Sexta-feira, 6 de Maio de 2011

Passadeiras de Flores em Vila Real – 1 - por Elísio Amaral Neves

 

Este espaço diário passou a ser uma praça, onde os meus amigos vão montando banca. Manterei a minha, mas o produto que vendo já é demasiado conhecido. Depois do Carlos Mesquita, do Luís Moreira, do Manuel Simões, do Raúl Iturra, trago hoje ao "pretérito" Elísio Amaral Neves. Homem de acção, grande animador cultural ligado ao Grémio Literário Vila-Realense. As «passadeiras de flores», que pude apreciar em 1962, constituem uma tradição religiosa da capital de Trás-os-Montes que ultrapassa as fronteiras do sagrado, invadindo o território do profano, como, aliás, acontece com tantas outras tradições. Pela sua extensão, o estudo etnográfico de Elísio Amaral Neves, recentemente publicado em volume dos "Cadernos culturais" (editados pelo Grémio em colaboração com o Município), será dividido em dois posts. Amanhã sairá o segundo - peço a vossa atenção para Elísio Amaral Neves. CL

 

O IV Concílio de Latrão, no séc. XIII, estabeleceu para os católicos os preceitos religiosos, aliás impostos pelos 2.º e 3.º Mandamentos da Igreja, relativos

 à obrigação de se confessarem e comungarem na época da Páscoa, podendo os enfermos fazê-lo em casa e até no leito.

 

Nesta última circunstância, os familiares dos enfermos solicitavam aos párocos da sua área a deslocação a suas casas, ocorrendo esta deslocação na maior parte das vezes sem qualquer manifestação exterior. No entanto, a visita a casa dos enfermos e entrevados podia igualmente acontecer com acompanhamento, habitualmente denominado Sagrado Viático (originariamente esta expressão só se aplicava à Eucaristia ministrada aos que se encontravam prestes a morrer), Procissão do Senhor aos Enfermos, Procissão do Senhor aos Doentes ou Procissão do Senhor aos Entrevados, expressões que designam o grupo de pessoas que acompanham o sacerdote, com as funções de segurar o pálio, tocar a campainha, transportar círios e ajudar na distribuição da comunhão.

 

Em Vila Real, encontramos este costume já vulgarizado na década de 1870[i] (admitimos que, à semelhança do que aconteceu noutras regiões do país, se tenha estabelecido alguns séculos antes), numa manifestação que ocorre em simultâneo com procedimento idêntico para com os presos da Cadeia Civil, numa altura em que estes já não tinham possibilidade de ouvir a missa semanal na Capela da Senhora dos Cativos, capela particular do séc. XVII, situada em frente da cadeia e desde 1815, e após prolongado abandono, convertida em casa da guarda dos soldados que serviam no estabelecimento prisional.

 

Em nossa opinião, o Sagrado Viático em Vila Real enquadra também desde o início os reclusos, fazendo por isso todo o sentido a tradição de que o mesmo teve origem na Paróquia de S. Dinis, local onde se situavam a Cadeia Civil e o Aljube (cadeia eclesiástica). Só posteriormente terá sido estendido aos enfermos, numa atitude que, estamos certos, deve ter revestido uma forma menos exuberante, já que a visita à Cadeia configurava por vezes uma caridade um pouco ostentosa. Por essa altura, as artérias da vila, assim como a Cadeia, eram enfeitadas por comissões que se organizavam por rua, com palmeiras cruzadas em arco, mastros com bandeiras, colgaduras, colchas e vasos com flores nas varandas e janelas. Arbustos e rosmaninho assinalavam as portas dos enfermos e entrevados, objecto da visita do pároco para efeitos de ministrar a Santa Eucaristia.

 

 

A visita ocorria inicialmente no Domingo de Pascoela e muitas vezes em simultâneo nas duas paróquias vila-realenses, S. Dinis e S. Pedro. A procissão que se organizava para a freguesia de S. Dinis, e que por isso contemplava a Cadeia Civil, era habitualmente acompanhada pelas principais autoridades administrativas, militares e religiosas. Aos presos era igualmente oferecido dinheiro, recolhido por crianças vestidas de anjos que acompanhavam a procissão. A Banda Marcial, constituída em 1875, esteve presente nas primeiras iniciativas, tocando durante o percurso e as visitas, e sobretudo enquanto decorria o jantar (designação dada à refeição que hoje conhecemos por almoço) oferecido aos presos, que revestia carácter excepcional. Como  exemplo, refira--­se que, em 1881[ii], foi oferecido a cada preso, pelos sócios da Associação Industrial Vila-Realense[iii], de que era presidente Miguel José Claro, um quartilho de vinho, uma bola, sopa de macarrão e ervanços, sopa de trigo e macarrão, feijão ensopado, arroz, um arrátel (459 g) de vaca, um arrátel de vitela assada, um arrátel de presunto e duas laranjas.

 

Na Paróquia de S. Pedro, nesses tempos mais recuados, o Sagrado Viático[iv] era acompanhado por uma banda e, talvez por a importância que as entidades lhe davam ser desigual, é nessa área urbana, e em particular no seu bairro mais popular, o Bairro dos Ferreiros (Bairro de Santa Margarida), que os primeiros enfeites vão ganhar uma dimensão que cativou a atenção de todos.

 

Segundo a tradição, teriam aparecido no início da década de 1930, quando era presidente da Câmara o Dr. Júlio António Teixeira, as primeiras passadeiras no referido bairro[v]. Certo é que, da década seguinte, dos anos de 1946 e 1947, temos imagens muito expressivas dos arranjos efectuados na Rua Nova (Paróquia de S. Dinis), que igualmente reivindica a paternidade das decorações mais expressivas e o restaurar da tradição[vi]. Mas as passadeiras de flores[vii] no formato que ganhou justificado interesse turístico e envolveu um número muito significativo de arruamentos da cidade, nasceram na década de 1950[viii].

 

 

 

 

Em 1955, segundo António de Jesus Lima (1896-1989)[ix], um homem muito habilidoso, proprietário do Café Imperial na Rua Direita (onde hoje está o Café Guanabara) e primeiro animador das Marchas Luminosas, uma comissão de senhoras da Rua Alexandre Herculano, onde se distinguiam a Dona Maria de Lurdes Pinto Martins (1916-), funcionária do Ninho dos Pequeninos, e a chapeleira Dona Odete Malheiros, procurou-o, por sugestão do Sr. Jaime Samardã, para lhe solicitar uma ideia para um arco com que pretendiam embelezar a rua, por ocasião da visita do Senhor aos Entrevados. António Lima disse de imediato não concordar com a ideia, dado tratar-se de uma cidade que justificaria uma decoração mais elaborada, sugerindo-lhes em alternativa que arranjassem muitas flores e ramagens. Assim fizeram e, no dia combinado, ficaram surpreendidas quando o Sr. António Lima mostrou um papel com uma planta de uma autêntica passadeira de flores. E assim começou esta manifestação (no ano de 1957, e não 1955, como por equívoco o Sr. António Lima refere), que produziu verdadeiras obras de arte e atraiu muitas outras pessoas e instituições que passaram a acompanhar o Sagrado Viático, e que envolveu um grande número de ruas das duas paróquias, deixando as visitas de ser feitas em simultâneo nas duas freguesias: o Domingo de Pascoela foi inicialmente dedicado à de S. Dinis e o imediato à de S. Pedro. (Às vezes, e porque o inverno se prolongava, não havendo por isso flores suficientes, a data era mudada e a iniciativa tinha lugar um pouco mais tarde.)[x]

 

A Paróquia de S. Dinis foi animada pelo Padre Henrique Maria dos Santos (1920-)[xi]. A Rua Nova, independentemente do envolvimento de praticamente todas as pessoas da rua, como aliás acontecia nas restantes, tinha como principais responsáveis as senhoras Dona Maria da Conceição Ferreira Botelho e Dona Adelina de Sousa Freitas, sendo a recolha das flores e a subsequente separação das mesmas feita no forno à data existente no Largo do Terreiro. Na Paróquia de S. Pedro, a principal área objecto desta actividade, nessa época (o período mais nobre decorre entre 1957 e 1963, havendo notícias de idênticas iniciativas posteriores a esta data[xii], mas nem sempre associadas ao Sagrado Viático, como é o caso das passadeiras feitas para a visita do Presidente da República, Almirante Américo Deus Rodrigues Tomás em 1965[xiii], ou as feitas na década de 1990, na Rua Conde de Vila Real, por ocasião da Procissão do Corpo de Deus), o grande animador e personalidade indissociável desta iniciativa é o pároco da freguesia, Padre Abel Teixeira Sobrinho (1911-2000)[xiv]. Em termos gerais, refira-se que durante muitos dias, e quase sempre à noite, as pessoas organizadas por rua recolhiam em sacos, cestos e caixas[xv], nas quintas, montes e jardins, todo o tipo de flores e verdes da época (folhas de aradeira, camélias, rosmaninho, flor de giesta branca e amarela, alecrim, flor de tremoço, malmequeres, etc, etc). Reuniam-se em espaços próximos das ruas a enfeitar suficientemente amplos para permitirem o trabalho de selecção, por forma a tirar partido das flores, e coloriam nalguns casos, em substituição das cores em falta, com anilinas a serradura[xvi] (obtida na Fábrica de Serração de Abambres e na Empresa Cerâmica de Vila Real) que constituía a base das passadeiras. Esses espaços eram lugares como o Ninho dos Pequeninos; o antigo quartel dos Bombeiros da Cruz Branca, na Rua Direita; a oficina da Dona Casimira, colchoeira, na Rua de Santa Marta; os baixos da casa de jornais da Dona Marquinhas, na Rua Miguel Bombarda; os baixos da casa da Dona Irene Mota e Costa e a oficina do Sr. João albardeiro, na Rua Avelino Patena[xvii]. Na noite anterior ao da visita e durante toda a noite, com um intervalo para um café, um chá e uns biscoitos, atapetavam as ruas, e sem que alguma vez, como era aliás desejo de todos, houvesse competição, procurava-se de ano para ano rivalizar saudavelmente, independentemente de ficar sempre o sentido geral de respeito pelo trabalho realizado por todos.

 

 _________

[i] Cf., por exemplo, O Transmontano, Vila Real, 12 de Abril de 1874, p. 2.

[ii] O Vilarealense, Vila Real, 5 de Maio de 1881, p. 2.

[iii] A Associação Industrial Vila-Realense foi fundada em 1865 e, no âmbito das suas competências, administrava um Montepio e um Monte de Piedade, designação que na época qualificava uma espécie de estabelecimento parabancário a que podiam recorrer os seus associados.

[iv] O Sagrado Viático realizou-se com mais ou menos regularidade até 1912, inclusive. Restaurada a tradição em 1945, na sequência de um interregno de mais de três décadas, foi suspenso de novo em 1967, ano da última procissão conhecida.

[v] Não se confirma esta informação, já que o mandato do Dr. Júlio Teixeira (14 de Março de 1931 a 29 de Novembro de 1932) faz parte do longo período de “umas dezenas de anos” em que o Sagrado Viático não se realizou em Vila Real. (O Vilarealense, Vila Real, 12 de Abril de 1945, p. 2.)

[vi] «[...] As ruas por onde passou o emocionante préstito, mas sobretudo naquelas onde havia enfermos que receberam a Visita do Sagrado Viático, estavam caprichosamente engalanadas, destacando-se de entre todas, sem desprimor para ninguém, a Rua Nova, toda alcatifada de rosmaninho, lindas passadeiras, profusão de plantas ornamentais, etc. e a Rua da Misericórdia e Largo de “O Vilarealense”, onde se atapetou o pavimento de mimosas flores, erguendo-se elegantes arcos de palmeiras, vendo-se ricos damascos e colgaduras pendentes das janelas e varandas.

[...] Eis uma simpática tradição que se reatou e cujas brilhantes inovações é preciso manter, conservar, e cobrir sempre daquele encanto que revestiram este ano.

Aos srs. P.es Nascimento Barreira e Henrique dos Santos, abades de S. Pedro e da Sé e aos fiéis, ― os nossos parabens.» (O Vilarealense, Vila Real, 2 de Maio de 1946, p. 3)

[vii] Também designadas por tapetes de flores, tapetes floridos ou tapeçarias floridas.

[viii] No final da década de 1940, o Sagrado Viático já envolvia um número significativo de arruamentos: «[...] Nalgumas ruas estabeleceram-se artísticas decorações, numa enternecedora competição, destacando-se pelo seu requintado bom gosto e calorosa manifestação de fé as ruas de Santa Marta, do Sargento Pelotas, do Córgo, da Guia, Misericórdia e Fonte Nova, sendo dignas de menção especial a rua de S. Dinis, onde os moradores verdadeiramente capricharam em entusiasmo e intuição e, ainda ― sem desprimor por ninguém! ― a rua Nova, que bateu o ‘record’ na visita do Senhor aos Entrevados, postando-se, aqui e além, figuras alegóricas, espargindo flores sobre o pálio, enquanto a Academia cobria com as suas capas negras o pavimento da rua por onde passou o Sagrado Viático.» (O Vilarealense, Vila Real, 8 de Abril de 1948, p. 3)

[ix] “Crónica da cidade ― A origem das tapeçarias floridas nas ruas de Vila Real”, in Ordem Nova, Vila Real, 26 de Maio de 1963, p. 2.

[x] Situação que a imprensa não interpreta favoravelmente: «[...] o acontecimento tem o seu calendário próprio, que não pode nem deve fugir à espiritualidade que criou e fundamentou o efectivar desta exibição religiosa, em complemento da Procissão do Senhor aos Entrevados [...].» (O Vilarealense, Vila Real, 2 de Maio de 1963, p. 2)

[xi] O Dr. Henrique Maria dos Santos recorda ainda hoje o ambiente de festa que se vivia nas ruas que o pároco visitava e dá testemunho da simulação de situações de doença que então se fazia, quando não havia qualquer doente ou entrevado em determinada rua.

[xii] Este tipo de actividade estendeu-se até 1967, inclusive, isto é, onze anos no total.

[xiii] As passadeiras, com desenhos alusivos à visita do Chefe de Estado em 23 de Maio de 1965, estendiam-se num itinerário que o mesmo iria percorrer a pé, na companhia da sua comitiva: Avenida Carvalho Araújo, junto à Sé, Largo do Pelourinho, Rua António de Azevedo, Rua Serpa Pinto, Rua dos Combatentes da Grande Guerra, Rua Dr. Roque da Silveira, Rua Alexandre Herculano e Rua da Boavista.

[xiv] Encontrámos muitas referências à Procissão do Senhor aos Entrevados na Crónica da Residência de Vila Real da Ordem Franciscana, de que o P.e Abel Sobrinho foi Superior.

Crónica da Residência de Vila Real [da Ordem Franciscana], Outubro de 1939 a 30 de Junho de 1958: 16 de Abril de 1950, p. [43 v]; 1 de Abril de 1951, p. [53]; 20 de Abril de 1952, p. [63]; 12 de Abril de 1953, p. [71]; 25 de Abril de 1954, p. [77]; 17 de Abril de 1955, p. [82]; 8 de Abril de 1956, p. [85 v]; 19 de Abril de 1958, p. [95].

«[...] Dia 20 ― Dia do Senhor Jesus aos doentes.

Logo de manhã, estralejaram foguetes, e uma banda de música, percorrendo as principais artérias da cidade, entoou algumas marchas. Os pavimentos das ruas estavam artisticamente enfeitados com pétalas de variadas flores, de arbustos, serrim colorido, etc., apresentando algumas, lindos motivos litúrgicos muito bem desenhados. Distinguia-se, entre todas, a Rua Alexandre Herculano, pelo primor de execução de suas figuras, das quais destacamos a igreja de S. Pedro, que causou em toda a gente, a maior admiração.

Às 9 horas da manhã, começou a movimentar-se a Procissão, muito concorrida de povo e com muitas figuras de anjinhos e de santos.

Quando a Procissão terminou o seu enorme percurso, passava do meio dia. Seguiu-se imediatamente a missa, com a qual se deram por findas, as cerimónias maravilhosas da manhã deste dia.» (Crónica da Residência de Vila Real [da Ordem Franciscana], Outubro de 1939 a 30 de Junho de 1958: 20 de Abril de 1958, p. [95 v])

Crónica da Residência de Vila Real [da Ordem Franciscana], Julho de 1958 a 1998: 11 de Abril de 1959, p. 8; 12 de Abril de 1959, p. [8 v]; 30 de Abril de 1960, p. [18 v]; 1 de Maio de 1960, p. 19; 16 de Abril de 1961, p. 22; 5 de Abril de 1964, p. 29; 24 de Abril de 1966, pp. [37 v] e 38; 9 de Abril de 1967, p. [40 v].

[xv] Transportadas em camionetas que tanto podiam ser do armazenista Fernandes, da Rua Avelino Patena, como da Câmara Municipal ou do Regimento de Infantaria 13, durante o comando do Coronel Camilo Leite Gomes.

[xvi] Manuel Claro recorda que usou raspas de madeira que coloria com cal e um pouco de corante, em substituição das pétalas das rosas, quando as não havia em quantidade suficiente, nas caras e mãos das figuras representadas nas passadeiras por que foi responsável.

[xvii] E também os quintais, ao ar livre.

 

 

(Continua)

 

publicado por Carlos Loures às 12:00

editado por Luis Moreira às 12:53
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