Segunda-feira, 30 de Maio de 2011

Um Novo Coração 7 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

 

 

Capítulo 7

 

 

Depois do café-da-manhã, com as habituais ofertas: frutas – maçã, pera, kiwi, banana, laranja, tangerina, à escolha - mais uma chícara de chá ou de café com leite, ou somente leite, pão (não sei comer pão puro, não gosto, mas eu o como quando o apetite é grande), cumprido o ritual quotidiano, saio do quarto. Para o hospitalizado não afetado de problemas já determinados e portanto não ainda sob tratamento específico, mas só em fase de observação, repito sempre para mim e para você, leitor dessa narrativa sem janelas, senão o nosso diálogo pode correr o risco de perder-se por perder-me eu, estar ali é sim uma como experiência concreta, mas sempre de difícil compreensão. Ele se sente como um semi-perdido já que não se vê e não se reconhece integrado nem na vida normal lá de fora, nem na difícil natureza do internado. Uma só coisa então me sentia fazer: misturar as duas dimensões de vida, os dois espaços absolutamente distintos um do outro. Cada manhã, cumpridas as obrigações médicas e saciado do apetite matinal, eu logo saia do quarto e começava a percorrer, sem tréguas, os corredores transformados em estradas, caminhos, ruas. Depois de caminhar por longo tempo, eu procurava a sala-de-estar, o “soggiorno”, para nele prolongar as horas, mas não como uma frustração pela falta dos espaços exteriores, certamente sempre desejados, mas para recriá-los como ato de vontade assumida dentro de meu ser que não devia consumir-se. E então recomeçava a ler, completando aquelas leituras que me encheram as horas de tempos muita vez quase indistintos, de Thomas Mann, O Doutor FaustoMemoria de mis putas tristes, de Gabriel Garcia Márquez, ou Alla cieca, de Claudio Magris,  ou de Moacir Scliar, Mistérios de Porto Alegre, mais os outros que me esperavam, dia e noite, nessa biblioteca que parecia fora do mundo. Lendo, tomado de surpresa, lia também este livro que estou escrevendo.

 

Hoje entro na sala-de-estar com um determinação nova, vou escrever até a hora do almoço uma apresentação crítica para uma exposição de gravuras a ser inaugurada em fevereiro numa galeria de arte veneziana. Sei desde o momento em que aceitei o encargo, coisa acontecida antes da minha internação urgente, o que desejo desenvolver como linha teórica na análise das obras gráficas que serão expostas. Já as vi. Trata-se de auto-retratos traduzidos por meio de válida pesquisa das mais variadas técnicas incisórias. A artista passa de uma para outra dessas modalidades gráficas com naturalidade, para em seguida confrontar-se com a transcrição de si mesma. Neste ponto centralizo meu maior interesse crítico em relação à operação que se completa vinte, trinta vezes.

 

O auto-retrato, de certa maneira, não é um retrato. Tais formas expressivas da criatividade artística podem ser vistas num complexo de interação, num conjunto coerentemente harmônico de afinidades, mas ao mesmo tempo se distinguem, quase se separam, se dividem uma da outra.

 

Certamente ambas são o resultado de um sistema formal comum, do qual sistema o artista se serve em modo consciente; elas se fazem obra criativa a partir de técnicas e normas comuns. A figuração que traduz seja uma que a outra forma nasce de conhecimentos criativos que se encontram nas duas diversas operações. Porém, paradoxalmente, o auto-retrato não é um retrato.

 

A matéria prima de um ou da outra forma é unitária porque se trata de uma “visão do outro”, isto como dimensão humana do “eu” operativo. Mas, o “outro” do retrato é uma visão do artista derivada do espaço exterior, numa situação concreta, direta e real, de três dimensões. Porque o “outro” é ao mesmo tempo volume e espaço.

 

O artista que cria o retrato se confronta com uma alteridade raptada pelo eu operativo, sem particulares atritos ou conflitualidades. Nela, o eu e o outro se confrontam num sistema de interação, quase sempre regular.

 

O auto-retrato é, ao contrário, o resultado de uma relação na qual se procura – com um comportamento pronto à surpresa – a melhor interação entre o eu que opera e um desconhecido “eu” que deve revelar-se. A mais, esse desconhecido “eu” não se encontra no espaço e sim numa quase virtualidade espacial: na sempre fugaz memória visiva do eu, ou no espelho.

 

O eu operativo não conhece, não vê em geral o seu outro “eu”. Para vê-lo se tende sempre à abstração. Mas, ao mesmo tempo, esse se mostra sempre como uma clara consciêcia visiva. Vemos, perdemos de vista e revemos o nosso outro “eu”, mas quase sempre ele nos escapa.

 

O auto-retrato da artista é a constante procura de signos que permitem a tomada figurativa de uma imagem que pretende restar sempre uma abstração.

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00
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