Nesta viagem ao mundo infernal do trabalho: o hall de entrada
Introdução
Numa certa contestação das teses dominantes, numa crítica às concepções do Director da Faculdade de Economia e da Universidade Nova de Lisboa e do Magnífico reitor do ISCTE, coloquei a hipótese de levar e acompanhar os visitantes de Estrolábio ao inferno do mundo da trabalho da economia financeirizada e tomávamos dois pilares como âncora, como referência, a Foxconn na China e a France Télécom em França. Como se disse no texto anterior a realidade com a sua força bruta ultrapassou agora e da forma mais gritante tudo o que sobre o tema pensávamos.
Tínhamos concebido como esquema um conjunto de textos a apresentar o problema, depois um relatório de síntese da Inspecção do Trabalho enviado ao Ministro do Trabalho do governo Francês e a descrição das situações ambientais que precederam o suicídio de alguns trabalhadores da France Télécom, a que se seguiria um texto longo sobre as condições de trabalho na Foxconn. Ter-se-ia assim uma panorâmica da problemática em análise.
Porém a morte de René L. e sobretudo a sua carta, escrita há cerca de um ano e meio, sobretudo a análise que faz das condições de trabalho na France Télécom mostravam que seria um bom caminho dar uma visão mais pormenorizada das condições de trabalho no quarto operador mundial das telecomunicações e ir portanto para além do relatório de síntese apresentado pelo relator do Ministério do Trabalho. Desta forma fazemos nossa a sugestão do médico xxxxx em não estar a evidenciar a questão do suicídio, desta forma, daremos ênfase à ideia que justificou este trabalho para o estrolábio: mostrar que estamos perante uma sociedade que eleva a precariedade ao seu expoente máximo e que por essa razão as faixas mais atingidas serão as mais fragilizadas, a dos jovens e da geração dos quase seniores.
Naturalmente assim, à mesma agressão, a precariedade para todos, cada um resiste como pode e inegavelmente a capacidade de resposta ou ainda os efeitos dessa agressão estarão dependentes de múltiplos factores específicos, muitos deles específicos a cada sujeito, muitos específicos a faixas etárias, outros, específicos a questões de género, etc. Não é por caso que France Télécom com esta serie de suicídios pode ela ser vista como o microcosmos da economia global, da economia financeirizada.
Por aqui passam as privatizações, os investimentos por efeito de alavancagem, os incumprimentos, a reestruturação da dívida, as fusões, as inovações e os impactos sobre a mão-de-obra, as deslocalizações, a precariedade interna e externa, a pressão externa à redução das remunerações internas, enfim a massa salarial como variável de ajustamento último para as dificuldades de France Télecom, enfim, por aqui passam então todos os tipos de problemas dos países europeus que hoje vemos diariamente nos grandes títulos dos jornais e das televisões. Agora, talvez mais ainda com o quadro recessivo que se instalou e de que com os múltiplos planos de austeridade já implantados ou ainda sucessivamente a implantar, irá derivar um conjunto de planos paralelos com esse universo concentracionário que por esta via já igualmente se desenhou e que o recente documento pelo Governo português assinado com a Troika alguns sinais já bem nos mostrou.
Algumas noções de base
Por aqui passa a financeirização da economia:
“Os Planos NEXT e ACT correspondem a uma nova era marcada por um processo de internacionalização afirmado, e por brutal empenho na criação de valor para o accionista e numa lógica de curto termo”. (…) Numa empresa tornada sociedade anónima a partir de agora julgada no mercado, a relação ao interlocutor externo é radicalmente diferente. Já não é o utilizador ou mesmo o cliente que é necessário satisfazer, mas sim o accionista”.
Por aqui passa a modernização da estrutura produtora de serviços através da neo-taylorização de France Télécom :
“A Direcção parece ter decidido redefinir de forma coerente uma organização, os processos e um modelo de gestão para se assegurar que alcançaria os objectivos pretendidos entre os quais a redução dos seus efectivos. É assim que toda a organização de trabalho em France Télécom foi repensada em profundidade e em que a taylorização se tornou o modelo de organização e de gestão”
Por aqui passa a regra do custo mínimo independentemente da forma como é alcançado, por aqui passa o efeito de alavancagem:
“O programa Total Operational Performance (TOP) tem como objectivo libertar entre 2003 e 2005 cerca de 15 mil milhões de euros de economias que deveriam ser afectas à redução da dívida. O plano TOP consistirá a procurar todas as reduções de custos gerais que tenha sido possível efectuar. É a fase do “cost kiling” “
Por aqui passa a arma hoje absoluta da precariezação do trabalhador:
“Há assim uma precariezação institucional que é posta em prática e que se desenvolve em duas direcções:
A precariezação da relação no trabalho pelo aumento da carga de trabalho e pela perda do sentido de trabalho bem feito.
A precariezação da existência profissional por uma gestão das carreiras e das mobilidades.”
Por aqui passa uma característica do capitalismo financeirizado: este não toma conta do corpo do trabalhador, como em Marx, mas do corpo e da alma, da vida do sujeito, do trabalhador sob contrato:
“ se chego tarde a casa, encontro as minhas filhas à porta, a chorarem. Elas têm medo que me aconteça alguma coisa. (…) Com a pressão no emprego, à noite, já nem sequer suporto os meus filhos”. (…) O apagamento das fronteiras entre tempo de vida privado e tempo de vida profissional conta seguramente entre as causas particularmente nefastas em matéria de saúde no trabalho”
Por aqui também passa a ausência de perspectivas de futuro:
“É absolutamente necessário que se melhorem as condições de trabalho senão os dramas vão continuar. Já não e mais possível trabalhar em tais condições. A empresa faz tudo para forçar as pessoas a demitirem-se. Sinto necessidade de perspectivas de evolução, numa outra actividade, com um aumento de salário, com melhores condições de trabalho que pura e simplesmente são trabalhar na calma, com honestidade e com respeito”.
Por aqui também passa a ausência de colectivo de trabalho:
Durante esta fase numerosos assalariados mudaram de actividade e entraram no jogo da mobilidade. Esta fase marca o primeiro movimento importante da fragmentação do colectivo de trabalho, com um processo permanente de decomposição – recomposição dos colectivos de trabalho que passaram a ter como âncora novas lógicas económicas, mudar de actividade, etc.
Por aqui passa a falta de respeito a mais absoluta pela condição humana:
“Traíram-nos. Tratam-nos como sejamos menos que nada. (…) Falta de respeito pelas pessoas. Atentado à integridade. Houve ruptura de um pacto, sem pré-aviso. Investimos tudo na vida profissional, as horas deixaram de contar. Nenhuma realização enquanto que indivíduo. Quando se perde o seu trabalho, perde-se tudo. O ser humano deve ser tratado como cidadão, de maneira legal e equitativa. (…) O homem não trabalha só pelo dinheiro, o homem é um ser social. Não é uma questão de reparar. É necessário repartir sobre bases racionais. É necessário reformular. Um projecto simples e coerente.”.
Por aqui passa a longa distância que pode separar o em – si do para – si de uma classe de trabalhadores, o mesmo a dizer da sua situação de classe à sua consciência política enquanto classe:
“É necessário pararem de nos estarem sempre a encurralar. Quando nos encurralam, sem alternativa, resta-nos apenas a morte violenta”
“Continuam todos, empregador, Estado accionista e instância de decisão, sindicatos, assalariados, a ignorar as verdadeiras causas profundas: daqui a dez anos estaremos ainda a tratar deste mesmo assunto… Enfim não… uma certa categoria do pessoal terá desaparecido por ter partido para a reforma ou por se ter suicidado: e o problema será assim resolvido, finalmente”
Por aqui, na France Télécom, não se pode olhar para o céu azul:
“Quando olhava pela janela do primeiro andar não era o céu azul que eu via. Compreendo muito bem todos aqueles que passaram aos actos.”
Não, aqui não se pode ver o Céu azul porque se pensa rapidamente em morrer e ir para o Céu. Aqui, no mundo France Télécom, quarto operador mundial em telecomunicações, aqui sente-se por isso mesmo, sentimo-lo, nós e todos os que estes textos lêem, afinal, como Carlo Levi talvez o sentisse, que o Cristo de todas as nossas culturas, de todas as nossas religiões, Esse, aqui ainda não chegou, Esse por aqui ainda não passou, talvez porque em Eboli estará ainda aterrado, talvez porque em Eboli bloqueado terá ficado. Um outro Carlo Levi que esta nova história escreva, que esta nova paragem depois nos descreva.
A linha de equivalência, e não de fractura, com o sistema social actual
Na sua carta, René L, diz-nos que France Télécom se transformou numa máquina de criar desequilibrados mentais, dados os múltiplos mecanismos de pressão a incidir sobre os trabalhadores, ao longo do tempo, sobretudo sobre os trabalhadores na casa dos 50 anos, velhos para trabalhar dadas as rupturas de tecnologias eventualmente introduzidas e novos para se reformarem, a pesarem nos resultados financeiros. Impunha-se-nos, para esse objectivo, uma leitura de alguns dos principais relatórios de auditoria que foram feitos por Technologia à France Télécom e para nosso espanto, o universo concentracionário de France Télécom é emblemático, como exemplo in vitro, do modelo neoliberal que está a ser aplicado nas sociedades sujeitas à financeirização da economia e muitas das situações aí descritas podem ser vistas no Portugal “modernizado” pela mão de socialista chamados como José Sócrates, na França de Sarkozy, na Itália de Sílvio Berlusconi ou em qualquer outro país de economias ultraliberais apelidadas.
Uma viagem ao mundo do inferno de France Télécom será também uma viagem ao mundo brutal do trabalho que a União Europeia nos está a organizar (ou a desorganizar) quando interface esta é dos mercados financeiros, dos Blankfein, da Goldman Sachs, muito preocupados a realizar a tarefa de Deus como o chegou a afirmar, dos Jamie Dimon, de J. P. Morgan, dos John Paulson (nada a ver com Henry Paulson), que já foi o empresário do ano, minto, o especulador do ano, dos Dick Fuld de Lehman Brothers, dos Andy Hall, que como trader num só ano a especular para o CitiGroup sobre o petróleo, que nós pagámos, ganhou 100 muilhões de dólares de bónus, dos Warren Buffet, dos Macgraw-Hill, todos eles afinal e na companhia de muitos mais, bem entretidos andam a controlar, via União Europeia, as deslocações da mão invisível, a famosa regulação dos mercados, mas invisível agora não porque não exista, não, invisível agora, como diz um senador americano, porque anda para estes senhores e pelos nossos bolsos a roubar. Neste mundo infernal, a União Europeia aparece como o polícia a garantir que essa missão será bem executada.
Estranha visão da Democracia que assim nos é dada.
Se assim é, então será para todos nós claro que a primeira linha dos obstáculos a abater é exactamente o modelo que serve de referência para os mercados de trabalho actuais, se é que de mercado ainda se pode falar, que dos Bancos aos Seguros, da Função Pública às Universidades, está a ser aplicado e que por essa via a todos nós tem condicionado, modelo este em que os nossos Durão Barroso e colegas de serviço, como se exemplifica agora com o documento do acordo assinado pelo Governo português e pela Troika, se têm bem empenhado em levar até ao extremo possível e em que, para tal, nos diversos governos nacionais se têm bem apoiado.
Esta é a razão pela qual paralelamente à viagem ao mundo do trabalho que vos temos estado a propor, colocaremos textos adicionais num outro horário, sobre a crise na Europa.
Abertas portanto as portas do mundo infernal de France Télécom, resta-nos entrarmos, para assim melhor compreendermos o que é o mundo do trabalho no capitalismo moderno, na economia financeirizada, na economia globalizada, mas com os olhos e os ouvidos atentos no exterior, pois como o presente texto nos indica as relações ou as equivalências com o que se passa algures em Lisboa, em Madrid, em Roma ou em um outro canto qualquer desta nossa Europa talvez não seja muito diferente disto, como o que iremos presenciar depois de se entrar.
Já que estamos à entrada, entremos pois... e pela porta que que Réné L. com a sua carta nos abriu.
Comentário de Luis Moreira
Sou gestor de empresas, por trinta anos exerci aquela profissão, sou licenciado em Organização e Gestão de Empresas e em Contabilidade e Gestão de Empresas.
Trabalhei em cerca de 8 empresas como gestor, na área financeira e a seguir na área global. Fui também gestor do Programa de Construção e Equipamento de 12 novos hospitais.
E isto vem a propósito de quê?
Porque reestruturar uma empresa ou fechá-la, assim mandando trabalhadores para o desemprego é um acto de gestão como qualquer outro e quem exerce aquelas funções não pode furtar-se a fazê-lo. Custa muito, tira-nos noites de sono, mas muitas vezes não há alternativa. Se a empresa não é viável e se a minha tesouraria( as empresas começam todas a fechar pela tesouraria) me disser que não há dinheiro para os salários que faço eu?
Experimentam-se todos os truques, anda-se às vezes anos a fazer contorcionismo técnico-financeiro, prolonga-se o prazo de pagamentos, encurta-se o prazo de recebimentos, reestruturam-se dívidas bancárias, aumentam-se os capitais próprios mas há um dia em que a realidade está, inexoravelmente, ali à nossa porta. Terminou!
Bem diferente é se a empresa é viável, está bem de saúde, mas o accionista quer mais. Fazem-se investimentos de equipamentos de substituição que libertam trabalhadores, mudam-se produtos, procuram-se outros mercados deslocando para países longínquos processos produtivos onde a mão de obra é muito mais barata e os impostos mais baixos.Isto já é a procura de mais lucro, é a ganância a mandar e quem sofre são os trabalhadores que são lançados no desemprego.
Duas realidades bem diferentes, ambas dolorosas, mas a segunda é imoral e a primeira é necessária.
No caso que vimos tratando, a France Télécom, o que está em jogo é o principio que tudo subverte. Ganhar sempres mais, como se as "árvores chegassem ao céu". Começaram por um erro de gestão, aliás, habitual e bem conhecido, crescer sem que para isso se reunam as condições necessárias.São os gestores que deveriam ir para a rua e não os trabalhadores.
Crescer sempre a qualquer preço com o intuito de dar mais dinheiro ao accionista nem que para isso se tenha, implacavelmente, de destruir os postos de trabalho de muita gente. A privatização foi o primeiro passo, a partir dali foi sempre a tirar "
Iremos, ao longo dos dias comentar os diversos textos que o Prof. Júlio Mota publicar. Assim seja capaz. O leitor está convidado para a discussão deste tema tão apaixonante.
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