Quarta-feira, 4 de Maio de 2011

A Marca na Parede - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  A Marca na Parede

 

 

Foi talvez por meados de Janeiro deste ano que vi pela pri­meira vez, ao olhar para cima, a marca na parede. Quando queremos fixar uma data precisamos de nos lembrar do que vi­mos. Assim, lembro-me de o lume estar aceso, de uma faixa de luz amarela na página do meu livro, dos três crisântemos na jarra de vidro redonda na chaminé. Sim, tenho a certeza de que foi no Inverno, e tínhamos acabado de tomar chá, porque me recordo de estar a fumar um cigarro quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira vez. Olhei para cima atra­vés do fumo do cigarro e o meu olhar demorou-se por um mo­mento nos carvões em brasa do fogão e veio-me à ideia a velha fantasia da bandeira escarlate tremulando no alto da torre do castelo, e pensei na cavalgada dos cavaleiros vermelhos subindo a encosta do rochedo negro. Foi com certo alívio que a imagem da marca na parede interrompeu esta fantasia, porque se trata de uma velha fantasia, de uma fantasia automática, vinda tal­vez dos meus tempos de criança. A marca era uma pequena mancha redonda, negra contra a parede branca, a cerca de seis ou sete polegadas do rebordo da chaminé.

 

Ê surpreendente a rapidez com que os nossos pensamentos se precipitam sobre um novo objecto, o transportam por um instante, do mesmo modo que as formigas se atiram febrilmente a um pedaço de palha, que em seguida abandonam sem mais...Se a marca tivesse sido feita por um prego, não podia ser para prender um quadro, apenas uma miniatura — a miniatura tal­vez de uma senhora com os anéis do cabelo empoados, rosto co­berto de pó-de-arroz e lábios vermelhos como cravos. Uma falsi­ficação, é evidente, porque as pessoas que foram donas desta casa antes de nós deviam gostar de ter pinturas desse género — um quadro velho para uma sala velha. Eram pessoas assim, pessoas muito interessantes, e penso nelas muitas vezes, quando me vejo numa situação fora do vulgar, porque nunca voltarei a vê-las, nunca saberei o que lhes aconteceu a seguir. Queriam deixar a casa porque queriam mudar de estilo de mobília, foi o que ele disse, numa altura em que estava a explicar que a arte devia ter sempre uma ideia por trás, e era como se fossemos de comboio e víssemos de passagem uma senhora de idade a servir chá e o jovem que bate a sua bola de ténis no jardim das trasei­ras da sua vivenda nos arredores.

 

Mas quanto à marca, não tinha a certeza do que pudesse ser: afinal de contas, não me parecia feita por um prego; é grande de mais, redonda de mais, para isso. Posso levantar-me, mas se me levantar para a ver melhor, aposto dez contra um que continuarei a não saber o que é; porque, uma vez feita cer­ta coisa ninguém sabe nunca como é que tudo o que se segue aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida — a fraqueza do pensamento! A ignorância da humanidade! Vou contar algumas das coisas que tenho perdido, o que basta para mostrar como controlamos poucos o que possuímos — como é precária a nos­sa vida após todos estes séculos de civilização; dessas coisas perdidas misteriosamente — que gato as teria levado, que rato as terá roído? —. começarei por referir, por exemplo, três caixinhas azuis para guardar ferros de encadernar, cujo desaparecimento é a perda mais misteriosa da minha vida. Depois há as gaiolas de pássaros, as argolas de ferro, os patins, a alcofa de carvão Queen Anne. a caixa de jogos de cartão, o realejo — tudo isto desaparecido, além de algumas jóias também. Opalas e esmeraldas, que devem estar para aí enterradas entre as raízes de um quintal. Uma complicação como não se pode imaginar, não haja dúvida! O que é de espantar, no fim de contas, é que eu esteja ainda vestida e rodeada de móveis sólidos neste mo­mento. Porque se quiséssemos um termo de comparação para a vida, o melhor seria o de um metropolitano, atravessando o tú­nel a cinquenta milhas à hora — e deixando-nos do outro lado sem um gancho sequer no cabelo! Cuspidos aos pés de Deus, inteiramente nus! Rolando por campos de tojo como embrulhos de papel pardo atirados para dentro de um marco de correio! E os cabelos puxados para trás pelo vento como a cauda de um cavalo nas corridas. Sim, são coisas destas que podem dar uma ideia da rapidez da vida, a destruição e reconstrução perpétuas; tudo tão contingente, tão apenas por acaso...

 

Mas a vida. A lenta derrocada dos grandes caules verdes de tal modo que a flor acaba por se virar, ao cair, inundando-nos com uma luz de púrpura e vermelho. Porque é que, bem vistas as coisas, não nascemos ali em vez de aqui, desamparados, in­capazes de ajustarmos como deve ser a luz do olhar, rastejando na erva entre as raízes, entre os calcanhares dos Gigantes? Por­que dizer o que são as árvores, e o que são homens e o que são mulheres, ou sequer o que é haver coisas como árvores, homens e mulheres, não será algo que estejamos em condições de fazer nos próximos cinquenta anos. Não há nada por vezes senão es­paços de luz e de escuridão, intersectados por grandes hastes densas e talvez bastante mais acima manchas em forma de rosa — rosa-pálido ou azul-pálido — de cor indecisa, e tudo isso, à medida que o tempo passa, se vai tornando mais definido e se transforma — em não se pode saber o quê.

 

Mas a marca na parede não é, de maneira nenhuma, um buraco. Poderá ter sido o resultado de qualquer substância es­cura e arredondada, uma pequena folha de rosa, por exemplo, deixada ali pelo Verão, uma vez que não sou uma dona de casa lá muito atenta a essas coisas — basta ver o pó que há na chamine, o pó que dizem ter soterrado Tróia por três vezes, des­truindo tudo excepto os fragmentos de vasos que chegaram até nós.

 

 

Os ramos da árvore batem suavemente na vidraça... O que eu quero é pensar calmamente, com sossego e espaço, sem nun­ca ser interrompida, sem ter que me levantar nunca da minha cadeira, deslizar com facilidade de uma coisa para a outra, sem qualquer sensação de contrariedade, qualquer obstáculo. Quero mergulhar fundo e mais fundo, longe da superfície, com os seus factos e coisas quebrados por distinções e limites. Para me apoiar, vou seguir a primeira ideia que passar... Shakespeare... Bom. serve tão bem como qualquer outra coisa. Um homem so­lidamente sentado numa cadeira de braços, a olhar o fogo, as­sim — enquanto uma torrente de ideias cai sem parar de um céu muito alto, atravessando-lhe o pensamento. Apoia a fronte na mão. e as pessoas, espreitando pela porta aberta — porque é de supor que a cena se passe numa noite de Verão. Mas como é estúpida esta ficção histórica! Não tem interesse absolutamente nenhum. O que eu quero é poder apanhar uma sequência de pensamentos agradáveis, uma sucessão que possa reflectir indi­rectamente a minha própria capacidade, porque há pensamen­tos agradáveis, até muitas vezes no espírito cor de rato das pes­soas que menos gostam de ser elogiadas. Não são pensamentos que nos lisonjeiam directamente; mas são eles próprios que es­tão cheios de beleza; pensamentos como este:

 

«E depois entrei na sala. Eles estavam a discutir botânica. Eu disse-lhes que vira uma flor a crescer num monte de es­combros de uma velha casa caída em Kingsway. As sementes, disse eu. devem datar do reinado de Carlos I. Que flores havia ao reinado de Carlos I?» Perguntei-lhes isso — mas não me lembro da resposta. Grandes flores cor de púrpura, talvez. E assim por diante. A todo o momento vou construindo uma imagem de mim própria, apaixonadamente furtiva, que não posso adorar directamente, 

porque se o fizesse, cairia imediatamente em mim e deitaria a mão a um livro num gesto de autodefesa. Ê curioso, com efeito, como uma pessoa protege a sua própria imagem de toda a idolatria ou de qualquer outro sentimento que a possa tornar ridícula ou demasiado diferente do original para ser verosímil. Ou talvez não seja assim tão curioso, afinal de contas? Ê uma questão da mais alta importância. Imagine-se que o espelho se partia, a imagem desaparece e a figura român­tica rodeada pela floresta profunda e verde desfaz-se: fica ape­nas essa concha exterior da pessoa que os outros habitualmente vêem — que insípido, oco, inútil e pesado se tornaria o mundo! Um mundo onde não seria possível viver. Quando no autocarro ou sobre os carris do metropolitano encaramos os outros, esta­mos ao mesmo tempo a olhar para o espelho; é por isso que se torna possível vermos então como os nossos olhos são vagos, vítreos. E os romancistas do futuro darão uma importância crescente a estes reflexos, porque não há apenas um reflexo, mas um número quase infinito deste género de retracções; aí es­tão as profundidades que os romancistas do futuro terão que explorar; esses os fantasmas que terão de perseguir, deixando cada vez mais de lado as descrições da realidade, pressupondo-a já suficientemente conhecida pelo leitor, como fizeram também os Gregos e Shakespeare, talvez — mas estas generalizações co­meçam a parecer-me inúteis. As ressonâncias militares da pa­lavra «generalização» são evidentes. Lembra-nos uma série de dispositivos destinados a conduzir as pessoas, gabinetes de mi­nistros — toda uma quantidade de coisas que em crianças pen­sámos serem as mais importantes, os modelos de tudo o que ex­iste, e de que não poderíamos afastar-nos sem incorrermos no risco da condenação eterna. As generalizações evocam os do­mingos em Londres, passeios de domingo, almoços de domingo, e também certas maneiras habituais de falar dos mortos, das roupas, das tradições — como essa de nos sentarmos juntos à roda, na sala, até à hora do costume, embora ninguém goste de ali estar. Houve sempre uma regra para todas as coisas. A regra para as toalhas de pôr em cima dos móveis, em certa época, era que fossem de tapeçaria, com orlas amarelas em cima, co­mo vemos nas fotografias das passadeiras dos corredores dos palácios reais. Os panos de mesa diferentes não eram verdadei­ros panos de mesa. Como era chocante e ao mesmo tempo ma­ravilhoso descobrir que todas essas coisas reais, almoços de do­mingo, passeios de domingo, casas de campo e panos de mesa não eram inteiramente reais afinal e que a condenação que feria o descrente na sua realidade era apenas uma sensação de liber­dade ilegítima. O que é que ocupa hoje o lugar dessas coisas, pergunto-me, dessas coisas realmente modelares? Os homens talvez, se se for uma mulher; o ponto de vista masculino que governa as nossas vidas, que fixa as regras de comportamento, estabelece a Mesa da Precedência segundo o Whitaker, e que se tornou, parece-me, desde a guerra, apenas uma velha metade de fantasma para grande número de homens e mulheres, meta­de que, em breve, espero, será posta no caixote do lixo, que é o fim dos fantasmas, dos armários de mogno e das publicações Landseer, dos Deuses e Demónios e o mais que se sabe, deixan­do-nos por fim uma impressão tóxica de liberdade ilícita — se é que tal coisa existe, a liberdade...

 

(continua)

 

publicado por Augusta Clara às 19:00

editado por Luis Moreira às 20:04
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links