Urbano Tavares Rodrigues A Itinerante do Limbo
(Adão Cruz)
Umas vezes pede esmola, em voz baixa; outras, apenas estende a mão, o nervosismo nem a deixa falar. É magríssima, sem idade, mas adivinha-se que teve feições delicadas.
Veste sempre uns trapos insólitos, demasiado leves para o tempo frio, que não a caracterizam socialmente.
No café-snack onde às vezes a encontro e ela me aborda, quase sempre à porta da rua, há quem lhe conheça a história um pouco confusa e contraditória. Ela, num desabafo, contou-a a uma empregada da casa, embora isso pudesse pô-la em risco.
Há com frequência moscas à sua volta e o céu destila sobre ela o líquido sombrio das verdades que se foram desgastando.
O marido, cigano, tratava-a como uma cadela. Embebedava-se e batia-lhe, fazia do seu corpo, já então meio deserto, com pouco sangue, um amarelado de manchas, dores, negrume.
Numa noite em que ele entrou em casa ainda mais bêbado e brutal do que o costume, a pobre sujeitou-se a tudo. Deixou-o adormecer e asfixiou-o com uma almofada. Ele mal se debateu. Só nos primeiros instantes tentou resistir.
A partir daí, aquela criatura não parou de fugir - da polícia, dos conhecidos, de algum denunciante. E, contudo, ali, arriscou-se a fazer confidências.
Dorme, consoante a estação, nos bancos de jardim, à boca do metro, nos degraus das escadas, nalguma construção arruinada, sob as pontes da insensível desgraça. Terá algures escondida a sua cama de cartão? Ouve os bichos do silêncio, aranhas, lacraus, vê desfilar pavores em forma de gente.
Nem os ciganos, se ocorre passarem por ela, a reconhecem. O seu rosto de olhos fixos, vazios, parece às vezes falar com os mortos.
Mas os filhos vêm vê-la, sabem onde achá-la. E trazem-lhe notícias, algum bolo ou algum agasalho, palavras de outrora.
Muitas pessoas tratam-na mal e - diz ela - lembram-lhe pássaros ferozes, capazes de lhe bicarem os olhos.
Que a prende à vida? Que força de raízes a sustenta e a habita?
Evito observá-la, para ela não desconfiar de mim, mas vejo em certos momentos esta criatura tão sordidamente concreta e tão evanescente a caminhar por um interminável plaino de onde foram varridos até os arbustos e todo o som da vida, o bem e o mal, a consciência de ser. Apenas alguns cacos de vidro, que espelham outros vidros. E ela anda, anda, sem expressão, por esse espaço que parece sem limites, fora do tempo, mas onde, de longe a longe, surgem as vagas cristas cor de limão de uma débil aurora, que se reproduz aqui e além.
Durante dois ou três dias deixámos de a ver. Disseram-me que os filhos tinham vindo visitá-la e falaram bastante com ela, muito persuasivos. E preocupados. Avisá-la-iam de que a polícia dera com o seu rasto? De que devia mudar de poiso? O certo é que ela se sumiu.
Foram rolando dias, semanas. Quando penso nela, sempre angustiado, revolta-me a injustiça deste mundo, a sina destas mulheres espezinhadas e apavoradas, que nunca apertaram em igualdade outra mão e também a si mesmas se recriminam nas horas, cada vez mais pálidas, de sofrimento.
Imagino-a então, com assombro, a sair de dentro de um viaduto, onde só por ironia ainda não foi atropelada (ou terá sido?) e a corresponder ao sorriso de uma espécie de violinista de Chagall, de rabona preta, entre lírico e burlesco, que lhe dá o braço e a vai levando, elevando-a consigo, ascendendo por entre rendas de nuvens quase azuladas onde até a sola se torna um manjar e deixam de se opor o sim e o não, a beleza e a fealdade.
Não sei bem se ela tenta daí enviar-me uma mensagem, alguma coisa que nunca disse ainda, ou se apenas se esforça por rir como qualquer humano com a sua torpe boca desdentada e feliz.
(in A Última Colina, Dom Quixote)
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