Quarta-feira, 1 de Junho de 2011

A Itinerante do Limbo - Urbano Tavares Rodrigues

 

Urbano Tavares Rodrigues  A Itinerante do Limbo

 

(Adão Cruz)

 

 

 

Umas vezes pede esmola, em voz baixa; outras, apenas es­tende a mão, o nervosismo nem a deixa falar. É magríssima, sem idade, mas adivinha-se que teve feições delicadas.

 

Veste sempre uns trapos insólitos, demasiado leves para o tempo frio, que não a caracterizam socialmente.

 

No café-snack onde às vezes a encontro e ela me aborda, quase sempre à porta da rua, há quem lhe conheça a história um pouco confusa e contraditória. Ela, num desabafo, contou-a a uma empregada da casa, embora isso pudesse pô-la em risco.

 

Há com frequência moscas à sua volta e o céu destila sobre ela o líquido sombrio das verdades que se foram desgastando.

 

O marido, cigano, tratava-a como uma cadela. Embebedava-se e batia-lhe, fazia do seu corpo, já então meio deserto, com pouco sangue, um amarelado de manchas, dores, negrume.

 

Numa noite em que ele entrou em casa ainda mais bêbado e brutal do que o costume, a pobre sujeitou-se a tudo. Deixou-o adormecer e asfixiou-o com uma almofada. Ele mal se deba­teu. Só nos primeiros instantes tentou resistir.

 

A partir daí, aquela criatura não parou de fugir - da polícia, dos conhecidos, de algum denunciante. E, contudo, ali, arris­cou-se a fazer confidências.

 

Dorme, consoante a estação, nos bancos de jardim, à boca do metro, nos degraus das escadas, nalguma construção arrui­nada, sob as pontes da insensível desgraça. Terá algures escon­dida a sua cama de cartão? Ouve os bichos do silêncio, aranhas, lacraus, vê desfilar pavores em forma de gente.

 

Nem os ciganos, se ocorre passarem por ela, a reconhecem. O seu rosto de olhos fixos, vazios, parece às vezes falar com os mortos.

 

Mas os filhos vêm vê-la, sabem onde achá-la. E trazem-lhe notícias, algum bolo ou algum agasalho, palavras de outrora.

 

Muitas pessoas tratam-na mal e - diz ela - lembram-lhe pássaros ferozes, capazes de lhe bicarem os olhos.

 

Que a prende à vida? Que força de raízes a sustenta e a habita?

 

Evito observá-la, para ela não desconfiar de mim, mas vejo em certos momentos esta criatura tão sordidamente concreta e tão evanescente a caminhar por um interminável plaino de onde foram varridos até os arbustos e todo o som da vida, o bem e o mal, a consciência de ser. Apenas alguns cacos de vi­dro, que espelham outros vidros. E ela anda, anda, sem expres­são, por esse espaço que parece sem limites, fora do tempo, mas onde, de longe a longe, surgem as vagas cristas cor de li­mão de uma débil aurora, que se reproduz aqui e além.

 

Durante dois ou três dias deixámos de a ver. Disseram-me que os filhos tinham vindo visitá-la e falaram bastante com ela, muito persuasivos. E preocupados. Avisá-la-iam de que a polí­cia dera com o seu rasto? De que devia mudar de poiso? O cer­to é que ela se sumiu.

 

Foram rolando dias, semanas. Quando penso nela, sempre angustiado, revolta-me a injustiça deste mundo, a sina destas mulheres espezinhadas e apavoradas, que nunca apertaram em igualdade outra mão e também a si mesmas se recriminam nas horas, cada vez mais pálidas, de sofrimento.

 

Imagino-a então, com assombro, a sair de dentro de um via­duto, onde só por ironia ainda não foi atropelada (ou terá si­do?) e a corresponder ao sorriso de uma espécie de violinista de Chagall, de rabona preta, entre lírico e burlesco, que lhe dá o braço e a vai levando, elevando-a consigo, ascendendo por entre rendas de nuvens quase azuladas onde até a sola se torna um manjar e deixam de se opor o sim e o não, a beleza e a feal­dade.

 

Não sei bem se ela tenta daí enviar-me uma mensagem, alguma coisa que nunca disse ainda, ou se apenas se esforça por rir como qualquer humano com a sua torpe boca desdentada e feliz.

 

(in A Última Colina, Dom Quixote)

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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11 comentários:
De Inês Aguiar a 1 de Junho de 2011
Muito bonito, Augusta! Um texto fascinante e um Sérgio trovador....gostei muito.
Gosto dos dois!
beijo
De Inês Aguiar a 1 de Junho de 2011
E uma tela cujo cinzento a torna bela.
Uma delícia para os olhos, mente e ouvidos.
Belo trio, bjo
De Augusta Clara a 1 de Junho de 2011
Quem teria mandado o Sérgio trovador? Uma tal inspiradora de música que me ajuda a escolher belas canções. :-))
De Luis Moreira a 1 de Junho de 2011
Esta conversa é inspiradora...
De Augusta Clara a 1 de Junho de 2011
Há por aqui um grande intercâmbio. O que é que tu julgas, Luís?
De Luis Moreira a 2 de Junho de 2011
Eu não aguento ler duas mulheres inteligentes e bonitas a falarem uma com a outra. O que é queres, sou assim...
De Augusta Clara a 2 de Junho de 2011
Ai, Luís, se não existisses tinham que te inventar :))
De Luis Moreira a 2 de Junho de 2011
Um ramo de rosas....
De Augusta Clara a 2 de Junho de 2011
Basta uma. Obrigada :-)
De Inês Aguiar a 2 de Junho de 2011
Querido Luís, a beleza reside no olhar e sem a mulher o mundo não existia, já viste? Já te imaginaste numa ilha rodeado por pelos e barbas? E, testosterona? A Augusta é uma querida e merece um jardim de flores...beijinho
De Luis Moreira a 2 de Junho de 2011
Não resisto a participar nas vossas conversas...mea culpa.

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