ambiente da “Casa de Saúde”, trazer para aqui certezas que se encontram lá fora e que agora caminham por fios invisíveis para chegar até os meus ouvidos, meus sentidos, meus nervos então como que asserenados.
Desligo o celular e fico por alguns minutos sentado no salão pleno de vozes que escuto indistintamente. Assim também para com a televisão. Meu olhar passa por tudo isso e eu sinto que esta noite será mais calma. Depois, quase sem querer, me levanto e vou tomar o elevador. Chego ao 2º andar e vou para o meu quarto. Roberto certamente estará ainda no salão, com a sua mulher e amigos. Eu acendo a televisão, sintonizo um filme que já vi, vou para o banheiro onde lavo os dentes, me contemplo no espelho, penteio os cabelos, volto para o quarto, fecho a janela e as cortinas, me deito na minha cama ainda com a cabeceira levantada, me distendo diante da televisão e do filme que já vi.
Os enfermeiros, como todos os dias, passaram para ver se eu tinha alguma necessidade, arrumaram as coisas várias, deixando sobre a minha mesinha próxima à cama as pílulas para a noite. Engulo religiosamente as pílulas e tomo os outros remédios que me servem. Estou, ou dentro em pouco estarei, pronto para passar a noite insone. Apago a televisão, me levanto, e me dirijo à minha sala de leitura, onde ficarei por horas. Comigo levo o romance de Charles Morgan, Lord Sparkenbroke, leitura quase terminada. Pelas horas noturnas caminho com Piers Tenniel no bosque de seu palácio, no qual ele vive a mágica relação com Mary e, depois, ainda com ele vou até Florença, volto para Londres, comparticipo de sua intensa pesquisa sentimental. São já as três da madrugada.
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