Adão Cruz A Arte (Uma visão pessoal)
(ilustração de José Magalhães)
Ars, em latim, significa técnica ou habilidade, e seria o processo através do qual o conhecimento é usado para realizar determinadas habilidades. Mas esta definição, apesar de pretender ser abrangente, não satisfaz. Aliás, a Arte não tem definição que nos satisfaça. Por outro lado, tenho muito receio de que as definições nos imobilizem. Todos os que tentaram definir a Arte, através dos séculos, de forma mais superficial ou mais profunda, deixaram sempre, felizmente ou infelizmente, uma falha sináptica no padrão neural da nossa compreensão. O puzzle poderia ser aparentemente perfeito mas havia sempre umas peças estranhas que não encaixavam. Penso que nunca se saberá verdadeiramente o que é a Arte. Talvez a neurobiologia nos dê, mais tarde ou mais cedo, quando a biologia do espírito for uma ciência incontestada, uma aceitável definição, pelo menos de carácter neurofisiológico. Mas tudo isto não deve impedir-nos de pensar e de transmitir a nossa opinião sobre a natureza da Arte. Faço aqui um parêntesis para dizer que gostaria de usar em vez da palavra Arte, a designação de sentimento artístico. A palavra Arte é capaz de remeter para um certo elitismo, criando a ideia de que ela é propriedade do artista e de mais ninguém, enquanto a designação de sentimento artístico permite considerar que este mesmo sentimento existe no observador, e pode ser mais forte e profundo naquele que contempla do que naquele que produz. O sentimento artístico tem uma certa parecença com o místico. É um sentimento quase indefinível, é um estado de hipersensibilidade, um desejo de experimentar ser-se de outra maneira, uma necessidade de sair do não autêntico, um quase sentir a verdade total e o amor universal.
Desde as expressões artísticas anteriores ao século XX, passando por todas as correntes artísticas do século XX anteriores à Segunda Guerra Mundial, até aos movimentos artísticos contemporâneos, todas as intervenções procuram apoderar-se e assenhorear-se da Arte como sua definitiva herança ou conquista final. Dentro da Arte moderna, quer tenha sido no Realismo, no Impressionismo, no Simbolismo, no Expressionismo, no Abstraccionismo, no Surrealismo e outros ismos, qualquer artista, abraçando uma qualquer destas formas de expressão, ter-se-á sentido, porventura, na recta final do caminho da arte. O mesmo se dá na Arte Contemporânea, em qualquer dos seus ramos, Pop Art, Minimalismo, Arte conceptual, Performances, Instalações e outros. Muito pequeno sentimento artístico revela quem assim pensa ou quem assim se comporta, desconhecendo que a Arte, como sentimento, é universal, intemporal e transversal ao longo dos séculos. É o mesmo que pensar que a ciência, a despeito da actual magnitude da ciência da evidência, não foi sempre ciência e sempre mãe do conhecimento e do desenvolvimento. A Arte Conceptual, por exemplo, pode usar meios e materiais não directamente relacionados com as artes plásticas, como o vídeo, projectores de slides, fotografia, mas não pode pôr em causa o conceito de Arte, insistindo que é na imaginação, no idealismo, na ideia geradora, no conceito, que a Arte prevalece, de forma exclusiva, sendo a execução apenas um fenómeno dela decorrente. Apesar de eu considerar, como veremos adiante, que a morada da Arte está na ideia e na mente, chegar ao exagero de aceitar a obra como um sub-produto acidental do salto imaginário, é uma forma redutora. Muito provavelmente continuará sempre a haver em qualquer ideia e em qualquer expressão concreta um elemento surpresa, uma originalidade ou um golpe de génio que revolva outras ideias e outros pensamentos. Uma simples mudança de cor ou de forma pode exprimir imediatamente estados emocionais completamente diferentes. A Arte é muito pouco analítica e programável. Por outro lado, dentro da Arte Conceptual e em nome da independência do artista e da sobrevalorização da exclusividade da ideia, proliferam excessos e banalidades, por vezes premiados e aplaudidos como processos de rebeldia e que não passam de frivolidades ao sabor da ordem estabelecida, levando à confusão entre a verdadeira criação e aquilo que se diz novo. Com a agravante de o artista, muitas vezes senhor de mentalidade banal, hiperbolizar a obra com conceitos e considerações de filosofia barata e legendas ridículas, pretensiosamente sábias.
Assim sendo, e valendo-nos dos nossos conceitos mais simples, sem grandes filosofias, convido-vos a pensar que a Arte ou o sentimento artístico é, pelo menos parcialmente, a descoisificação das coisas. Um escultor, perante um bloco de pedra que é uma coisa, tenta trabalhar essa coisa de modo a que ela vá perdendo a sua natureza de coisa e vá ganhando progressivamente a natureza de ideia, ideia criadora de uma estrutura pertencente à área da mente. Acabada a escultura, a pedra deixa de existir, mantendo-se apenas como matriz anónima da ideia e do pensamento. O mesmo se pode dizer da pintura. A tela, os pincéis, as tintas são coisas que vão perdendo a sua natureza de coisas, à medida que as coisas trabalhadas se vão transformando em imagens e em vivências, cada vez mais afastadas de apontamentos biográficos e registos, sempre no caminho de uma utopia de liberdade. A cor não deve ser vista como tinta relacionada com as coisas mas deve ser sentida como substância do espaço pictórico. O conceito de que a Arte é a contemplação das relações formais, há muito que perdeu o sentido. Talvez deva ser substituído pela ideia de que uma boa forma não se nota. Um bom perfume é sentido como parte da personalidade de uma mulher e não como um cheiro. A Arte de um decorador não está em chamar a atenção sobre si mesma, mas em dar ao espaço uma sensação de conforto e bem-estar. No entanto, a forma está lá, espontânea, pessoal, inseparável das emoções e dos sentimentos. A Arte é um produto de ideias mas também um veículo de ideias. Quando deixa de ser transparente como veículo de ideias, quando não é mais do que configurações, cores e sons, transforma-se numa técnica de entretenimento superficial dos sentidos. Quando se diz apenas produto de ideias, menosprezando o poder de relação, confina-se ao processo neuronal que a gerou e que pode ser relativamente árido. A Arte é aquilo que vive atrás da aparência das coisas. Para que a obra adquira grandeza, os processos formais devem ser ofuscados pelo seu próprio efeito. Só assim se compreende, dentro de um espírito artístico não radicalista, não equacionista, não academicista, que entendamos o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo, o surrealismo, o Abstraccionismo e a Arte Contemporânea em todas as suas expressões e tendências actuais, como processos de ofuscação das formas pelo seu próprio efeito. A Arte é sempre uma prática de meditação, uma tomada de consciência, a livre expansão de nós mesmos, inteligência viva, diálogo e libertação das forças vitais dentro de uma disciplina ética. Dito de outra maneira, a Arte é sempre impacto, desconcerto de espírito e agente de transcendência das formas físicas e de mudança das formas de ver e pensar.
Aqui chegados, embora por caminhos muito simplistas, não é difícil compreender que esta criação mental gerada a partir das coisas e da Natureza, transformadas pelo mundo interior do artista e plasticamente traduzidas em beleza por mãos ensinadas quer geneticamente quer de forma adquirida, só ganha vida se correr pelas suas veias o sangue da poesia. Por isso eu digo que a poesia é a alma de qualquer obra de Arte. A poesia percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, e seja qual for essa forma, plástica, literária ou musical, só é expressão artística se contiver dentro de si a essência poética, essa mágica, nobre e sublime forma de expressão da vida. Arte e beleza são uma espécie de irmãs gémeas. A beleza pode considerar-se a corporização da Arte. A beleza reflectida à nossa volta não é mais do que a imagem do espelho que reflecte a Arte contida dentro de nós mesmos, como organização estética do nosso interior e da nossa vida. É ela que nos faz imaginar, pensar, sonhar e criar. A falta da apreensão da beleza e a ausência da reacção emotiva da sua percepção leva a que tudo à nossa volta seja inestético, desadequado e agressivo, daí decorrendo uma construção negativa do nosso mundo interior. A falta de apreensão ou a degradação do conceito de beleza implica uma igual degradação da forma de sentir e de existir, por perda do nosso interesse estético sobre o mundo e as coisas, e do mundo e das coisas sobre nós próprios. Sem este impacto estético não há forma simples e positiva de ver a vida e entender a Arte.
A obra de Arte, neste caso a pintura, assenta em três pilares fundamentais: a Natureza ou a sua imitação, o material da construção plástica e a expressão própria do autor, ou seja, a realidade, a beleza e a poesia. Conforme as aspirações de cada época, de cada grupo, ou de cada indivíduo, de acordo com a sua própria natureza, os seus propósitos, as suas tendências ou a sua inspiração, qualquer destes elementos pode ser preferido e elevado aos primeiros planos da realização, ou relegado para planos de menor ou ínfimo destaque. Apesar de haver, desde há muitos anos, uma tendência a menosprezar o Realismo e o Naturalismo, e a considerá-los não-Arte ou Arte menor, não parece possível, dentro da nossa realidade humana, e dentro da mínima exigência pictórica, prescindir de qualquer um destes pilares, por mais naturalista, abstracta ou conceptual que seja a obra. Cézanne dizia que na pintura existem duas coisas, olhos e cérebro. Entendia ele que uma inteligência artística que não seja acompanhada pelo estudo da Natureza é uma mera abstracção desprovida de valor, e dizia ainda que o conhecimento da realidade não é contemplativo mas nasce da vontade de apropriação. Vendo bem, não há um verdadeiro realista, a não ser que não conseguisse, minimamente, manifestar a sua própria existência, assim como não há um verdadeiro abstraccionista, capaz de unir o absurdo ao absoluto.
Socializando um pouco este pensamento, podemos dizer que existe um divórcio cada vez maior entre a vida da sociedade e a vida da Arte. Não há uma formação humanista autêntica da sociedade. A ausência de tempo e espaço para a cultura, a falta de sensibilidade poética, a falta de vivência da verdadeira liberdade, a escravidão dos horários de trabalho, as dificuldades e incompreensões da vida levam a esquecer que a sensibilidade de um povo é a sua força e um perigo para os poderosos. O público menos culto e menos tocado pelos conceitos da estética moderna e contemporânea procura num quadro uma imagem da realidade e vai julgá-lo tanto mais hábil e perfeito quanto mais ele se aproximar do modelo. O que representa este quadro? O que quer isto dizer? Considera assim a obra tanto mais imperfeita quanto mais se afasta do real, suspeitando sempre que esse afastamento resulta de uma incapacidade do autor para o atingir. Mas por outro lado tem a noção de que há algo que lhe escapa, algo que não percebe e o faz confessar sistematicamente não ser entendido no assunto. Apesar de já na Arte antiga haver um esforço para superar o real e edificar, para além da aparência, leis que residissem mais no pensamento do que nas coisas, e apesar do grande salto da Arte Moderna e da Arte Contemporânea, o conceito de imitação ainda permanece nas camadas menos esclarecidas e menos habituadas à expressão artística. Todavia, sem nos precipitarmos no sectarismo de que a representação do real é incompatível com a Arte, vamos tentar entender que a Arte se situa numa região que não é possível confundir com a realidade aparente.
Os materiais em si são inertes. Mas ganham vida ao mais pequeno movimento. A cor, a textura, as formas mais simples, os sinais, podem adquirir, ao mais pequeno domínio, uma expressividade independente. Toda a gente sabe que a criação não depende só dos materiais mas da forma como se usam, a qual decorre das capacidades artísticas do autor e da sua cultura e sensibilidade, bem como das circunstâncias e do estado psicológico da sociedade em que se insere.
A realidade exerce o seu fascínio e é, como vimos atrás, uma pedra fundamental na criação da obra de Arte. Presunçoso seria lançar sobre ela um anátema. Não se deve procurar exclui-la mas mantê-la dentro das suas proporções e do seu papel. Até porque a realidade nunca está na pintura, ela encontra-se sempre na mente do observador. Se fosse possível isolar numa obra de Arte apenas a realidade que os olhos mostram, ela seria muito pobre. A par da realidade, a pintura existe com as suas leis próprias. Uma superfície sobre a qual está disposta a matéria pictórica, composta de linhas e cores reunidas de determinada forma dentro de uma consistência visível, mas para além da qual há todo um mundo psicológico, todo um universo de emoções, sentimentos e harmonias, dos quais essas linhas e cores são o sinal perceptível. Mesmo nas expressões mais figurativas, o nosso pensamento deve ser capaz de transpor a vidraça do realismo que cobre o quadro, a fim de não nos impedir de penetrar na sua essência, se existir, claro! Não sou ingénuo ao ponto de considerar que tudo é Arte, como dizem alguns. Por estas e outras razões, considero salutar que, sempre que possível, a obra de Arte não tenha título. A descodificação de uma obra de Arte, ainda que parcial, pode ser um fenómeno redutor que empobrece a obra. Pode mesmo anular a sua própria hermenêutica, isto é, a força indutora das capacidades interpretativas. Qualquer explicação verbal terá de ser extremamente cautelosa pois pode substituir-se à obra, paralisar a sua essência ou cegar o espectador. Este deve enriquecer e iluminar a sua vida através do saber ver, do saber ouvir e sentir, e não se limitar à análise dos processos formais, simples elementos da construção desse mesmo sentir. O espectador deve deixar-se levar pelo que ecoa dentro dele, sem pretender colar-se ao que deve ser, ou àquilo que nos disseram que é ou que lá existe. A obra pode ser o que somos e muito pouco do que lá está. É por isso que não aceito de bom grado que se disseque uma obra de Arte em termos interpretativos, por vezes vincadamente objectivos, como fazem alguns críticos, historiadores e cicerones de museu. Que o façam em termos técnicos, históricos, museológicos vá que não vá, mas em termos sentimentais, em termos interpretativos, tantas vezes sob a forma de gastos e banais artificialismos de catálogo, massificando as formas de ver e de interpretar, em vez de tentarem estimular a individualização das formas de sentir, custa-me a aceitar. Ninguém vê com os nossos olhos, ninguém sente com o nosso íntimo, ninguém pensa com o nosso pensamento.
Para quem cria, a obra é um processo de aprendizagem permanente. A criação espevita a nossa reflexão, desenvolve todo o processo de humanização, cria uma singular afinidade com a consciência, aproxima-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade, afina as emoções e os sentimentos, apura o sentido da beleza, da ética, da estética e até da justiça, dado que esta se pode considerar fruto da harmonia e do equilíbrio, as grandes traves da Arte e da verdadeira vida.
A Arte é uma relação de vida. A montante e a jusante da Arte existem as emoções e os sentimentos. A montante prevalecem as emoções e os sentimentos do autor da obra, a jusante predominam as emoções e os sentimentos daqueles que contemplam a obra criada. Pode dizer-se que a Arte é uma espécie de degrau entre este desnível do mundo interior e do mundo exterior, uma espécie de portal entre duas dimensões, o principal factor na equação que um dia poderá resolver o problema da paz individual e colectiva.
Quando alguém produz uma chamada obra de Arte, neste caso uma pintura, introduz na tela toda a sua vida, ainda que inconscientemente, todas as suas vivências, todas as suas memorizações, todas as suas aprendizagens, todas as suas emoções, todos os seus sentimentos, paixões e devaneios, todas as suas frustrações, todas as suas potencialidades reflexivas, toda a sua cultura, toda a sua visão do mundo e das coisas. Quem contempla essa obra não vai ver a obra do autor mas a sua própria obra, a obra de quem a vê, dado que vai contemplá-la através das suas próprias vivências, através da sua cultura, das suas emoções, dos seus sentimentos, da sua visão do mundo e das coisas, que podem não ter nada a ver com os elementos da estrutura mental do criador da obra. A contemplação de um quadro não exige forçosamente uma análise intelectiva. É muito mais importante o impacto que a obra produz no espectador. Ela actua sobre o seu sentir e não só sobre a sua inteligência. Claro que um espectador pouco inteligente, sem imaginação, sem sentimento artístico, vazio de ideias e de ideais, não verá nada.
A obra funciona de estímulo, mais ou menos poderoso e profundo, capaz de desencadear toda uma cascata de sentimentos no observador, por vezes muito mais intensos do que os do criador, podendo ter a força requerida para desnudar o seu íntimo e arrancar-lhe emoções muitas vezes desconhecidas, apagadas ou esquecidas no mais recôndito dos seus arquivos mentais. Perante uma obra de Arte, suporte de meditação, meio de fixação da atenção e de excitação mental, o espectador sente-se obrigado a um exame de consciência e a uma necessidade de rotura com os seus velhos conceitos. A Arte é uma fonte de conhecimento e é tanto mais nova quanto mais novas forem as ideias que usa na concepção da realidade, quanto maior for o abalo que produz nas formas caducas de ver o mundo e as coisas. Como já se disse atrás, a Arte é impacto, desconcerto de espírito e agente de mudança das formas de pensar. Quando o público se identifica serenamente com a obra e mostra coerência com determinadas formas artísticas, é de temer que essas formas já tenham perdido a sua capacidade revolutiva. Assim se entende que não é a Arte que deve descer à compreensão do povo, mas é o povo que tem de ascender aos patamares da natureza revolucionária da Arte. Uma política cultural, isto é, o ensino de uma autêntica cultura formativa e digna, está longe da estafada ideia de que convém dar ao povo o que o povo pede. É escandaloso ouvir dizer que se deve servir o povo com coisas que lhe dêem prazer e não com intelectualices! Esta luta é uma luta de todos, um verdadeiro e poderoso sentir da necessidade desta ascensão como uma das prioridades da estruturação humana. Uma luta travada pelo saber de todos os tempos, uma luta perpétua contra a ignorância dos que não sabem, dos que julgam que sabem tudo e dos que não sabem aquilo que não sabem.
O conteúdo de uma obra é uma nova visão da realidade, às vezes um conflito, uma ponte ou uma travessia difícil entre a ideia e o Homem. Uma travessia sem demonstrações de verdade nem garantias de segurança. A única garantia é que algo muda dentro de nós e do mundo, por via da total liberdade do artista. A Arte é uma das formas mais livres de investigação e expressão de ideias e uma das maiores fontes de enriquecimento da nossa espontaneidade.
O artista é um ser vivo em mutação constante, com profunda experiência da vida, da alegria e do sofrimento do viver. O artista, ainda que nem sempre culto no sentido global do termo, está mais ou menos profundamente inserido no mistério da Natureza e das relações humanas, tal como o cientista e o filósofo, investigando, descobrindo e propagando ideias. Ele é dotado da energia, da acção, da sensibilidade, da curiosidade, da rebeldia e da capacidade de sofrimento necessárias à ânsia de conhecimentos novos, sem a qual não é possível uma personalidade artística profunda. Uma personalidade capaz de dirigir o olhar para outros mundos, outras formas de ser e de estar, outras maneiras não doutrinadas de olhar a existência.
A vivência da Arte é absolutamente singular e não tem paralelo com outro tipo de vivência. Há quem diga que aquele que não vive a Arte não vive a vida. Não querendo ser tão radical, prefiro dizer que quem não vive a Arte não sabe o que perde. Quem vive uma obra de Arte, poderosa expressão da essência humana, está constantemente a aprender uma experiência vivencial que não faz parte dos nossos padrões habituais de reflexão. E pode, se o estímulo, a sensibilidade e o sentido artístico tiverem a força necessária, alcandorar-se a instâncias onde reside uma fruição única do prazer estético.
Não quero terminar sem dizer que há necessidade de distinguir entre Arte, obra de Arte e mercantilização ou mercadotecnia da Arte. A Arte, a mais nobre vertente da vida humana, sentimento artístico como qualquer outro sentimento, como o sentimento da alegria, da tristeza ou da liberdade, é parte integrante da nossa esfera neural e mental, e desta forma pode ser considerada eterna, dentro da relativa eternidade humana. Sendo a obra de Arte a expressão visível e palpável do sentimento artístico, e, como relação de vida que é, exige, para ser vivida integralmente, uma contemporaneidade de sentimentos. Sou dos que pensam que a obra de Arte, como vivência integral, é efémera, ainda que esta efemeridade possa durar séculos. Há momentos a que chamamos eternos na Arte da antiguidade ou correntes artísticas ditas imortais. Mas estes momentos, estas correntes, ainda que nunca perdendo a transversalidade universal da Arte, têm o valor que lhe damos em função das necessidades e dos interesses actuais. Não sou, contudo, radical ao ponto de defender os recalcitrantes defensores do classicismo ou, em sentido oposto, aceitar o cheiro cadavérico dos museus.
O mercado da Arte engendra formas, não de purificar a Arte, mas de divinizar a obra-objecto, endeusar e entronizar os autores através de cadeias de relações, validação de marcas e autorias, legitimações culturais e históricas, leilões e jogos de galerias, tantas vezes snobs e subterrâneos, juízos de valor produzidos e caucionados por elites, de acordo com os interesses e mais-valias que possam render. Senhores ditos muito cultos, servindo-se de exaustivos materiais bibliográficos, criadores de textos labirínticos com grande projecção pública, encerram o fenómeno artístico nas densas malhas das suas análises, fabricam convicções e preconceitos, maquetizam a liberdade dos sentimentos, e quando nos damos conta já a Arte e a vida desandaram para outros caminhos. Mentalidades dirigistas, cheias de regras, liturgias e falsos mitos, que nos afastam da arte de viver a Arte. Vivemos num mundo dominado pela técnica, sufocados pelo egoísmo. Tudo ou quase tudo o que nos envolve é artificial e muitas vezes falso. Vivemos alienados e escravizados. Pena é que esta escravização tenha invadido e contaminado a expressão artística.
Nada do que atrás foi dito tem a ver com a Arte em si, e pode levar a que a obra perca a capacidade de se impor pela força da sua presença, e se imponha apenas pela assinatura ou pela auréola que à sua volta criaram os fabricantes de ideias e opiniões, vendo-se reduzida ao estatuto de simples objecto transaccionável. Em minha opinião, esta é a face negativa da expressão artística, a que faz descer a obra do elevado patamar dos valores imateriais do homem, para o rasteiro patamar do ter e do poder, para a vertente menos edificante do ser humano, a posse. Este assunto é, todavia, muito complexo, abrangendo conceitos de dimensão mental e cultural, de dimensão económica, de dimensão simbólica, de dimensão política e de dimensão social, que não cabe aqui analisar em pormenor, e que levam a comportamentos e percursos que vão desde a dignidade à degradação.
Talvez tudo fosse diferente se a obra de Arte não tivesse autor nem valor material. O autor da obra é, com efeito, um dos maiores obstáculos à supressão do real-palpável. O autor-pessoa deveria desaparecer na conclusão da obra, a qual seria lançada ao vento como natureza essencial, com toda a sua liberdade e autonomia. Se tal fosse possível, e a obra pudesse ser património colectivo, então sim, poderia atingir o seu verdadeiro estatuto de ponte entre a dimensão antropocêntrica e a dimensão universal do homem, deixando de ser um mero ingrediente deste caldo generalista da nossa cultura.
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