Domingo, 5 de Junho de 2011

LIÇÕES DE ETNOPSICOLOGIA DA INFÂNCIA - III, por Raúl Iturra

(Continuação da segunda lição)

 

Não há apenas os casos referidos. Há mais como por exemplo o caso dos Maconde de Moçambique, analisado por Jorge Dias, mas que me foi também relatado por um nacional de Moçambique, do povo Maconde[1]. Parece que a hipótese procurada por Freud e analisada mais à frente é mais universal do que se pensava. Émile Durkheim na sua obra de 1912, estuda o ritual Intichiuma da etnia Arunta ou Aranda da Austrália Central[2]. Ritual que ele denomina positivo e que consiste em ensinar aos mais novos, já não crianças, mas sim pré-púberes, a tomar conta do alimento do qual subsistem, larva de lagarto que habita ao pé dos rochedos do deserto, sítio ao qual se dirigem com o sacerdote Aleteucha, em jejum durante vários dias, até aprenderem a como a tribo pode subsistir. Como a análise de Durkheim sobre as formas totémicas de reprodução humana, ao estudar o Totem Exogâmico de Mana, que fixa as regras matrimoniais entre clãs e proíbe o incesto causado por intimidade erótica entre parentes[3], formas de comportamento ensinadas pelo Aleteucha com o consentimento do grupo doméstico e a sua colaboração.

 

Os rituais de iniciação são um processo central dentro da vida das etnias. No caso dos Maconde, as raparigas são transferidas para uma casa de mulheres, dentro da qual as mais velhas e não parentes ensinam formas de fornicação, cujo primeiro objectivo é agradar ao homem, para o conquistar, seduzir, tê-lo mais vezes com ela, e assim assegurar o nascimento de novos seres humanos. Especialistas do grupo abrem os lábios da vagina com uma incisão para facilitar a penetração do homem e a entrada do esperma no denominado ninho da vagina. Como acontece no mito do Eufuko entre as raparigas Handa de Angola, relatado por Rosa Maria Melo[4] na sua tese de doutoramento no ISCTE.                                      

 

Entre os Maconde, os rapazes são retirados na época da puberdade para a casa dos homens e ensinados por jovens e outros membros clãnicos, a masturbar-se e como entrar no corpo duma mulher, para o que é usada a narração oral ou desenhos ou, ainda, o recto de um homem maior. O objectivo é sempre a reprodução, biológica e social como acontece de forma mais complexa, pelo detalhe da análise, entre os Baruya da Nova Guiné, no momento de começar a criar sémen, hierarquiza as relações parentais entre os membros da tribo, sempre com a ideia da relação exógama que permite não apenas a circulação de pessoas, bem como a circulação dos bens, como analisa em detalhe Malinowski no seu texto de 1926. Detalha as relações destes grupos, salienta a união familiar, define as crianças como filhos de todos, todos tomam conta de cada pequeno como se o tivessem parido ou engendrado[5].                                                                                                                                                                     

 

Uma paternidade amável, amante e amada, como refere a nota de rodapé desta página. Uma maternidade cuidada, descrita quer por Malinowski na obra citada e nas outras analisadas no texto, quer por Sir Raymond Firth[6], quer ainda por Sir Archibald Reginald Radcliffe-Brown[7]: amamentam, tomam conta, ajudam, colaboram nos trabalhos umas das outras e, conforme a análise de Firth, a mãe tem um papel de carinho, económico principalmente: é quem dá a terra aos filhos que nascem do seu matrimónio num outro grupo familiar ou Hapu, trabalha de forma igual ao marido, seja o matrimónio monogâmico ou poligâmico. Homens e mulheres trabalham juntos e o cuidado dos descendentes está dividido entre a época da amamentação do mais novo e o aprender a desembrulhar-se entre os membros da família.                                                                                

 

O Hapu – que são normalmente muitos, é praticamente uma aldeia, até à época de trabalhar de forma autónoma, época na qual torna ao Hapu da mãe, caso o matrimónio tenha sido patrilinear, ou fica no Hapu maternal, caso o matrimónio seja matrilinear. Diferente do caso analisado por Malinowski na Melanésia, é o estudado por Radcliffe-Brown na África do Sul e na Ilha de Tonga na Melanésia. Analisa os Ba-Thonga, os Nama e os Tongan e encontra uma paternidade inexistente, razão pela qual o seu primeiro texto é denominado “O irmão da mãe” ou, de facto, The Mother’s Brother in South Africa[8]. A realidade da paternidade, como Malinowski analisa em vários textos estudados na Lição IV deste texto, é inexistente.

 

Há, sim, uma genealogia clãnica -totémica que delimita as possibilidades de reprodução de forma exógama, como referi antes. O papel da mãe passa a ter uma importância emotiva e económica muito marcada. A genealogia é matrilinear, a autoridade é patriarcal,  pela linha do irmão da mãe.

 

Muito embora seja o homem quem faz a criança no corpo da mulher, crianças que, na idade da puberdade vão circular para a casa do irmão da mãe – tal e qual os filhos da mulher do irmão vão para a casa do irmão desta, a autoridade, enquanto o grupo é de procriação e trabalho é a do homem da mulher, quero dizer é patriarcal, apesar de este ter que obedecer, por sua vez, às instruções do irmão da mãe, autoridade suprema dentro do seu grupo doméstico. Como referi num outro texto meu, não há Baloma nem reprodução para uma mulher que não tenha irmãos que a proteja. Este facto, que o autor vê acontecer entre os povos estudados na África do Sul, que inclui os Banto, acontece também noutros sítios do mundo não Europeu. A realidade dos pais, podia dizer neste parágrafo, é heterogénea e múltipla.                                                                                       

 

No caso dos Maori, há tantos pais como consanguíneos colaterais e ascendentes tenha o homem da casa, e tantas mães como consanguíneos do mesmo tipo tenha a mãe; cada um deles, pelo facto de viverem muito unidos, exerce as funções que nós denominamos da paternidade dele ou dela.

 

O próprio comentário do autor refere a impossibilidade de aplicar o nosso sistema de parentesco entre grupos baseados na concentração da família e não na sua dispersão. Não apenas porque no Hapu podem morar mais do que cem pessoas, todas elas parentes e possibilitadas de celebrar matrimónio – excepto se são filhos dos mesmos pais, mas se um dos ascendentes é de outra fratria, a relação passa a ser possível. O problema não está centrado na ideia de incesto que Malinowski analisa ao debater com Freud e Ernest Jones: estes últimos reclamam a universalidade do tabu do incesto. O próprio Radcliffe – Brown dedica um opúsculo ao conceito Polinésio de tabu ou proibição, definindo impedimentos, além das matrimoniais, como define no texto, página 13, evitando assim o nome da pessoa que não é apreciada. O conceito tapu ou tabu para nós, é a infracção que denominamos pecado em linguagem religiosa que abrange a palavra, como por exemplo, tratar das crianças e as ensinar, como comenta ao falar de Frazer[9].                                                                                                                                                                                                

 

 

A universalidade para Radcliffe-Brown não está no facto da relação sexual, está na proibição de trespassar as normas que o sistema religioso define como pecado. Ideia muito próxima de Freud, Charcot e outros, mas bastante longínqua das análises de Malinowski, cujo interesse é entender o dever de exógamia entre os Massim, não por pecado, bem como transgressão a norma que orienta o comportamento entre as pessoas, adultas ou mais novas. Sejamos justos com o texto sobre repressão sexual que trata Malinowski, que não acertei na Lição IV: o incesto é apenas entre pessoas que têm relações íntimas endogâmicas, que não permitem circular pessoas e bens, facto importante e essencial: se os bens não circulam, ficam retidos dentro do mesmo grupo que não vê incrementar a sua riqueza ao estabelecer alianças com outros indivíduos cuja obrigação é auxiliar, trocar, emprestar, e, de forma mais importante, incrementar uma população em permanente risco de extinção por causa das tecnologias fisiológicas, bem como pela crença na reencarnação. As ideias de Freud especialmente e mais tarde as de Lacan, baseiam-se na genética do Século XIX; hoje em dia, muito embora o incesto seja um delito para acabar e nasça a legislação que permite a união entre irmãos nos Países do Norte de União Europeia – e, de facto, em qualquer um sítio da terra – os de Malinowski estão baseados na ideia por ele sempre negada da economia: circular pessoas para outras terras, é circular Direito de Propriedade.                                                                                                                                            

 

O incesto [...] esse problema da realidade dos pais de hoje em dia, que lutam para o evitar mas nem sempre com muito sucesso, até entre ascendentes e descendentes, como comento na Lição  respectiva e ao longo de todo o texto. Aliás, os pais de hoje, para entrar na realidade, devem entender que há sucessivas levas de incesto permitido e incesto proibido[10]. Como sabemos, a relação de incesto é punida entre nós com prisão, para evitar o que se denomina abuso sexual intra familiar. Aliás, conforme a pesquisa internet, parece não ter havido movimento nenhum em procura de definir a relação incesto: há outras emotividades em jogo, especialmente a hierarquia familiar, a autoridade que orienta a transferência de bens e saberes, a abertura a interacção social e outras actividades.                                                                                                                      

 

Muito embora, o incesto tenha sido, e ainda seja uma forma de relação que conserva o símbolo do poder, não apenas entre os sabidos Inca e Faraós, bem como em grupos aldeãos do Egipto actual, como diz o recentemente desaparecido (12 de Março 2004) Historiador Britânico Keith Hopkins[11]. O incesto para a análise de Malinowski é um complexo familiar e não pessoal: é a batalha entre o direito paternal que orienta o nosso comportamento, e o direito maternal que orienta a exógama entre os Massim que estuda para definir o problema. De resto, mais à frente trato do assunto.

 

(Continua)

 

Contudo, não é do incesto que queria falar. Apenas da realidade com que se confrontam os pais, onde figuram abusos sexuais dentro da família, violações, pedofilia, incesto, adultério, violência física, abandono de pais e filhos enquanto pai e mãe devem trabalhar. Assunto de ocorrência que transcende a privacidade quando se fala das relações do lar fora de casa, apesar da proibição familiar ou da vergonha que pode acontecer entre os outros membros do grupo social pelo escândalo causado quando o grupo familiar não se comporta como é esperado. De facto, estas comparações feitas entre comportamentos paternais entre outros grupos, esse romance incrível que aparece na história dos etnógrafos que vão visitar grupos alheios, podem até não ser uma verdade. Mas, pelo menos, é o que a mente do investigador foi capaz de apreciar a partir do modelo usado para analisar a realidade desses pais. Uma mente, como normalmente eu denomino nos meus textos ao pensamento da cultura, que varia conforme o seu próprio contexto pessoal, histórico, experiência de vida, modelo que usa e, especialmente, a cultura à qual pertence. O caso mais típico que me lembre, é o de Meyer Fortes. Passeava pela aldeia Lo-Wiili na qual trabalhava, do grupo Tallensi da antiga Costa de Ouro, hoje Ghana, enquanto o chefe de aldeia, avô, relatava um caso de incesto familiar perante a sua neta de cinco anos, colada à sua mão. Meyer, esse Senhor de África do Sul, expulso após ser encarcerado num campo de concentração por defender a igualdade, teve a gentileza de dizer ao seu amigo se era conveniente falar assim em frente da sua neta. Para Meyer, o incesto era um delito e, como homem religioso, um pecado; para o Lo-Wiili era um facto que acontecia: a criança nascida do incesto era reclassificada na família da

mãe, passava a ter o sítio da mãe, era a sua irmã e não havia divindade a punir o facto. A divindade é, entre eles, para orientar e dizer o que deve ser o futuro, com ou sem azar. Pelo que a resposta foi simples: “Porquê? Não é bom que ela saiba o que acontece para depois lembrar e guardar na memória o que acontece na aldeia? Ela não fica mal, estes meios-irmãos são de permanente ocorrência entre nós e é melhor saber a nossa genealogia”[12]. Meyer Fortes, antropólogo, psicólogo, educador, ficou sem palavras e calou, mas aprendeu as diferentes formas de comportamentos não delinquais en várias partes do mundo. Entendeu que não havia falta, não ficou abatido e pensou que Os Lo-Wiili era uma etnia de pessoas inteligentes, pragmáticas, que mereciam a sua liberdade por saber governar-se sós. Ajudou, junto com o seu discípulo Jack Goody, a organizar The People’s Party, partido que na sua luta, ganhara a independência do Ghana nos anos 40, a seguir à II Guerra Mundial do Século XX. Como o próprio Jack analisa nos seus textos sobre estrutura social e politica dos Lo-Dagaaba, clã dos Tallensi, as suas formas de organizar o governo e a suas relações parentais, em conjunto com de aprendizagem de leitura e escrita ocidental.As que existiam eram formas e notas de tipo local, entendidas apenas pelos grupos, o que não facilitava a sua união, como a escrita denominada universal ou árabe, tem conseguido no meio dos povos do mundo, tarefa à qual Jack Goody se dedicou como membro do Governo Britânico na Colónia da Costa de Ouro, a seguir à sua libertação dos campos de concentração alemães, que lhe ensinaram muito método de observação participante e muitas formas de interacção social, nem sempre amáveis ou em favor do prisioneiro. Refiro este facto, por serem, Meyer Fortes e Jack Goody os que desde a Grã-Bretanha me resgataram também de um campo de concentração fascista, como o deles. Os textos importantes de Jack para este debate estão em nota de rodapé[13].



[1] Dias, Jorge, 1996: Os Maconde de Moçambique, IIE, Lisboa.

 

[2] Durkheim, Émile, citado maisem frente. A cerimónia que refiro está nas páginas 327-324 da versão inglesa que uso de 1914, da editora George Allen and Unwin, Londres.

 

[3] Autor e texto referidos, páginas 119 e seguintes.

 

[4] Melo, Rosa Maria, 2000: O Rito do Eufuko. A iniciação feminina entre os Handa de Angola, policopeado, Biblioteca do ISCTE.

 

[5] Silva Pereira, Luís 1999, no seu texto: Médico, Xamã e Ervanária, ISPA Lisboa, Website para informação e debate http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Lu%C3%ADs++Cirilo+Silva+Pereira+ISPA&btnG=Pesquisar&meta=

Trata do mesmo assunto para os Mapuche Rauco, como é o meu caso com os Mapuche Picunche. É a aldeia o pai de todas as crianças. A paternidade destes seres humanos está longe da que defino no Capítulo I, ao falar de Pater Famílias ou autoridade da casa. O Pai dentro de estes grupos, é um adulto designado, casado ou não, para observar as brincadeiras e afazeres dos mais novos, ou, eventualmente, colaborar nos trabalhos de escola, do que eu denomino Ensino e Aprendizagem. O Pai de turno, é um ser carinhoso que não ralha ais pequenos e sabe transferir saberes. Muito semelhante ao detalhe tratado por Durkheim e do Aleteucha, distante do nosso Pater cujo objectivo é manter distância, tomar conta da pessoa e a representar e gerir os seus bens. Entre nós, é a primeira palavra da oração cristã para pedir misericórdia e perdão. Malinowski, no seu livro de 1926, diz: « Le père est ainsi un ami bienveillant des enfants et, comme tel, aimé d’eux » – ver citação Capitulo III e descrição do comportamento. Uso a versão francesa de 1930. O Website, no Capítulo III.

 

 

[6] Firth, Raymond Sir, 1929: Primitive Economy of the New Zealand Maori, Routledge and Kegan Paul. Página web com texto, no motor de pesquisa Les Classiques des Sciences Sociales: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Raymond+Firth+Primitive+economics+of+the+

New&btnG=Pesquisar&meta=

 

[7] Radcliffe Brown, Sir Archibald Reginald, 1955: Structure and function in Primitive Society, Cohen and West Ltd, Londres. Website com texto: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/classiques/radcliffe_brown/radcliffe_brown.html

[8] Texto que é o Capítulo 1 do livro citado na nota anterior.

 

[9] Radcliffe-Brown, Sir Archibald Reginald, 1939: Taboo, CUP ou website com o texto www.bol.ucla.edu/~cdn/pubs/meattaboo.pdf

 

[11] Hopkins, Keith, 1987: “The universality of incest” in Digital Archive of PSYCHOHISTORY, Página web para debater este texto:  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Keith+Hopkins++The+Universality+of+Incest&btnG=Pesquisar&meta=

 

[12] Fortes, Meyer, 1938: “Sociological and psychological aspects of education in Taleland”, em Africa, Supplement, Volume XI, Nº4, páginas 40 em frente. Website para texto e debate http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Meyer+Fortes+Sociological++psychological+aspects++

education++Thailand&btnG=Pesquisar&meta=

 

[13] Goody, Jack, 1966: Succession to High Office (org), CUP; 1971: Technology, Tradition and the State in Africa, Oxford University Press; 1976: Production and Reproduction, CUP; 1977: The domestication of the savage Mind, website para debate:  http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&ie=UTF-8&q=Jack+Goody+Bibliography&btnG=Pesquisar&meta

 

publicado por João Machado às 14:00
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