A trágica morte de Catarina, transformou-a num símbolo da resistência à ditadura. Não havia, nos tempos que se seguiram, uma ideia clara sobre o que ocorreu naquele dia 19 de Maio em Baleizão. Uma ceifeira fora morta a tiro pela GNR era o dado comum a todas as versões. Em 1962 ou 63, chegou-me às mãos um livrinho editado em França – Le Portugal de Salazar, de Christian Rudel – da colecção Ruedo Iberico. E aí fazia-se uma descrição do trágico acontecimento que não andava longe do que vim a apurar. Nota-se que os poemas sobre Catarina escritos antes do 25 de Abril de 1974 não revelam, por parte dos autores, um conhecimento cabal do que se passou.
Vou tentar fazer um balanço provisório da poesia escrita sobre o tema antes de Abril de 74. O primeiro terá sido o de Alexandre O´Neill (1924-1986) que, no entanto só muito mais tarde foi divulgado. O’Neill escreveu sobre o seu poema uma nota muito curiosa. Nele se revelam as dificuldades existentes para se conhecer o que se passara a começar pelo nome da vítima.
Um poema que circulou na clandestinidade
«Não sei se foi o Carlos Brito ou o Fernando Correia da Silva quem teve, primeiro, a ideia de «vingar» poeticamente a morte de Catarina Eufémia, que, por deficiência de informação, nós julgávamos, ao princípio, chamar-se Maria da Graça Sapinho. O nome de quem a metralhou, esse, parece não deixar lugar a dúvidas: Carrajola.» (…)«Fechei-me em casa. Meditei o trágico acontecimento e logo senti que, de certo modo, ele era «abstracto» para mim (…).Senti, ao mesmo tempo, que não me podia ficar por palavras, que era preciso experimentar amor ou ódio. Entrei pelo desprezo. Foi então que me surgiu, antes de qualquer verso, este: És como um percevejo num lençol! A partir daí, a linha de força do poema estava encontrada. A segunda estrofe, endereçada a Catarina, é algo convencional. (…) Esses meus versos, que transcrevo de cor, juntaram-se a outros de gente amiga, e assim surgiu, tirado do copiador, um pequeno cancioneiro clandestino em memória de Catarina Eufémia.»
À memória de Catarina Eufémia
Podes mudar de nome, carrajola
pôr umas asas brancas, arvorar
um ar contrito,
dizer que não, que não foi contigo,
disfarçar-te de andorinha, de
sobreiro ou de velhinha,
podes mudar de nome, carrajola,
de aldeia, de vila ou de cidade
— és como um percevejo num lençol!
Quando tivermos Portugal nos braços
e pudermos amá-lo sem sofrer,
quando o Alentejo se puser a rir,
Catarina Eufémia, minha irmã,
então o teu filho há-de nascer!
(in Coração Acordeão, Lisboa, 2004)
Cantar alentejano, de Vicente Campinas
O poema de António Vicente Campinas (1910-1998) Cantar Alentejano foi publicado na edição com que o Manuel Simões, o Júlio Estudante e eu, inaugurámos a Nova Realidade, um editora artesanal que publicou obras que o circuito editorial «normal» recusava por receio das represálias. Em 1966 lançaríamos, com prefácio de Manuel Simões, a 1ª edição de Cantares, onde a autoria do poema Cantar Alentejano é, por omissão, atribuída ao Zeca (talvez pelo facto de o Campinas ser perseguido pela polícia política). Na nota que publica no final do livro, José Afonso diz:«A mulher a quem é dedicada esta tentativa de ABC é uma heroína popular bem conhecida no Alentejo onde há anos se deu o facto a que o autor faz discreta mas comovida referência. Numa versão primitiva o tenente dirige-se à ceifeira e diz-lhe: Quando eu te furar a pança/Muda a dança/P'ra vocês. Para além do episódio, Catarina vive na memória dos homens e da própria terra que a viu nascer e morrer. Os versos foram modificados por carência de elementos biográficos, mas as ceifeiras continuam a pôr flores na campa de Catarina».
Não sendo talvez o primeiro poema a ser escrito em homenagem à ceifeira de Baleizão, foi o primeiro de que tomei conhecimento. Posteriormente musicado por José Afonso no álbum "Cantigas de Maio" editado no Natal de 1971. José Mário Branco, descreve como decorreu a gravação num estúdio situado numa quinta dos arredores de Paris. A certa altura, disse «Vamos a isto Zeca" "- Não tens nada para ir metendo ?”, respondeu. Não estava ainda pronto; a alma do Zeca, apercebi-me depois estava toda no Alentejo, nos olhos de Catarina Eufémia. Como tantas vezes lhe acontecia, andava pelo estúdio, de cá para lá, como um jovem leão na sua jaula. Até que, já ao fim da tarde, disse: `Vou lá fora ver as vacas» (...) «Desapareceu durante uma ou duas horas. Quando voltou já era quase noite: `Vamos gravar a Catarina. Zeca em metade do estúdio, só e às escuras cantou. Uma só vez. E é essa que está no disco. Nós, privilegiados espectadores, estávamos na central técnica todos a chorar, incluindo o técnico francês. `Acham melhor que cante isto outra vez ?” `Não, Zeca, não. Está muito bem assim».
Vicente Campinas publicou também um pequeno volume bilingue (português/francês) – Catarina/Catherine – com ilustrações de Miguel Flávio. A data de publicação é a de Junho de 1967 (edição em Bruxelas), É um poema longo e, quanto a mim, não tão bom quanto o Cantar Alentejano.
A Ode a Catarina Eufémia de A Voz e o Sangue
No meu livro A voz e o Sangue, editado em Dezembro de 1967, incluí também uma extensa “Ode a Catarina Eufémia”. Começa: Contigo estou Catarina minha irmã/Contigo estou Eufémia na indignação… E aqui faço notar a coincidência com o penúltimo verso do O’Neill: Catarina Eufémia, minha irmã… Coincidência mesmo – nem eu nem ele podíamos ter lido o poema do outro. Voltando à Ode, descrevo: Trazias Catarina/um filho no teu ventre/ e querias minha irmã/ que não nascesse escravo/ que vivesse livre entre homens livres/Pediste Justiça/ - Deram-te três tiros… Só muito depois tive acesso ao relatório da autópsia. Mas foram, de facto três tiros, que destruindo vértebras de Catarina lhe deram morte imediata. Foi, por certo, no ensaio de Christian Rudel que colhi esta informação e também aquilo que parece ser um mito – o da sua gravidez. No entanto, a notícia publicada no Diário do Alentejo de 21 de Maio, dizia «A Catarina Efigénia tinha mais dois filhos de tenra idade e estava em vésperas de ser novamente mãe». Pelo que o erro dos poetas está justificado. Se é que devemos confiar no médico legista que afirmou peremptoriamente que Catarina não estava grávida.
Não tenho que inventar desculpas para a demagogia do meu texto, que mais para o fim clamava: É de guerra o tempo minha irmã/ e tu bem o sabias ao desfraldar ao sol/ a bandeira rubra do teu sangue… A raiva que nos possuía contra a estupidez do regime, fazia perder a cabeça a alguns de nós. Um amigo, depois de ler o meu livro, disse-me que eu ia ser preso (isso também eu sabia) e que publicar poemas assim era prestar um mau serviço à democracia, pois no estrangeiro iam pensar que o regime afinal era liberal ao ponto de deixar circular livros como o meu. Em suma, o meu livro evidenciava uma liberdade de expressão que não existia. Claro que lhe respondi o que era óbvio – não existindo censura prévia toda a gente podia publicar o que quisesse, sujeitando-se depois às consequências. Porém o regime tinha instalado um censor dentro da cabeça de cada um de nós. E esse era mais terrível e castrador do que a própria PIDE.
O livro foi proibido quando ia já na 2ª edição e fui preso (não só pelo poema sobre Catarina, mas também). O inspector Tinoco, num dos interrogatórios, andou à minha volta a ler em tom declamatório poemas meus – um encontrado em manuscrito sobre o Salazar (designava-o por o cão) e a Ode a Catarina Eufémia, comentando para o estagiário que se esforçava por não desatar a rir - «Qual Camões, qual carapuça! Isto é que é poesia!”.
Catarina de Eduardo Valente da Fonseca
O poema de Eduardo Valente da Fonseca (1928-2003) é o mais antigo em publicação (Maio de 1966);
talvez antecedido pelo do
Alexandre O´Neill, que foi o último a ser divulgado. Não é da melhor poesia que o autor fez, mas o «tempo era de guerra». A impressão rudimentar é eloquente. Deve tratar-se de uma edição semi-clandestina de pequena tiragem e distribuída cautelosamente. Transcrevo os primeiros versos:
Cala-te amigo
Ouve... é a flor do trigo
Chorando Catarina assassinada
Cala-te amigo
Nós não somos flor de trigo
Choremos doutro modo camarada
Que sejam nossas lágrimas passadas de firmeza
No posto de combate dos nossos ideais
Rumo à vitória até que não haja nunca mais
Quadrilhas de assassinos na terra portuguesa
Cala-te amigo! Forjemos na unidade
De Catarina o sonho de rutila beleza
Um Portugal feliz em paz e liberdade
Muitos mais poetas dedicaram poemas a Catarina Eufémia - António Ferreira Guedes, Carlos Aboim Inglez, José Carlos Ary dos Santos, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre muitos outros. O de Sophia é particularmente belo. Mas hoje só quis referir-me aos que foramPapiniano Carlos, escritos antes de 25 de Abril de 1974 em circunstâncias diferentes. Muito diferentes.
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