Quinta-feira, 12 de Maio de 2011

A Promoção, por António Sales

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um conto inédito de António Sales

(já publicado no Estrolabio em Julho do ano passado)

 

Jeremias Palonso da Silva é pobre, quer dizer, está socialmente situado na escala hierárquica dos pobres. É pobre mas não miserável, ou seja não se encontra abaixo da linha insustentável da pobreza. Todavia, esta situação não foi determinada por azares da vida ou despedimento compulsivo o que também seria um azar.

 

Jeremias Palonso da Silva é pobre por opção. Esquisito, não é! Sendo economista era natural que “beneficiasse” das condições normais de qualquer cidadão pronto a ganhar a vida para casar, ter filhos, alimentar a família, pagar a escola, os livros, a casa, os electrodomésticos, a mobília, plasmas, computadores wireless, automóvel, férias, impostos, coisas que obrigam qualquer sujeito a ter 2 ou 3 empregos, fazer horas extraordinárias, comer mal, não acompanhar o crescimento das crianças, criar úlceras duodenais, esquecer-se da mulher e apanhar um par de cornos, pagar ao estado um balúrdio de IRS, ter uma depressão e cair redondo no sofá do psiquiatra antes de lhe dar o AVC da praxe.

 

 Por acaso ou deliberadamente (foi coisa que não consegui tirar a limpo), Jeremias Palonso escapou a esta malha porque é solteiro, não tem filhos o que representa economia superior a um totoloto, como se imagina. Nestas condições só obedece às suas próprias exigências. Faz bem o que sabe, impecável nas suas tarefas e nem ganha mal para as exigências da sua vida. Ao entardecer de um dia molhado e ventoso o chefe chamou-o para lhe anunciar, com um sorriso, que iria ser promovido. Aumento e mordomias de automóvel novo, telemóvel última geração, 500 euros mensais para o cartão de credito e ajudas de custo em deslocações dentro ou fora do país. Fora do país Dr. Bento? Isso mesmo meu caro, um director das relações exteriores não era certamente para ali ficar como um escriturário. Passaria aos quadros superiores da empresa.

 

 

Palonso ficou atordoado. O corpo tomado por temperatura tropical perante tão surpreendente proposta e confiança na minha pessoa. Não duvide Palonso, não duvide! Pois, mas se o doutor me permite dê-me 48 horas para pensar. Pensar? Mas pensar o quê? – inquiriu o doutor admirado com tão absurdo pedido. Ó homem mas se não lhe agrada diga? Vamos negociar. Nem por sombras Dr. Bento. Negociar seria da minha parte ingratidão. Eu gosto de pensar. Ás vezes nem penso mas preciso de tempo para fingir que penso. Suponho que é uma doença da personalidade, coisa que dá nos economistas resultante do vício analítico que não consigo dominar. Agradeceu e retirou-se a fim de começar a pensar, ou ir pensando, porque o caminho da clarividência do pensamento é coisa que se faz na mais completa e fria lucidez da razão.

 

A oferta era tentadora! Uma oportunidade para sete cães a um osso se ele tivesse a indigna veleidade de largar o osso. Indigna, mas indigna porquê? Promovem-no, é só. Merece-o pelo trabalho executado e como tem resolvido alguns negócios da exportação. Aceitar é a oportunidade para abandonar a mediania da sua vida lisboeta presa de modesto rendimento. É certo que está confortável na velha casa em Alfama, mesmo atraente e com a distinção de uma preciosidade antiga recuperada. Os amigos gostam de lá ir e as amigas, então, perdem-se por lá ficar. Três assoalhadas remodeladas num milagre decorativo para uma renda saudável porque é barata. Bolas! Mas aceitar a proposta do Dr. Bento muda o cenário para Campo de Ourique, um bairro que sempre o atraiu: ruas amplas, arborizadas, restaurantes, livrarias, ambiente convidativo a alugar 4 assoalhadas, amplas, com todos os requisitos. Decoraria tudo a seu gosto e sem olhar a despesas.

 

Neste pensamento de novo-rico desarticulou-se qualquer coisa no cérebro que o deixou perplexo. “Sem olhar a despesas” significava já em si uma atitude veloz que serve a promoção do ego. Era como se visse tudo novo, moderno, rico, espampanante antes mesmo de nada ter. Plasmas, som “sorounded”, sofás Chateaux de Aix, cozinha equipada como sala de operações culinárias, cama King Size com lençóis de seda. Para quê Jeremias? Tu só sabes fazer omoletas (e mal), ovos estrelados, hambúrgueres e coisas assim básicas para as quais um fogão de dois bicos é suficiente. E os lençóis de seda para receber as “meninas”? Sabes bem que o quarto é relativo porque a companhia delas é a tua carteira.

 

Jeremias Palonso equacionou estas situações com o ar sério que punha nas coisas por ele consideradas importantes. Mesmo com o aumento tornava-se óbvio que teria de recorrer ao crédito para comprar todo esse conforto moderno. Mas crédito era juros, encargos, responsabilidades. Quando desfrutasse de todas aquelas molezas da vida tornar-se-ia difícil recuar porque o bem-estar quebra as pessoas. Se a promoção era mais dinheiro e mordomias também seria mais trabalho, mais azáfama, concentração, stress. A máquina fiscal caí-lhe em cima e nunca mais daria tréguas. Com a subida do rendimento subiam as tentações que passariam a vícios. Gastar não é difícil, o difícil é conseguir dominar essa vontade demoníaca. O mal do endividamento das pessoas é a ambição, o vício, o prazer, o desejo, o discurso optimista, o prestígio, o poder, a mais valia social, as férias no estrangeiro, os hotéis de 5 estrelas, a vaidade em ser notícia nos jornais económicos. A sociedade não quer pobres mas ricos e há que fazer tudo para estupidificar os primeiros e santificar os segundos.

 

Dentro desta meditação pouco propensa ao entusiasmo, Jeremias Palonso da Silva propôs-se estabelecer, por curiosidade, uma lista do essencial à sobrevivência de um indivíduo em condições de dignidade. Divertiu-se ao reconhecer a consciência do supérfluo como modo de conquistar a liberdade. Jeremias da Silva regozijou com a imensa poupança que um marmanjo pode fazer no seu dia a dia. Podia mesmo ir mais longe e recorrer à Abraço ou ao Banco Contra a Fome para receber dois cabazes de compras por ano. A conclusão entregava-se à sua exclusiva vontade mandando nos seus gastos contra a vontade de estranhos. Poderia mesmo trabalhar menos e receber menos porque também estado comeria menos. Nada de ser escravo do trabalho para bem do consumo e incansável gestor para bem da pátria.

 

Nas primeiras 24 horas ruminou ideias, tal como os bois os alimentos, a fim de encontrar o seu futuro nas outras 24 e chegar ao Chefe com uma resposta precisa conforme havia prometido. A sua gratidão por se terem lembrado dele era infinita até porque as condições excelentes surpreendiam. Contudo, analisando o sistema social e político em que viviam, verificando a voracidade do estado pelo dinheiro dos contribuintes, decidira agradecer mas declinar o convite. O Chefe ficou siderado. Nem se mexeu: o olhar fixo no empregado, a boca aberta com as palavras suspensas nos lábios. Ó Jeremias você está a gozar comigo, só pode! Então, ensandeceu. Nem uma coisa nem outra, doutor. Nunca falei tão sério e nunca estive tão lúcido. E se não for pedir-lhe muito gostava mesmo de passar do escritório para as embalagens e despacho. Palonso! Exclamou o Chefe levantando-se, mas isso será baixá-lo de categoria, baixar o ordenado e para um lugar desses não precisamos de um economista, qualquer 9º ano mal tirado serve. Palonso você só pode estar a mangar comigo. Se assim não for, Dr. Bento, aceite o meu pedido de demissão.

 

E foi assim que Jeremias Palonso da Silva se tornou pobre por sua livre vontade.

 

publicado por João Machado às 15:00
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1 comentário:
De Maria Inês Aguiar a 12 de Maio de 2011
Ainda não tinha lido este conto mas criei uma enorme empatia com a personagem, Jeremias Palonso!
Se não fossem os cordões umbilicais talvez alguns de nós
quem sabe? Seria livre...eu conheço alguém que existe mesmo e optou por um taxi para ser livre e parece feliz...
Gostei muito do conto, um beijo

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