Aos visitantes de estrolábio, aos leitores de estrolábio
Aos visitantes de estrolábio e a propósito do texto abaixo, A minha última aula, a que hoje não dei e que amanhã já não darei, concebido para ser publicado pelo estrolábio na noite de 2 de Junho uma pequena nota aqui vos deixo, a nota que foi distribuída aos alunos da última disciplina que leccionei, Finanças Internacionais, com que a minha vida de professor com eles acabei, quando o texto por todos foi distribuído, nota que passo a reproduzir.
“A minha última aula, a aula que hoje não dei e que amanhã já não darei.
Dei hoje a última aula, uma aula normal. Aqui está uma outra aula, a última aula que hoje não dei e que amanhã já não darei.
Esta é necessariamente uma aula muito especial porque não foi dada, porque não podia sequer ser dada, fruto de circunstâncias várias e de inconformismos múltiplos que julgo bem expressos na parte final do referido texto, aos filhos do meu país dedicada.
E aos meus estudantes de hoje e, apesar de tudo, também estudantes de sempre, por muitas Bolonhas que passem por debaixo da ponte , o meu reconhecimento por me terem aturado nas minhas exigências e desculpado pelas minhas inconveniências, se alguma vez as houve. E, é tudo.
Coimbra, 2 de Junho de 2011
Júlio Marques Mota
Uma história de trilemas[1], uma história de incompatibilidades entre Democracia e neoliberalismo[2]
Júlio Mota
2 de Junho de 2011
Introdução
A fim de compreender as razões que levaram à criação da União Monetária Europeia (UME), muitas das vezes recorremos ao triângulo de incompatibilidades de Mundell. Dada a mobilidade interna do capital no espaço da União Europeia, a decisão de um pequeno número de Estados-membros querer formar uma união monetária parecia lógica, considerando isto uma resposta radical aos desafios colocados pelo trilema representado por este triângulo.
Pelo exposto, a palavra “trilema” associada ao triângulo anterior resulta do facto de não se poder assegurar simultaneamente taxas de câmbio fixas, mobilidade do capital e uma política monetária independente. Assim, a existência de duas situações ligadas por um cateto elimina a possibilidade de se verificar a terceira. A associação de um par de situações em oposição à terceira eis pois o triângulo de Mundell, por isso mesmo também chamado triângulo de incompatibilidades.
A questão é que o quadro institucional da UME é efectivamente deficiente para responder às questões inerentes a este mesmo triângulo. E de resto, este quadro assenta ele numa hipótese curiosa, a de que os mercados ao serem eficientes garantiriam automaticamente a eficiência de um processo de integração via mercados. No caso dos mercados financeiros, sendo estes então perfeitos e eficientes assegurariam a eficiência do todo e, como tal, ganharam o direito de a eles se submeter todo o processo de integração da e na UME! É nesse quadro que talvez se entenda a dinâmica da dívida pública em que com a convergência das taxas de inflação, com o peso da dívida pública no PIB a poder caminhar para o critério de Maastricht, com o critério do défice público a ser respeitado, com a convergência das taxas de juro da dívida pública e com a concorrência a assegurar uma óptima afectação dos recursos e uma possível convergência nas taxas de crescimento, porque até se acreditava na maior sincronização dos ciclos económicos, teríamos assim a integração na zona sem precisar de uma integração de ordem orçamental. Estaríamos na Wonderlands, de Lewis Carrol.
Por discordarem desta visão, ao longo dos anos, muitos economistas foram defendendo que uma união de ordem orçamental era desejável, e talvez mesmo indispensável, como complementar à UME. O que nós agora sabemos é que, para além disto, uma base comum na zona euro para a regulação das instituições financeiras e para lidar com as consequências do seu fracasso é igualmente importante, mas esta lamentavelmente não existe por força da desregulamentação havida. Temos uma união monetária sem nenhuma destas instituições complementares, mostrando assim que esta UME não é adequada para o efeito.
A UME aparece aqui também de forma curiosa: face à economia global — período pós-Bretton Woods —, é expressa pelo cateto lateral esquerdo enquanto face a cada um dos países que a compõem, aparece caracterizada pelo cateto do lado direito. A manter-se a sua situação presente, como muito bem assinala Martin Wolf, isto significaria assim que a sua situação era equivalente à do regime do Padrão Ouro pré-1914, em que os governos não apoiavam os sistemas financeiros, a política orçamental seria pro-cíclica e em que os Estados estariam desprovidos de políticas monetárias compensatórias.
Como é que se chegou até aqui e como é se pode sair daqui?
Para responder a estas perguntas, é útil voltarmo-nos para um outro trilema a que Dani Rodrik chamou de “trilema político fundamental da economia mundial”, em que se utiliza um triângulo equivalente ao anterior. Rodrik argumenta que não se pode simultaneamente exercer a Democracia, a autonomia das políticas nacionais e a globalização económica. Diz-nos então este autor:
Comecemos por compreender o que é que nós entendemos por “trilema político fundamental da economia mundial”: não podemos procurar ter simultaneamente uma situação de democracia, ou seja, o respeito pelas profundas exigências desta, o Estado-nação e a globalização económica. Se queremos avançar com mais globalização temos então de escolher entre ter mais democracia ou ter mais Estado-nação. Se queremos manter e aprofundar a democracia, temos de optar por mais Estado-nação ou alternativamente por ter mais integração económica. E se quisermos ter o Estado-nação com as determinações ou com a autonomia que ao Estado lhe são características temos que escolher entre aprofundar a democracia ou aprofundar a globalização. Os nossos problemas têm as suas raízes na nossa relutância em enfrentar estas inelutáveis escolhas.
De acordo com o texto acima definimos então uma “realidade” a partir de duas das três características aí referidas. Assim, se queremos então melhorar ainda mais a globalização económica, temos de abdicar ou do Estado-nação ou da Democracia política; se queremos manter e aprofundar a Democracia, temos de escolher entre o Estado-nação e a integração económica internacional; e se quisermos manter a autonomia das políticas nacionais, temos de escolher entre o aprofundamento da Democracia e o aprofundamento da globalização. A questão é que “a globalização profunda”, ao envolver um compromisso não apenas sobre a abertura global dos mercados tanto de mercadorias como de capitais, com os constrangimentos que isso implica, como também sobre a concorrência que passa a exercer-se entre os factores produtivos móveis, dificulta aos governos nacionais a adopção de normas regulamentares ou de outras políticas intervencionistas, mesmo quando a situação nacional o exige e a suas populações o pretendem. As soluções passam então ou por permitir que a opinião pública se manifeste através de mecanismos supranacionais, o que implica uma maior integração e uma menorização do Estado-nação ou então ignorá-la, a opinião pública, e, neste caso, é a Democracia que é posta em causa. Ora, curiosamente a política neoliberal destes últimos trinta anos tem devastado todos os mecanismos organizativos que garantiam e exigiam aspectos relevantes da Democracia e que eram também eles garantes do funcionamento do Estado Providência, sem ter criado nem contrapartidas nem alternativas a nível europeu. Neste caso, dir-se-á que Bruxelas está longe. Como assinala, por exemplo, François Morin e o leitor atento confirma-o imediatamente para o caso português:
[Estamos] perante a fraqueza crescente da negociação colectiva e com a redução de importância do papel dos sindicatos. Para onde se terão passado os grandes compromissos sociais de outrora? Será que se vêem hoje greves gerais durarem mais do que um dia, se é que estas ainda se verificam? Quem pode ainda acreditar na eficácia real destas acções sindicais de carácter nacional (manifestações, dias de acção, greves, etc.)? Estas acções quase que desapareceram tendo sido substituídas por conflitos puramente locais, parcelerizados, onde cada um procura conservar [da melhor forma que pode e mesmo nas piores condições como o temos vindo a exemplificar com a longa série de textos sobre France Télécom] o seu emprego e quando este desaparece a única reivindicação possível é então a luta pelas indemnizações de despedimento [mas mesmo aqui como se tem vindo a ver é a União Europeia que vem ao assalto da única linha de defesa que ao trabalhador resta].
A análise do tipo da realizada com o triângulo de incompatibilidades de Mundell pode pois ser agora transposta para o quadro da análise de Rodrick e do trilema político acima sintetizados através do seguinte triângulo.
Assim, perante uma elevada integração económica, exigências decorrentes da Democracia política e o Estado-nação, a escolha pode recair na situação (cateto) caracterizada pelo Estado-nação e exigências decorrentes da Democracia política sem existir então uma elevada integração económica, a situação identificada como o compromisso de Bretton Woods, ou na situação expressa por uma elevada integração económica e exigências decorrentes da Democracia política e, neste caso, temos Democracia num espaço integrado sujeito a uma governança global e perdemos o Estado-nação ou ainda numa terceira situação que é caracterizada pelo Estado-nação e por uma elevada integração económica e, com isto, temos simultaneamente o espaço nacional e a integração económica, mas perdemos a capacidade em termos internos de dar respostas democráticas às exigências nacionais que passarão assim a ser ignoradas, ou seja, é a Democracia política e as suas exigências que são postas em causa e é isto na verdade que tem vindo a acontecer, com o Estado-nação a decidir submeter-se e a colaborar no processo de integração económica em curso.
Passemos pois este tipo da análise para o quadro das políticas económicas da União Europeia podendo utilizar-se este triângulo para analisar separadamente questões à volta da existência ou não de uma união de ordem orçamental na união monetária, associadas à regulamentação financeira ou ainda questões ligadas ao comércio internacional na economia global.
Uma política orçamental comum?
Quanto a uma união de ordem orçamental, com a formação da união monetária, o trilema político resolveu-se abandonando a política monetária nacional e delegando-a a um tecnocrata Banco Central Europeu. O facto de isto se ter passado sem se pensar num sistema com o mesmo grau de integração para as políticas orçamentais pode ser bem compreendido no âmbito do trilema.
No domínio da política orçamental, a combinação do Estado-nação e da Democracia tem levado a que não se tenha gerado um maior aprofundamento no sentido da união política, existindo assim ainda alguma soberania no plano das políticas orçamentais nacionais e mesmo esta está cada vez a ser posta em causa com o reforço dos mecanismos do Pacto de Estabilidade e Crescimento decididos recentemente.
A este respeito, curiosas são as posições dos cidadãos alemães e irlandeses que, apesar de terem motivações completamente diferentes, acabam por optar pelo mesmo “regime” de enquadramento político na União. Os primeiros não querem uma união com transferências de rendimentos, tal como exemplifica bem Horst Köhler, ex-Director Geral do FMI e ex-presidente da República alemã, encarregado das negociações para a criação da moeda única quando disse em 1992 que “se um país [da união económica e monetária] apresentar défices elevados devido ao seu próprio comportamento nem a Comunidade Europeia nem nenhum outro Estado-membro devem ajudá-lo, [se não] os países do Sul fariam pagar a factura aos países considerados ricos… Não, a Europa não é uma máquina de redistribuição” (palavras relembradas por Arnaud Lechevalier). Isto claramente indicia que preferem estar na situação caracterizada por Estado-nação e exigências decorrentes da Democracia política. Já os cidadãos irlandeses não querem um regime de ordem orçamental comum, porque querem fazer da concorrência fiscal um dos elementos-chave da sua política de atractividade e competitividade internacionais, “o nosso imposto sobre as sociedades é a pedra angular da nossa política industrial”, dizem eles, só lhes falta referir que é a sua vantagem comparativa. É assim que, por exemplo para citar só alguns casos, que o Facebook, a Intel, o Google, a Pfizer, a Merck, a Valeo, o BNP Paribas, a Société Générale, a Microsoft aí têm sedes ou filiais, envolvendo cerca de 130 000 assalariados. Curiosamente o Google, a Hewlett-Packard, a Intel e a Microsoft evocaram a possibilidade de se deslocalizarem da Irlanda se a sua fiscalidade fosse levantada. Mas isto significa estar de costas para a integração mas aqui a responder aos interesses da população, donde a respeitar as regras nacionais e o desejo dos eleitores.
[1] Este texto tem como estrutura central o artigo de O’Rourke, Kevin, “A tale of two trilemmas”.
[2] Os meus agradecimentos a Margarida Antunes, minha colega de trabalho e de muitas interrogações criadas ao longo dos anos sobre estes temas, pela leitura minuciosa e crítica que deste trabalho fez, sendo igualmente certo que a sua elaboração a ela muito lhe fica a dever.
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