Virginia Woolf Lappin e Lapinova
(conclusão)
Foram para a mesa. Rosalind estava meio escondida atrás dos crisântemos, cujas grandes pétalas vermelhas e doiradas se abriam em bola. Tudo era doirado. Uma ementa marginada a ouro referia os pratos, com os nomes escritos com iniciais doiradas, que iam ser servidos. Rosalind mergulhou a colher num recipiente cheio de um líquido doirado e claro. O nevoeiro alvacento lá de fora transformado, graças à iluminação, numa fosforoscência doirada que esbatia os contornos das travessas e dava aos ananases uma pele de ouro áspero. Só ela no seu vestido de noivado branco, com os olhos salientes abertos e observando, parecia ali, no meio de tanto ouro, um pingente de gelo insolúvel.
À medida que o jantar avançava, contudo, a sala ia ficando cada vez mais quente. Gotas de suor salpicavam as testas dos homens. Rosalind sentia que o seu gelo estava a liquefazer-se. Sentia que estava a ser derretida; dispersa; dissolvida no nada; em breve ia desmaiar. Depois, através do nevoeiro do seu cérebro e da zoada que lhe afligia os ouvidos, ouviu uma voz de mulher exclamar: «Mas eles multiplicam-se tanto!»
Os Thorburn — sim; multiplicavam-se tanto, ecoou ela, olhando à volta da mesa os rostos avermelhados que lhe pareciam duplicar-se na atmosfera doirada que os envolvia e na tontura que dela se apoderara. «Multiplicam-se tanto.» Então, John bradou:
«São uns diabos pequenos!... Só a tiro! Só pisando-os com botas cardadas! É a única maneira de lidar com eles... os coelhos!»
Com esta palavra, a palavra mágica, Rosalind sentiu-se reviver. Espreitando por entre os crisântemos, viu o nariz de Ernest a franzir-se. O rosto enrugou-se-lhe e ele franziu-o várias vezes seguidas. E então uma catástrofe misteriosa transformou os Thorburn. A mesa doirada tornou-se uma charneca de giesta em flor; o ruído das vozes, no assobiar feliz de um melro que descia do céu. Era um céu azul — as nuvens passavam lentamente. E ei-los, todos os Thorburn, transformados. Rosalind olhou para o sogro, um homenzinho pequeno de bigode caído. O seu passatempo era coleccionar coisas várias — selos, caixas de esmalte, pequenos objectos de enfeitar mesas do século XVIII, que escondia nas gavetas do escritório da vigilância da mulher. Agora ele parecia-lhe um caçador furtivo, escapando-se com a sua bolsa recheada de faisões e perdizes que iria cozinhar na panela da sua casa escondida nos campos e cheia de fumo. Era isso o que o sogro realmente era — um caçador furtivo. E Célia, a filha por casar, que estava sempre a meter o nariz nos segredos das outras pessoas, nas pequenas coisas que os outros gostariam de guardar para si próprios — essa era um furão branco de olhos vermelhos e com o nariz todo sujo de terra por causa das horríveis pesquisas esconderijos em que andava sempre. Andar de um lado para o outro pendurada dos ombros dos homens dentro de uma rede e viver numa toca — era uma vida desgraçada, essa vida de Célia; a culpa não era dela, porém. E era assim que Rosalind agora a via. Depois, olhou para a sogra — a quem tinham dado o cognome de Squire. Corada, altaneira, cheia de si, era assim que ela se mostrava, agradecendo à direita e à esquerda, mas agora Rosalind — ou melhor, Lapinova — via-a de modo diferente: via-a contra o fundo da casa de família em decadência, com o gesso a desprender-se das paredes, e ouvia-a, com a voz cortada por um soluço, a agradecer aos filhos (que a detestavam) um mundo que tinha já deixado de existir. Fez-se um silêncio súbito. Levantaram-se todos de copo erguido na mão; a seguir beberam; tudo acabara.
«Oh, rei Lappin!», gritou Rosalind, enquanto voltavam os dois através do nevoeiro de Londres, «se o teu nariz não tivesse franzido naquele momento preciso, eu tinha sido apanhada na armadilha!»
«Mas estás salva», disse o Rei Lappin, apertando-lhe a pata.
«E bem salva!», respondeu ela.
E continuaram ambos a atravessar o Parque, o Rei e a Rainha das charnecas, do campo enevoado e das giestas perfumadas.
E o tempo foi passando; um ano; dois anos. E numa noite de Inverno, que por coincidência sucedeu ser a do aniversário da festa das bodas de ouro — mas Mrs. Reginald morrera; a casa estava para alugar e só vivia lá um guarda — Ernest chegou do escritório e entrou em casa. Tinham uma bela casinha, os dois; metade de um grande edifício, por cima de uma loja de selas e arreios para cavalos, em South Kensington, não muito longe da estação do metropolitano. Estava frio, havia nevoeiro no ar, e Rosalind estava sentada perto do lume, a coser.
«O que é que imaginas que me aconteceu hoje?», começou ela, mal ele se instalou de pernas estendidas para as brasas. «Ia a atravessar o ribeiro quando...»
«Mas que ribeiro?», interrompeu-a Ernest.
«O ribeiro que fica no fundo da floresta, onde o nosso bosque pega com a floresta negra», explicou ela.
Ernest ficou a olhar para ela, estupefacto por um momento.
«Mas que disparate é esse?», perguntou por fim.
«Oh. querido Ernest!» exclamou ela cheia de desânimo. «Rei Lappin». acrescentou, aquecendo as pequenas patas da frente no lume do fogão. Mas o nariz dele não franziu. As mãos dela— agora eram mãos — crisparam-se no tecido que estava a coser, e os olhos ficaram muito fixos e abertos. Ele levou uns cinco minutos a transformar-se de Ernest Thorburn em Rei Lappin; e enquanto esperava, ela sentia uma força a pesar-lhe na parte de trás do pescoço, como se alguém a estivesse a estrangular. Por fim, ele lá se transformou em Rei Lappin; o nariz franziu-se-lhe; e passaram o serão a vagabundear pela floresta como de costume.
Mas Rosalind dormiu mal. A meio da noite acordou, sentindo-se como se lhe tivesse acontecido qualquer coisa de estranho. Estava entorpecida e com frio. Acabou por acender a luz e olhar para Ernest, deitado ao seu lado. Ele dormia profundamente. Ressonava. Mas embora estivesse a ressonar, o seu nariz continuava perfeitamente imóvel. Parecia que nunca na vida se tinha franzido para ela. Seria possível que fosse realmente Ernest? E ela estaria realmente casada com Ernest? Surgiu-lhe uma imagem da sala de jantar da sogra; e lá estavam ela e Ernest, envelhecidos, rodeados por grandes aparadores de madeira trabalhada... Eram as suas bodas de ouro. Não aguentava mais.
«Lappin, Rei Lappin!» sussurou ela, e por um instante o nariz pareceu franzir-se e deixar de novo tudo bem. Mas ele continuou a dormir. «Acorda, Lappin, acorda!» gritou Rosalind.
Ernest acordou; e vendo-a sentada na cama, direita, ao seu lado, perguntou:
«O que foi?»
«Pensei que o meu coelho tinha morrido!» soluçou ela. Mas Ernest zangou-se.
«Não digas disparates, Rosalind», disse ele. «Deita-te e dorme».
Virou-se para o outro lado. No instante seguinte, dormia de novo profundamente; ressonava.
Ela é que não era capaz de adormecer. Ficou deitada, enroscada no seu lado da cama, como uma lebre encolhida. Apagara a luz, mas o candeeiro da rua iluminava fantasmagoricamente o tecto, e as árvores lá fora lançavam uma rede por cima da sua cabeça, como se ela estivesse no meio de ramagens sombrias, assustada, de um lado para o outro, retorcida, às voltas, caçando, sendo caçada, ouvindo o ladrar dos cães de caça e as trompas dos caçadores: esgueirava-se, fugia... até que a criada abriu as cortinas e trouxe o chá da manhã.
No dia seguinte, não conseguia pensar em nada. Parecia ter perdido qualquer coisa. Sentia-se com o corpo ressequido; como se tivesse encolhido, tornando-se negro e escuro. Tinha as articulações também entorpecidas, e quando olhou para o espelho, o que fez várias vezes enquanto vagueava pela casa, os olhos pareciam querer saltar-lhe da cara, como as passas de uva que cobrem um bolo. As salas também pareciam ter perdido toda a sua vida. Grandes móveis colocados de uma maneira estranha, com ela a tropeçar neles a todo o momento. Por fim pôs o chapéu e saiu. Caminhou ao longo de Cromwell Road; e todas as casas por onde passava pareciam-lhe ser, ao entrever-lhes o interior, salas de jantar onde as pessoas estavam sentadas, salas cheias de pesados aparadores, com cortinas de renda amarela e armários de mogno. Acabou por se dirigir para o Museu de História Natural; costumava gostar de lá ir quando era pequena. Mas a primeira coisa que viu ao entrar foi uma lebre empalhada em cima de neve fingida com olhos de vidro cor-de-rosa. Aquilo fê-la fugir. Talvez ficasse melhor com o lusco-fusco. Foi para casa e sentou-se ao lume, sem acender uma única luz, e tentou imaginar que estava sozinha na charneca; e havia um ribeiro a correr; e do outro lado das águas uma floresta negra. Mas não foi capaz de ir para além do ribeiro. Acabou por se aconchegar num alto de relva húmida, e ficou sentada na cadeira, com as mãos vazias a abanar e os olhos esgazeados, como olhos de vidro, postos nas chamas. Depois, houve uma tiro de espingarda... e ela estremeceu num sobressalto, como se tivesse sido atingida. Afinal era apenas Ernest que metia a chave à porta. Rosalind esperou a tremer. Ele entrou e acendeu a luz. Ei-lo de pé, à sua frente, direito, alto, esfregando as mãos vermelhas de frio.
«Sentada às escuras?», perguntou.
«Oh, Ernest, Ernest!» gritou ela agitando-se na cadeira.
«Bom, que aconteceu agora?», perguntou ele alegremente, aquecendo as mãos nas chamas.
«Foi Lapinova...» balbuciou ela, olhando assustada para ele, com os seus grandes olhos fixos. «Acabou-se Ernest. Perdi-a!»
Ernest franziu o sobrolho, apertando os lábios com força.
«Oh, era isso então?», disse ele, sorrindo pouco à vontade para a mulher. Durante uns dez segundos, ficou ali de pé, silencioso; Rosalind esperava, sentindo um par de mãos a apertar-lhe o pescoço.
«Sim», acabou ele por dizer. «Pobre Lapinova...» E começou a arranjar a gravata no espelho que havia por cima da chaminé.
«Foi apanhada numa armadilha», acrescentou Ernest, «morta», e sentou-se a ler o jornal.
Foi assim que o casamento deles acabou.
(in Virginia Woolf, A Casa Assombrada, Relógio d'Água)
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau