Quarta-feira, 29 de Junho de 2011

Um Novo Coração 37 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 37

 

 

Arco, 8ª jornada, 17/02/05

 

Hoje é o dia do meu primeiro exercício com o treadmill, a máquina da esteira rolante. Já às 8,15 eu estava sentado à minha mesa, a de número 58, e me preparava para o café da manhã. Depois de ter tomado a minha laranjada, comido várias frutas e bebido o café, saí do restaurante sem ter visto o dr. Citton que geralmente desce para o café-da-manhã um pouco mais tarde.

 

No grande salão do bar as pessoas conversavam, liam os jornais ou se preparavam para os diversos exames médicos marcados para aquele dia. Os pacientes com problemas motores em geral tomavam a direção da piscina numa dependência externa, outros se preparavam para os exercícios nos ambulatórios que estão aqui no 1º andar. O ambulatório nº 1 acolhe o setor de ortopedia, mais o dermatológico e o neurológico; o 2 hospeda a logopedia; o 3, o servício dietológico. Ao lado dos ambulatórios está o salão do ginásio B, destinada preferencialmente aos pacientes com problemas motores. Passeio indiferentemente diante deles, abro a porta principal do salão B, admiro por momentos os aparelhos expostos. Saio para começar a endereçar-me ao sub-solo, à procura de meus já costumeiros exercícios respiratórios. Pela primeira vez ali encontro o meu companheiro de quarto, Roberto, que logo se revela exímio no exercício das bolinhas.

 

Agora, passadas as primeiras horas da manhã, estou de novo no 3º andar, no ginásio A, para o meu primeiro exercício no treadmill. Depois de tirada a pressão, começo o meu exercício. Subo nos tapetes e começo a caminhar com passos acelerados, seguindo em harmonia o ritmo da máquina. Com essa não acontece como com a bicicleta, porque eu sempre fui um grande caminhador. Até mesmo o ritmo acelerado da máquina não me cria problema, pois tenho um passo seguro e constante na corrida virtual. Então, me rejubilo comigo mesmo pelo muito que pratiquei de esporte, em particular o futebol, com o qual criei pernas de boa consistência, fortes e resistentes, prontas a muitas reações credoras de um bom sistema de reflexos condicionados. Caminhando sobre o tapete que rola sem cessar, mudo os passos, alterno pernas e pés, movimento em sincronia os braços, e levanto com boa técnica o peito, juntamente com a cabeça. Meus olhos acompanham a marcha, mas não renunciam a admirar a paisagem que penetra no salão pelas janelas de vidros claros. Quanto mais passa o tempo, mais me entusiasmo com a minha marcha. Estou inteiramente nela, me sinto transportado nos movimentos e corro, corro, como se em disputa de uma maratona. São muitos os quilômetros que devo superar e logo reconheço que estou correndo por Veneza, numa maratona muito especial que me empenha ao máximo. Corro por Veneza, por calles campos pontes. Devo cobrir um grande itinerário que parte da entrada na Praça Roma e contorna a figura de peixe da cidade que  conheço tanto, para retornar depois de muito tempo na mesma Praça Roma. Começo e corro. Corro. Deixo o ponto de partida e vou na direção do gótico da Basílica dei Frari, aonde logo chego passando pela Scuola di San Rocco, rica de quadros de Tintoretto. Viro à direita na direção do Campo Santa Margherita, onde estão a igreja e a “scuola” dos Carmini; sigo para a estrada que me leva à igreja de São Sebastião. Sei que ali se encontram alguns dos Veroneses entre os mais belos, principalmente na decoração do teto, mas não posso parar. Corro, corro sempre. Entro no Zattere, com o grande canal da Giudecca, pelo qual passam barcos e mais barcos que seguem a minha corrida pela grande extensão do Zattere até a Punta della Salute. Devo virá-la e tenho apenas segundos de contemplação para a ilha de San Giorgio em meio às águas da laguna e defronte à Praça San Marco. Virando em velocidade a Punta della Salute vejo de longe a fachada frontal do Palácio Ducal, mas logo a perco de vista, porque já estou passando pela igreja della Salute e me estou encaminhando para a ponte da Accademia. Por ruas interiores, chego diante da ponte; o museu da Accademia está à minha esquerda e sei que ali posso ver todos os grandes artistas venezianos, principalmente o meu predileto Giorgione e a maravilha da “Tempesta”. Voltarei depois da maratona para revê-los a todos:  Giorgione, os Bellinis, Veronese, Tiziano, Tintoretto, Tiepolo (Gianbatista), Carpaccio. Subo pela ponte da Accademia, a sempre inacabada, e dela contemplo na corrida a beleza esguia do Canal Grande. Desço os muitos degraus e corro na direção do Campo Santo Stefano, nele entro pegando seu lado direito, aquele do Conservatório Benedetto Marcello, de onde parecem vir acordes do adagio de Albinoni. Percorro o Campo cincundado pelos grandes palácios

 

                                               A luz rarefeita da tarde

                                               transporta os palácios

                                               góticos clássicos neo-clássicos

                                               brancos / vermelhospálidos / rosas

                                               / rosados / rosas

                                               / brancos

                                               além da luz.

 

                                               O espaço ilimitado da luz

                                               une os extremos

                                               que vão de mim a mim mesmo.

 

Não, nem um momento para a contemplação gozosa; pego a calle que me conduzirá ao Campo San Maurizio que abre as estradas na direção da Praça São Marco. Vou pela rua XXII Marzo, enquanto a percorro recordo que essa, juntamente com a “via Garibaldi”, no bairro de Castelo, onde estou por chegar, somente elas levam a denominação de “via” em Veneza. Agora passo mais uma ponte que me mostra a igreja barroca de San Moisé. Dali me preparo para entrar na Praça São Marco. Nela entro, sem parar, mas indo da Ala Napoleônica sempre à frente, de encontro com a beleza bizantina da fachada da Basílica de San Marco. Quanto mais me aproximo dela, mais sei que devo desviar logo que toco a sua Torre externa, entrando na Piazzeta, com o Palácio Ducal, de um lado, e a Biblioteca Marciana, do outro. Vejo tudo, mas passo, passo o mais rápido que me é concedido pelo cansaço que começa a tomar as minhas pernas, porque estou correndo a minha maratona de Veneza. Já virei à esquerda do Palácio, encaminhando-me para a ponte que olha lá dentro no rio, entre o Palácio Ducal e as Prisões dei Piombi, as mesmas onde esteve também Casanova, para a direção da Ponte dei Sospiri, que une alada os dois edifícios. Mais que ver tudo isto e as outras coisas, rememoro. E penetro na meta que divide os dois tempos da minha corrida, a longa e magnífica Riva degli Schiavoni. Estou indo por ela, bela, longa, larga, sempre viva de gente e de luzes. Logo me aparece a igreja della Pietà, uma das três construídas por Palladio em Veneza, morada da música de Vivaldi e dele escuto os cálidos movimentos de seu “Inverno” enquanto corro por Veneza nessa fria tarde do fevereiro de 2005. Embalado pela música vivaldiana, continuo pela longa Riva, passo diante do palácio que hospedou Petrarca por quase um ano e, de relance, como que o vejo ao receber a surpreendente visita de Boccaccio, ao qual oferece um manuscrito do Canzoniere. Mais que ver, ainda que vendo, rememoro tudo, mas sinto que aqui na Riva degli Schiavoni, que estou por superar definitivamente para entrar na zona do Arsenale e assim penetrar nas calli estreitas de Castelo, diante da parte final da minha mágica corrida, a minha cabeça começa a divagar, como que desejosa de perder-se no cáos das coisas maravilhosas. Insisto, mas o faço mais com a força dos músculos que com meu entendimento. Estou por acabar a grande fatiga, e sou um maratonista que não sabe certamente da entidade de suas forças, mas que continua a correr, porque deve chegar à ponte de Rialto e ultrapassá-la e, depois dela, tomar a definitiva reta final. Corro corro e eis Rialto

 

                                                           Subo a escada nas águas

                                                            subo a escada no tempo

                                                             subo a escada nas águas

                                                              no tempo das águas e

                                                               desço a escada dos tempos

                                                                das águas que voltam no

                                                                 tempo de escada e pé.

 

A maratona está chegando ao seu fim; posso conseguir chegar ao fim e ultrapassá-lo com minha força viva. Agora basta superar o Campo San Polo – já o fiz – passar pelo Palazzo Bernardo, seguir na direção do Campo San Giacomo dell’Orio, ultrapassar mais duas pontes, chegar pela retomada do Canal Grande até o prado do Jardim Papadopoli. Atrás dele está a meta final. Cheguei.

 

Cheguei; mas somente eu cheguei. Contra quem corri?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00
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