Terça-feira, 24 de Maio de 2011

Economia Global, Capitalismo de Estado e Neoliberalismo - 3

Julio Marques Mota

 

Regime de Trabalho Global

 

Num cenário habitual, num dormitório de trabalhadores numa zona industrial de Shenzhen, a cidade de mais rápido crescimento na China, com uma população, em 2008, oficialmente estimada em 14 milhões, nós fomos rodeados pelos trabalhadores da Foxconn, que estavam a conversar e a assistir a um programa de novelas numa mercearia, no verão de 2010. Era uma área aberta onde os jovens trabalhadores rurais migrantes, a maioria sem família, passava as suas poucas horas de lazer. O complexo fabril estava fechado e para lá do portão, estavam situados mais de dez edifícios de dormitórios a sul das instalações de produção da empresa. Cá fora do portão, viviam mais de 50.000 trabalhadores em casas do bairro, transformando-os em dormitórios colectivos. Impedidos de viverem na cidade onde eles vendem a sua força de trabalho, os trabalhadores têm de encontrar um sítio para viver próximo do seu empregador ou vivem em dormitórios da empresa. As zonas recém-industrializadas e as cidades na China apresentam numerosos dormitórios colectivos, onde um prédio de cinco andares, pode albergar várias centenas de trabalhadores. Nas noites ventosas, as roupas dos trabalhadores, nos corredores do dormitório, esvoaçam como as bandeiras coloridas das multinacionais nos mastros. Estas e essas bandeiras são as bandeiras da nova classe de trabalhadores da China, simbolizando o fluxo de capital sem fronteiras e a miséria na terra socialista.

 

 

A China, uma vez que é caracterizada pela existência de relações sociais não-capitalistas,(11) é hoje o maior caso da reprodução alargada do capital no século XXI. Recentemente, a China enfrentou a pior crise económica do pós-guerra e tornou-se entretanto a segunda maior economia do mundo, ultrapassando o Japão. Com o capital transnacional e privado a invadir as zonas industriais costeiras e algumas cidades e vilas do interior a China tem estado a ter, desde a década de 1970, o mais rápido crescimento a nível mundial quer das suas importações quer das suas exportações.(12) "Made in China", uma referência, um rótulo, que não corresponde à actual distribuição da riqueza na cadeia da produção global, tem contribuído para a crescente importância da China na economia global.

 

Os Salários Chineses

 

A competitividade da China pela via dos salários é atractiva tanto para os capitais nacionais como para os internacionais e é o resultado das políticas do governo chinês. (13) Durante o período entre meados dos anos 1980 e 2004, os planos estatais de desenvolvimento tinham, na verdade, levado à banca rota as zonas rurais do interior, daí que estas tenham registado saídas maciças de trabalhadores.(14) O "excedente" de trabalhadores partiram para as mais prósperas cidades costeiras e outras cidades em busca de trabalho através das suas redes de amigos e familiares dispersos pelo país. Enquanto isso, os governos locais incentivam o trabalhador rural a deslocar-se para bairros urbanos das zonas industriais através dos projectos de "redução da pobreza" e, desta forma, adicionalmente levavam, para fora, os trabalhadores mais bem formados e mais capazes que eram os jovens que seriam mais necessários para a reconstrução da economia rural.(15) Sob esta dicotomia entre estruturas sociais rurais e urbanas, os salários industriais na China permaneceram muito baixos, e não foi ainda em 2005-06 que testemunhámos nenhum significativo aumento.(16) O grande volume de migração rural é orientado por um modelo económico de largo enviesamento a favor da indústria.

 

Embora os resultados da política do filho único na família implementada a partir dos anos 1970 tenham sido importantes para as mudanças demográficas a longo prazo na população nacional de trabalhadores as gerações sucessivas de migrantes das zonas rurais para as zonas urbanas, o conjunto potencial dos migrantes no meio rural têm sido e ainda é enorme. Os trabalhadores migrantes chineses têm sido incorporados num regime de trabalho industrial global.

 

Os salários da indústria transformadora na China como uma percentagem dos correspondentes salários dos EUA,(17) em comparação com os do Japão e dos tigres do Sueste Asiático, como a Coreia do Sul e Taiwan nos primeiros anos da sua descolagem económica, têm-se mantido constantemente sempre baixos. Os economistas Erin Lett e Judith Banister (2009) estimaram que o custo médio de remuneração horária dos trabalhadores industriais da China em 2006 foi de apenas 0.81 dólares americanos.(18) A revista The Economist afirmava, em Julho de 2010, que os trabalhadores migrantes da China "ainda se tinham tornado mais baratos... apenas 2,7 por cento do custo das suas contrapartes americanas".(19)

 

Com base em estatísticas do governo, a parte dos salários no produto interno bruto da China (PIB) caiu de 56,5 por cento em 1983 para 36,7 por cento em 2005; por contraste, muitos países da OCDE mantiveram a parte dos salários no PIB em cerca de 60 por cento ou mais, para o período comparável de 1978-2008 (20) Se os salários, particularmente os salários dos migrantes rurais têm permanecido baixos, os lucros das empresas na China têm rapidamente aumentado, com um crescimento de cerca de 20 por cento entre 1978 e 2005, com a única excepção da recessão que acompanhou a crise financeira e a crise das moedas na Ásia de 1997-1998.(21) O sector de exportação transforma a maioria de seus lucros em poupanças das empresas, dividendos e reinvestimentos, ao invés de partilhá-los com os trabalhadores.

 

O rendimento dos trabalhadores rurais migrantes é, diríamos, à justa para fazer face a uma vida em condições mínimas em áreas urbanas. Um relatório de 2004 do Ministério do Trabalho e da Segurança Social revelou que o salário mínimo mensal aumentou tão pouco como 68 yuan nos últimos 12 anos, na região do Delta do Rio das Pérolas na província de Guangdong, o núcleo central da "fábrica do mundo" (22). Pior ainda, o não-pagamento de salários e os tratamentos injustos continuam a ser um mal geral, enquanto os conflitos laborais têm vindo a aumentar desde os anos 90.(23)

 

Em resposta, o novo governo liderado por Hu Jintao e Wen Jiabao tomou várias medidas de apoio tendo como alvo os camponeses e trabalhadores migrantes rurais. O Ministério do Trabalho e da Segurança Social, codificou as exigências do salário mínimo através da aplicação das disposições sobre o salário mínimo em 1 de Março de 2004 (Zuidi Gongzi Guiding), com uma tentativa de reforçar a protecção oferecida aos trabalhadores através do salário mínimo (24). Em Junho de 2007, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (APN) promulgou a Lei do Contrato de Trabalho com o objectivo de proteger o direito legítimo dos trabalhadores aos seus salários, benefícios sociais, bem-estar e à segurança no emprego. Os investigadores têm considerado a lei como a parte mais significativa da legislação sobre o trabalho na China desde há mais de uma década.(25) Este ano, o Comité Central do Partido Comunista da China (PCC) e do Conselho de Estado, emitiram em conjunto o "Documento Central No.1" (Zhongyang wenjian yihao) pretendendo uma melhor coordenação das reformas urbanas e rurais e que responda às necessidades da nova geração de trabalhadores migrantes.(26) Estes esforços de reequilíbrio entre os diferentes níveis de governo, juntamente com os protestos espontâneos dos trabalhadores, tiveram algum impacto sobre ambos os rendimentos, sobre os salários dos trabalhadores rurais e sobre os salários dos trabalhadores migrantes.(27)

 

Mas a crise financeira mundial resultou na falência de dezenas de milhares de fábricas no final de 2008 e no início de 2009 e atingiu os trabalhadores migrantes de forma particularmente dura.(28) A vulnerabilidade do modelo económico chinês, que continua muito dependente do sector exportador, foi claramente posta em evidência. O sociólogo Ho-Fung Hung (2009) usa uma imagem provocadora da China como o empregado-chefe da América dirigindo outros empregados, como o Japão, os Tigres originais (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong), e exportadores que apareceram mais tarde, como a Tailândia, as Filipinas e Indonésia, e assim se fornecem produtos baratos para os mercados consumidores dos EUA através de grande volume de exportações e se adquirem títulos do Tesouro americanos.(29) A China e os seus parceiros comerciais na rede global de produção estão cada vez mais prisioneiros das vicissitudes dos mercados internacionais instáveis e das vulnerabilidades dos mercados financeiros internacionais, enquanto o capital internacional se apropria dos lucros obtidos com os baixos salários na China.

 

A nova geração de trabalhadores migrantes chineses

 

Os trabalhadores migrantes rurais são o sustentáculo da força de trabalho utilizada na indústria da China. Em Março de 2010 o inquérito divulgado pela China National Bureau of Statistics (NBS), com base numa amostra nacional que cobre mais de 7.100 aldeias e vilas espalhadas pelas 31 unidades a nível provincial do país, o número de trabalhadores migrantes chegou quase a 230 milhões em 2009, cerca de 1,9 por cento mais do que no ano anterior (30). Um sub-grupo de 145 milhões de trabalhadores migrantes tinham emprego fora das suas aldeias e vilas (nongmingong waichu), registando-se um aumento de 3,5 por cento anualmente.(31) Desse grupo de imigrantes, a maioria (61,6 por cento) está na faixa etária entre os 16 e os 30 anos de idade (ver Tabela 1). A maioria dos 100 milhões de migrantes chineses das novas gerações - com uma média de idade de 23 anos, são solteiros(32) e, com as dificuldades financeiras e sociais a que estão sujeitos, estes migrantes mais jovens têm muitos problemas em se conseguir casar, ter filhos, ter uma casa na cidade e apoiar as famílias da aldeia.

 

 

Tabela 1.

Trabalhadores migrantes chineses por idade, 2009 (total=100)

 

 

 

 

 

Fonte: NBS (2010: secção 3, ponto 1) [em chinês]

 

 

Os jovens trabalhadores migrantes rurais (nongmingong Qingnian) estão a enfrentar uma enorme discrepância entre as suas expectativas e a realidade, e entre os rendimentos do seu trabalho e os ganhos obtidos por melhores salários pagos aos trabalhadores urbanos, profissionais e aos empregados governamentais.(33) A central sindical do Município de Shenzhen e a Universidade de Shenzhen com base num inquérito conjunto feito a 5.000 jovens trabalhadores migrantes na cidade de Shenzhen, entre Abril e Junho de 2010, constatou que o salário dos entrevistados em média mensal era de apenas 1.838,6 yuans (ou seja 267 dólares), ou seja, menos de metade (47 por cento) do montante do que os empregados residentes em Shenzhen ganham. (34) Este montante constituído por um montante fixo, o salário de base, e por prémios extras, bastante duros de ganhar, mal cobre as despesas mínimas e pouco fica para despesas "extra", para os seus estudos ou para actividades de lazer. Apesar do forte desejo dos trabalhadores migrantes inquiridos em comprarem casa na cidade, o preço de habitação mais barata na maioria das cidades designadas (jianzhi zhen) é de 5.000 yuans por metro quadrado, um nível muito além do que podem dispor. (35) Como titulares inscritos com o estatuto de agregados familiares rurais (hukou nongcun), os jovens migrantes mostram profundos sinais de ansiedade quanto ao emprego e mostram igualmente muita frustração quanto ao seu futuro, e tudo isto é um produto de se sentirem permanentemente bloqueados em empregos de salário mínimo, com poucos benefícios e poucos direitos.

 

Entre Março e Maio de 2010, a Federação Chinesa de Sindicatos (ACFTU) investigou as condições sociais e económicas dos jovens trabalhadores migrantes em 10 cidades das províncias de Guangdong, Fujian, Shandong, Liaoning e de Sichuan. (36) Em Junho, a equipa da central sindical nacional, a ACFTU, publicou um relatório em que mostra que "a geração pós-80" é diferente da dos seus pais ou dos emigrantes trabalhadores mais velhos no que se refere à sua exigência de condições dignas de trabalho. Estas crianças, filhos da reforma, têm crescido. Eles vieram de áreas rurais, com aspirações de viver o sonho chinês na cidade. Alguns jovens foram criados em áreas urbanas, quando eles acompanharam as suas famílias nas suas migrações durante a sua infância (liudong ertong, traduzido literalmente como "crianças móvel"), isto é, eles são moradores urbanos da segunda geração, mas a sua residência oficial continua a ser na aldeia. (37) Um maior número deixou as suas aldeias ou cidades (xiangzhen) imediatamente após terem terminado a escola para procurar emprego nas cidades. O emprego assalariado nas grandes cidades tornou-se o principal meio de ganhar a vida para os jovens migrantes.

 

A nível nacional, os dados apresentados pelo BNE de 2009 mostraram que 65,1 por cento da população rural migrante é do sexo masculino. (38) O casamento reduz a probabilidade de saída do trabalho, especialmente se houver crianças pequenas. Embora a segmentação de género no mercado de trabalho é persistente, as mulheres jovens, solteiras, e cada vez mais homens são recrutados nas fábricas do sector de exportação onde a procura de trabalhadores não qualificados e de baixo custo está a crescer. Os investigadores da ACFTU verificaram que a nova geração de trabalhadores migrantes está cada vez mais preocupada com o ambiente de trabalho global, com os salários e os benefícios sociais, bem como as oportunidades de desenvolvimento pessoal. Os trabalhadores migrantes são empregados principalmente na indústria transformadora e serviços, conforme demonstrado na Tabela 2.

 

 

Tabela 2.

Trabalhadores migrantes chineses por emprego, 2004 e 2009 (total=100)

 

 

 

 

Fonte: ACFTU (2010: secção 2, ponto 5) [em chinês]

 

 

Os jovens migrantes estão cada vez mais conscientes das questões sobre as igualdades e os direitos, e têm expectativas mais altas quanto à possibilidade de conseguir boas oportunidades de trabalho justo, emprego e bem-estar social e outros serviços públicos básicos. Isto é em parte explicado pela sua mais elevada formação. Dos 145.330 mil trabalhadores migrantes, com base nos dados do inquérito de 2009 feito pelo NBS, quase um terço (31,1 por cento) têm entre 21 e 25 anos de idade e são titulares de diplomas do ensino médio ou superior. (39) Eles têm aspirações mais altas quanto à sua progressão na carreira do que os trabalhadores migrantes mais velhos. Em 2007, a China Youth and Children Research Center publicou um relatório, com base em inquéritos a 4.673 jovens trabalhadores migrantes empregados em quatro sectores de construção em Beijing City, nas minas da cidade de Tangshan, nas fábricas da província de Shandong, e serviços na cidade de Chengdu, em que reflecte o desejo dos entrevistados em obterem conhecimentos e formação profissional especializada (69,7 por cento), formação jurídica (54,7 por cento), e cultura geral (47,8 por cento).(40)

 

Os trabalhadores que foram classificados como trabalhadores migrantes, incluindo os de segunda geração que vivem e trabalham nas cidades, são categoricamente tratados como parte da população rural, mesmo que trabalhem e vivam nas zonas urbanas, desde há muitos anos. Nas suas vidas do dia-a-dia, enfrentam inúmeras dificuldades no acesso aos serviços da comunidade de base, porque não são reconhecidos como moradores da região. Os seus legítimos direitos não são efectivamente protegidos: o estudo da ACFTU constatou que apenas 34,8 por cento dispõem de cuidados médicos básicos, 21,3 por cento de seguro de reforma, e apenas 8,5 por cento são elegíveis para a obtenção de subsídios de desemprego.(41) Os patrões, muitas vezes protegidos pelas autoridades locais ligadas às questões do mundo do trabalho assim como pelos departamentos judiciais, frequentemente negligenciam as responsabilidades legais para com os trabalhadores. O Direito Chinês do Trabalho, muitas vezes homenageado quando é desrespeitado, exige não só a cobertura completa, a 100 por cento, nestes três tipos de seguro social, mas também a protecção obrigatória e os benefícios ligados a acidentes do trabalho, doenças profissionais e nascimento de filhos (artigo 73). A colaboração entre as autoridades locais e os gestores das unidades fabris, no entanto, permite que muitas empresas se esquivem às suas responsabilidades legais para com os trabalhadores.

 

O regime de trabalho global está enraizado e assente na privação dos direitos dos trabalhadores migrantes e dos seus direitos de cidadania. Um tema de discussão geral, se não a sua crítica pura e simples, ligado à nova geração de trabalhadores é a sua incapacidade para "engolir a amargura" (chi-ku). Costuma-se dizer que aqueles que nasceram depois de 1980, já na economia de mercado e na nova sociedade, não são suficiente fortes para suportar as pressões, as privações. Eles são emocionalmente ou psicologicamente vulneráveis a pressões. O que eles precisam é de trabalhar diligentemente e de melhorar as suas capacidades. Os grupos de elite do governo e os empregadores têm interesse neste tipo de discurso, uma vez que precisam de trabalhadores disciplinados e de baixo custo, como combustível para a economia chinesa assente nas exportações. Mas à medida que se intensifica a exploração, desencadeiam-se fortes protestos locais, como o explica magistralmente o especialista dos mercados de trabalho Beverly Silver (2003).(42)

 

 

 

publicado por siuljeronimo às 20:00

editado por Luis Moreira às 16:23
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