Terça-feira, 24 de Maio de 2011

Um Novo Coração 1 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

 

 Capítulo 1 

 

 

                                                                                      Anna Rosa,

                                                                                                          da te rifiorito

                                                                                                          nuovo

                                                                                                          il mio cuore

                                                                                                                      batte.

 

 

 

                               Toda a cura, toda Baden se transformaram em

                               coisas odiosas para mim. A maioria dos clientes do

                               nosso hotel, pelo que eu o soube, não estão aqui

                               pela primeira vez, muitos deles retornam pela

                               sétima, pela décima vez , e conforme o cálculo das

                               possibilidades acontecerá o mesmo também comigo.

 

                               Hermann Hesse

                               Cura da Terma de Baden

 

 

Esta Casa na qual cheguei depois de renovadas surpresas, mais do que um hospital, se trata de uma “Casa de Saúde”: grande, ampla, quase imensa. Mais do que um hospital, também se mostra como um absurdo hotel, ocupado sempre por doentes internados, mas circulantes nas salas salões corredores, até mesmo no bar de mais de sessenta lugares, no andar térreo, de vistas para  o jardim.

 

No bar se convive como em qualquer bar de uma qualquer cidade, como coisa da vida comum: se bebe, come-se, joga-se baralho, se conversa com as visitas ou com os companheiros de cura, lá no fundo, no ângulo do salão organizado com poltronas e mesas, distante do balcão do bar. Quem não conversa pode estar lendo algum livro exposto na estante suspensa na parede lateral, livros não catalogados, como que oferecidos não só à leitura.

 

Vou contar-lhes detalhadamente desta “Casa de Saúde” vista sob ângulos diversos a partir da experiência da doença mortal. Me prometo de fazê-lo não com intenções técnicas e científicas, mas como uma expressão literária e por isso mesmo com maior adesão à realidade, porque somente a literatura pode figurar experiências sem janelas, como esta,  a um só tempo conviviais com a idéia da morte e com uma total participação com a vida que deve ser preservada no seu ritmo maior de afirmações e consumo.

 

A “Casa de Saúde” é uma instituição particular, mas convencionada com o Estado. Os internados podem usufruir de três tipos de hospedagem: com quartos de três, duas ou uma cama, sendo aqueles de três camas isentos de qualquer pagamento fora do valor do convênio que cobre a cura; a escolha daqueles de 1 ou 2 hóspedes corresponde a pagamento à parte de uma quota adicional e diária, logicamente muito mais cara quanto aos quartos particulares, em verdade oferecidos em número reduzido e também por essa razão praticamente inacessíveis.

 

No comportamento dos internados, como é possivelmente óbvio já que de certo humano, circulam reações ligadas a estas três condições de hospedagem, quase como novas formas de classes sociais movidas por reações oníricas, nem sempre patológicas. Tudo expresso entre os extremos da resignação passiva e da auto-exaltação de um atribulado eu pessoal.

 

A população que tem acesso à “Casa de Saúde” é predominantemente italiana, mas com presença de muitos estrangeiros, em particular europeus dos diversos países da Comunidade.

 

O hospital que é esta “Casa de Saúde” mostra-se como um mundo que se cria em si mesmo. Parece o mundo comum, mas para o doente em recuperação ele aparece em mutações indefinidas, em configurações de novas expressões do mundo: isolado, em um primeiro momento; levemente atraente, quase logo depois; centralizante, mas igualmente rechaçante, em seguida. É como o viver num espaço sabido à maneira de todos os dias já vividos e numa realidade que, mais do que capaz de revelar-se enquanto tal, figura aquele eu que em verdade somos, mas que está sempre por detrás e irrevelado do eu que acreditamos  ser.

 

(continua)

 

                                                                                             

.

publicado por Augusta Clara às 22:00
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2 comentários:
De Luis Moreira a 24 de Maio de 2011
Promete! Amanhã cá estarei.
De adao cruz a 24 de Maio de 2011
Fui, durante muitos anos, médico hospitalar, Hospital Central de Santo António, e posteriormente médico do CHVNG, cardiologista, e como não é difícil imaginar, o mundo que se vive e desenrola num sítio destes é mesmo um mundo estranho e misterioso, um mundo singularmente diferente daquele que se vé das janelas quando angustiados ou respirando fundo a salvação de uma vida olhamos a rua através dos vidros, um mundo de incomensuráveis e por vezes desmedidas dimensões humanas, sociais, éticas e culturais que não tem paralelo com outros mundos e outros tipos de vivências. É certo que sempre o vivi do meu lado, do lado do médico, mas não é presunção se disser que sempre o procurei entender do outro lado, do lado do doente, como parte integrante e indissociável da minha vida diariamente intrincada neste mundo dilacerante mas também maravilhoso, sobretudo trágico mas por vezes profundamente poético.
É com muito agrado que seguirei este relato pessoal de Sílvio Castro, muito valioso para o meu próprio
entendimento do mundo pessoal e único do doente.

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