Sábado, 7 de Maio de 2011

Lappin e Lapinova 1 - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  Lappin e Lapinova

 

 

(conclusão)

 

Foram para a mesa. Rosalind estava meio escondida atrás dos crisântemos, cujas grandes pétalas vermelhas e doiradas se abriam em bola. Tudo era doirado. Uma ementa marginada a ouro referia os pratos, com os nomes escritos com iniciais doira­das, que iam ser servidos. Rosalind mergulhou a colher num re­cipiente cheio de um líquido doirado e claro. O nevoeiro alva­cento lá de fora transformado, graças à iluminação, numa fosforoscência doirada que esbatia os contornos das travessas e da­va aos ananases uma pele de ouro áspero. Só ela no seu vestido de noivado branco, com os olhos salientes abertos e observando, parecia ali, no meio de tanto ouro, um pingente de gelo insolú­vel.

 

À medida que o jantar avançava, contudo, a sala ia ficando cada vez mais quente. Gotas de suor salpicavam as testas dos homens. Rosalind sentia que o seu gelo estava a liquefazer-se. Sentia que estava a ser derretida; dispersa; dissolvida no nada; em breve ia desmaiar. Depois, através do nevoeiro do seu cére­bro e da zoada que lhe afligia os ouvidos, ouviu uma voz de mulher exclamar: «Mas eles multiplicam-se tanto!»

 

Os Thorburn — sim; multiplicavam-se tanto, ecoou ela, olhando à volta da mesa os rostos avermelhados que lhe pare­ciam duplicar-se na atmosfera doirada que os envolvia e na tontura que dela se apoderara. «Multiplicam-se tanto.» Então, John bradou:

 

«São uns diabos pequenos!... Só a tiro! Só pisando-os com botas cardadas! É a única maneira de lidar com eles... os coelhos!»

 

Com esta palavra, a palavra mágica, Rosalind sentiu-se revi­ver. Espreitando por entre os crisântemos, viu o nariz de Ernest a franzir-se. O rosto enrugou-se-lhe e ele franziu-o várias vezes seguidas. E então uma catástrofe misteriosa transformou os Thorburn. A mesa doirada tornou-se uma charneca de giesta em flor; o ruído das vozes, no assobiar feliz de um melro que descia do céu. Era um céu azul — as nuvens passavam lenta­mente. E ei-los, todos os Thorburn, transformados. Rosalind olhou para o sogro, um homenzinho pequeno de bigode caído. O seu passatempo era coleccionar coisas várias — selos, caixas de esmalte, pequenos objectos de enfeitar mesas do século XVIII, que escondia nas gavetas do escritório da vigilância da mulher. Agora ele parecia-lhe um caçador furtivo, escapando-se com a sua bolsa recheada de faisões e perdizes que iria cozinhar na panela da sua casa escondida nos campos e cheia de fumo. Era isso o que o sogro realmente era — um caçador furtivo. E Célia, a filha por casar, que estava sempre a meter o nariz nos segredos das outras pessoas, nas pequenas coisas que os outros gostariam de guardar para si próprios — essa era um furão branco de olhos vermelhos e com o nariz todo sujo de terra por causa das horríveis pesquisas esconderijos em que andava sem­pre. Andar de um lado para o outro pendurada dos ombros dos homens dentro de uma rede e viver numa toca — era uma vida desgraçada, essa vida de Célia; a culpa não era dela, porém. E era assim que Rosalind agora a via. Depois, olhou para a sogra — a quem tinham dado o cognome de Squire. Corada, altanei­ra, cheia de si, era assim que ela se mostrava, agradecendo à direita e à esquerda, mas agora Rosalind — ou melhor, Lapinova — via-a de modo diferente: via-a contra o fundo da casa de família em decadência, com o gesso a desprender-se das pare­des, e ouvia-a, com a voz cortada por um soluço, a agradecer aos filhos (que a detestavam) um mundo que tinha já deixado de existir. Fez-se um silêncio súbito. Levantaram-se todos de copo erguido na mão; a seguir beberam; tudo acabara.

 

«Oh, rei Lappin!», gritou Rosalind, enquanto voltavam os dois através do nevoeiro de Londres, «se o teu nariz não tivesse franzido naquele momento preciso, eu tinha sido apanhada na armadilha!»

 

«Mas estás salva», disse o Rei Lappin, apertando-lhe a pata.

 

«E bem salva!», respondeu ela.

 

 

E continuaram ambos a atravessar o Parque, o Rei e a Rainha das charnecas, do campo enevoado e das giestas per­fumadas.

 

E o tempo foi passando; um ano; dois anos. E numa noite de Inverno, que por coincidência sucedeu ser a do aniversário da festa das bodas de ouro — mas Mrs. Reginald morrera; a casa estava para alugar e só vivia lá um guarda — Ernest che­gou do escritório e entrou em casa. Tinham uma bela casinha, os dois; metade de um grande edifício, por cima de uma loja de selas e arreios para cavalos, em South Kensington, não muito longe da estação do metropolitano. Estava frio, havia nevoeiro no ar, e Rosalind estava sentada perto do lume, a coser.

 

«O que é que imaginas que me aconteceu hoje?», começou ela, mal ele se instalou de pernas estendidas para as brasas. «Ia a atravessar o ribeiro quando...»

 

«Mas que ribeiro?», interrompeu-a Ernest.

 

«O ribeiro que fica no fundo da floresta, onde o nosso bos­que pega com a floresta negra», explicou ela.

 

Ernest ficou a olhar para ela, estupefacto por um momento.

 

«Mas que disparate é esse?», perguntou por fim.

 

«Oh. querido Ernest!» exclamou ela cheia de desânimo. «Rei Lappin». acrescentou, aquecendo as pequenas patas da frente no lume do fogão. Mas o nariz dele não franziu. As mãos dela— agora eram mãos — crisparam-se no tecido que estava a co­ser, e os olhos ficaram muito fixos e abertos. Ele levou uns cin­co minutos a transformar-se de Ernest Thorburn em Rei Lappin; e enquanto esperava, ela sentia uma força a pesar-lhe na parte de trás do pescoço, como se alguém a estivesse a estran­gular. Por fim, ele lá se transformou em Rei Lappin; o nariz franziu-se-lhe; e passaram o serão a vagabundear pela floresta como de costume.

 

Mas Rosalind dormiu mal. A meio da noite acordou, sentin­do-se como se lhe tivesse acontecido qualquer coisa de estranho. Estava entorpecida e com frio. Acabou por acender a luz e olhar para Ernest, deitado ao seu lado. Ele dormia profunda­mente. Ressonava. Mas embora estivesse a ressonar, o seu nariz continuava perfeitamente imóvel. Parecia que nunca na vida se tinha franzido para ela. Seria possível que fosse realmente Er­nest? E ela estaria realmente casada com Ernest? Surgiu-lhe uma imagem da sala de jantar da sogra; e lá estavam ela e Er­nest, envelhecidos, rodeados por grandes aparadores de madeira trabalhada... Eram as suas bodas de ouro. Não aguentava mais.

 

«Lappin, Rei Lappin!» sussurou ela, e por um instante o na­riz pareceu franzir-se e deixar de novo tudo bem. Mas ele conti­nuou a dormir. «Acorda, Lappin, acorda!» gritou Rosalind.

 

Ernest acordou; e vendo-a sentada na cama, direita, ao seu lado, perguntou:

 

«O que foi?»

 

«Pensei que o meu coelho tinha morrido!» soluçou ela. Mas Ernest zangou-se.

 

«Não digas disparates, Rosalind», disse ele. «Deita-te e dorme».

 

Virou-se para o outro lado. No instante seguinte, dormia de novo profundamente; ressonava.

 

Ela é que não era capaz de adormecer. Ficou deitada, en­roscada no seu lado da cama, como uma lebre encolhida. Apagara a luz, mas o candeeiro da rua iluminava fantasmagoricamente o tecto, e as árvores lá fora lançavam uma rede por cima da sua cabeça, como se ela estivesse no meio de ramagens sombrias, assustada, de um lado para o outro, retorcida, às vol­tas, caçando, sendo caçada, ouvindo o ladrar dos cães de caça e as trompas dos caçadores: esgueirava-se, fugia... até que a cria­da abriu as cortinas e trouxe o chá da manhã.

 

No dia seguinte, não conseguia pensar em nada. Parecia ter perdido qualquer coisa. Sentia-se com o corpo ressequido; como se tivesse encolhido, tornando-se negro e escuro. Tinha as arti­culações também entorpecidas, e quando olhou para o espelho, o que fez várias vezes enquanto vagueava pela casa, os olhos pareciam querer saltar-lhe da cara, como as passas de uva que cobrem um bolo. As salas também pareciam ter perdido toda a sua vida. Grandes móveis colocados de uma maneira estranha, com ela a tropeçar neles a todo o momento. Por fim pôs o cha­péu e saiu. Caminhou ao longo de Cromwell Road; e todas as casas por onde passava pareciam-lhe ser, ao entrever-lhes o in­terior, salas de jantar onde as pessoas estavam sentadas, salas cheias de pesados aparadores, com cortinas de renda amarela e armários de mogno. Acabou por se dirigir para o Museu de História Natural; costumava gostar de lá ir quando era peque­na. Mas a primeira coisa que viu ao entrar foi uma lebre em­palhada em cima de neve fingida com olhos de vidro cor-de-rosa. Aquilo fê-la fugir. Talvez ficasse melhor com o lusco-fusco. Foi para casa e sentou-se ao lume, sem acender uma úni­ca luz, e tentou imaginar que estava sozinha na charneca; e ha­via um ribeiro a correr; e do outro lado das águas uma floresta negra. Mas não foi capaz de ir para além do ribeiro. Acabou por se aconchegar num alto de relva húmida, e ficou sentada na cadeira, com as mãos vazias a abanar e os olhos esgazeados, como olhos de vidro, postos nas chamas. Depois, houve uma ti­ro de espingarda... e ela estremeceu num sobressalto, como se tivesse sido atingida. Afinal era apenas Ernest que metia a chave à porta. Rosalind esperou a tremer. Ele entrou e acendeu a luz. Ei-lo de pé, à sua frente, direito, alto, esfregando as mãos vermelhas de frio.

 

«Sentada às escuras?», perguntou.

 

«Oh, Ernest, Ernest!» gritou ela agitando-se na cadeira.

 

«Bom, que aconteceu agora?», perguntou ele alegremente, aquecendo as mãos nas chamas.

 

«Foi Lapinova...» balbuciou ela, olhando assustada para ele, com os seus grandes olhos fixos. «Acabou-se Ernest. Perdi-a!»

 

Ernest franziu o sobrolho, apertando os lábios com força.

 

«Oh, era isso então?», disse ele, sorrindo pouco à vontade para a mulher. Durante uns dez segundos, ficou ali de pé, si­lencioso; Rosalind esperava, sentindo um par de mãos a aper­tar-lhe o pescoço.

 

«Sim», acabou ele por dizer. «Pobre Lapinova...» E começou a arranjar a gravata no espelho que havia por cima da chaminé.

 

«Foi apanhada numa armadilha», acrescentou Ernest, «mor­ta», e sentou-se a ler o jornal.

 

Foi assim que o casamento deles acabou.

 

(in Virginia Woolf, A Casa Assombrada, Relógio d'Água)

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00

editado por Luis Moreira às 19:31
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links