Sílvio Castro Um Novo Coração
Capítulo 4
A partir de 1º de janeiro e por vinte e quatro dias vivo no setor de Cardiologia do Hospital de Veneza uma internação praticamente passiva, destinada quase tão somente a controles e exames. Depois de assistido com urgência, meu mal-estar desaparece e vivo a normalidade que me parecia ser o meu estado de saúde de antes. A sensação de normalidade deve confrontar-se com a minha nova, inédita até agora, situação de internado num hospital. Nunca vivera uma tal experiência e por isso me surpreendia mais do que os outros poderiam compreeder se eu em verdade lhes comunicasse sobre esse meu recôndito sentimento. A sensação de normalidade, a partir de então conscientemente perseguida, deve confrontar-se com o meu novo estado de internado. Desde logo procuro fazer com que isso seja simplesmente possível empregando o máximo esforço para transformar-me em parte integrante do novo ambiente, estando verdadeiramente nele, coisa que me obriga a um grande exercício de vontade. Tenho um espaço fechado, que é o meu quarto, no qual durmo, realizo minhas refeições diárias, utilizo o seu banheiro integrado, mas do qual desde o primeiro dia me sirvo aplicando com tenacidade a predisposição masculina de estimar predominantemente os espaços exteriores de sua existência. O meu espaço externo, a partir do momento em que deixo a minha cama e saio de meu quarto, é limitado a quatro corredores que organizam idealmente uma superfície retangular, com uma série de quartos, dos quais o meu é o de número 8, completos de banheiro com chuveiro; de salas dos médicos, outras dos enfermeiros, ao lado daquelas outras de serviços gerais. Existem igualmente três espaços conviviais, sendo o maior deles servido de estantes com livros que formam uma surpreendente biblioteca, com os volumes devidamente catalogados, divididos por gêneros, biblioteca que muito me ajudará a compreender melhor esta minha internação. Os dois outros espaços conviviais são menores, um deles com uma televisão, ambos sedes de tantos usos. Numa das partes do retângulo se localizam os grandes laboratórios dos vários tipos de exames médicos, entre os quais o da coronariografia, misteriosamente sempre fechado. Pelos corredores caminho infatigavelmente, na imitação de minhas caminhadas quotidianas pelas ruas de Veneza. Médicos e enfermeiros logo se acostumam com as minhas caminhadas. Também os internados me vêem num constante passeio; alguns deles, poucos, me imitam; outros, a maioria, me fixam com ar de indiferença, em pé às portas de seus quartos. Uma terceira categoria entre os hospitalizados não sabe de meu perambular: são os acamados estáveis por diversas razões que vão desde uma maior gravidade da doença a que estão condenados, até a incapacidades motoras devidas à patologia cardíaca. Essas são presenças silenciosas na vida diurna e noturna da Cardiologia, silêncios no grande silêncio que encobre nas veladas horas noturnas as dores que muitas vezes levam à morte. Mas, tudo se passa como se nenhuma tragédia pessoal aconteça ou tenha acontecido. A azáfama de médicos e enfermeiros é sempre a mesma, sem qualquer momentânea demonstração de comoções novas ou imprevistas. Não se pode pressentir nada de anormal no silêncio noturno dos quartos, mesmo quando dos mesmos se nota o acentuar das tosses ou o excepcional grito angustiado de uma velha enferma que na insônia grita repetidamente “mamma!”. Sabe-se que a morte está ali sempre presente, mas ainda quando caminho insone nas horas mais profundas da noite, procurando fazer-me mais uma das sombras que recobrem os corredores, não chego a reconhecer o passar do ar que anuncia o fim da vida.
Assim vou por vinte e quadro dias; e quanto mais me sinto como aparente privilegiado de uma normalidade, mais procuro compreender a vida daqueles que me estão próximos, sempre sob os meus olhares incansáveis. Muitas vezes tal coisa se faz difícil, pelos vícios que trazemos fixados em valores e comportamentos que quase não suportam o aparecer expressivo e livre de outros comportamentos que nos parecem diversos, se não inferiores aos nossos. Tudo isso é ainda mais reconhecível pela heterogeneidade da população que vive a experiência hospitalar, principalmente se num hospital público. O homem veneziano das classes populares, em modo especial os originários das ilhas menores do estuário lagunar, é profundamente simples, naquele sentido de elementar quanto às perspectivas da própria existência, e carente em geral de conhecimentos que superem as suas origens insulares. Porém, ao mesmo tempo, são indivíduos que vivem o atávico orgulho de serem venezianos, ainda que essa manifestação de orgulho deixe ver que o possível ser veneziano quase nunca esteve neles, porque quase sempre confinados à marginalização social nos séculos por parte do poder político e econômico de uma dominante minoria aristocrática. Junto a esse veneziano simples está aquele herdeiro da grande cultura da cidade sereníssima. Neste hospital civil, gratuita e profissionalmente assistidos, como acontece aqui na vida italiana para com os internados nos serviços médicos públicos ou conveniados, nós três, incluindo o não-veneziano de origem que sou eu, convivemos em termos de igualdade e gozamos dos mesmos benefícios.
Nesses vinte e quatro dias iniciais me acostumo a ver muito próximos da minha cama os meus companheiros de quarto. Na cama ao lado está um veneziano simples, um buranês, com seus oitenta e dois anos vividos intensamente. Filho de pescadores, estava pronto a ser também ele pescador quando a guerra o levou de Burano em 1940 para ser marinheiro. Embarcado num submarino, sobreviveu a cinco naufrágios. Contados pela sua voz segura, foram cinco simples aventuras. Vianello, mesmo sendo de estatura baixa, é ainda forte de constituição, mostrando uma estrutura muscular compacta. Seu corpo tem sempre a robustez exterior de quem sobreviveu a cinco naufrágios, mas durante o dia o velho marinheiro sofre para poder deglutir os alimentos que toma e, à noite, sua respiração difícil e pesada compassa também a nossa insônia.
Na cama defronte está em constante serenidade um engenheiro, o dr. Lorenzato. A minha insônia, consequência principalmente da mudança de ritmo de vida porque passo, nada é em comparação com a sua. Mais de duas horas por dia ele não chega a dormir. Porém, não demonstra nenhuma perda física por isso; está sempre atento às coisas e às pessoas; alimenta-se normalmente e normalmente vive as horas de seus dias. O dr. Lorenzato é o meu mais constante companheiro de leituras noturnas, quando nos encontramos apartados na sala da pequena farta biblioteca do nosso setor de cura e ali consumimos o passar lento das horas, lendo, lendo. Ele traz sempre consigo um rádio de pilhas, que escuta com grande atenção em não perturbar os vizinhos. O engenheiro ama em particular a música lírica e em especial aquela de Verdi. Uma vez, conversando com ele, lhe falei de Carlos Gomes e da prima de “O Guaraní”, no Scala de Milão, assistido por Verdi, seu mestre, e do orgulho dos brasileiros por esse encontro criativo. Ele conhecia a ópera e cantarolou a sua abertura lá lá lalariá lá lá lá lá lalariá… Nesse início de noite, são já dez horas e as luzes dos quartos foram definitivamente apagadas depois da última passagem dos enfermeiros com as pílulas para o dia seguinte e os remédios capazes de facilitar o sono de todos aqueles que queriam lutar com a insônia, quando sob a tênue luminosidade que vem do corredor defronte à nossa porta sempre aberta o dr. Lorenzeto sintoniza o espetáculo transmitido pela RadioTre, diretamente do Metropolitan Opera House de Nova Iorque, do “Otelo”, de Verdi. O drama do “moro” e da infeliz Desdêmona ressoa em tom baixo e confortante na penumbra que já então não parece de um hospital, mas de uma sala de música misteriosa que se enche da beleza dramática da arte verdiana e das palavras do libreto de Boito. De quem virá no “Otelo” aquela adesão à estética dramática de Wagner? Será uma mudança verdiana quanto aos seus anteriores e imortais “pezzi chiusi” a favor de uma nova maneira do processo cantado e da composição dramático-musical, ou então tudo se deve ao processo compositivo moderno do texto de Boito? Nem uma coisa, nem outra, me responde na manhã seguinte o meu novo amigo engenheiro, porque Verdi é sempre Verdi.
(continua)
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