(Conclusão)
3.
A antologia Poemabril revela-se, pois, como repositório da memória poética de um evento extraordinário que
agitou a consciência colectiva de um país. Através duma perspectiva diacrónica, que a distância temporal permitia recuperar e actualizar, muitos poetas recorrem à fórmula retórica da interrogação, acentuando a perplexidade e o desencanto («um cravo recentemente apunhalado» de Amadeu Baptista, p. 59; «e foi para esta farsa/ que se fez a revolução de Abril» de José Gomes Ferreira, p. 187)[1] que a normalização do espírito e acção revolucionários acabaria por determinar, embora haja vozes obstinadas como a de José do Carmo Francisco: «Só amordaçam mas não matam a Revolução» (p. 173).
Mas não faltam exemplos de pura exaltação, de euforia perante o inesperado eclodir duma história há muito anunciada e que, não obstante as várias tentativas, por várias vezes tinha sido adiada e relegada para os arquivos da esperança. Abundam, por isso, os casos de apologia épica, não sem o assumir da autocrítica colectiva pela tardia intervenção, de que são paradigmas Egito Gonçalves (pp. 123-124) ou mais explicitamente Carlos Loures ("Dia um, ano primeiro"):
A criminosa apatia que por tantos anos
nos enevoara o gesto e sufocara a voz
esfumava-se na rosa evanescente da alvorada
e surgia agora transformada em canção (p. 115).
E também se exalta a força do verbo e da acção de figuras que se salientaram no processo revolucionário, como no poema “Vasco Gonçalves”, ainda de Egito Gonçalves («Com a lucidez das grandes horas/ poderás dizer-nos o que se passa aqui exactamente?», p. 124), onde não falta a já mencionada interrogação perplexa,[2] ou no texto poético de Eugénio de Andrade, escrito em 14/5/76, dedicado à mesma figura: «Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão/ era morada e instrumento de alegria» (p.129).
Tratando-se de um evento cuja visibilidade ficou marcada, em grande parte, pela iconografia floreal dos cravos, não surpreende que muitos poetas tenham recorrido a essa imagem com maior ou menor capacidade de recuperação desse elemento para o tecido poético. Estão neste caso, entre outros exemplos, António Cabral (“Ainda hoje se fala nesse dia”) num poema datado de 16/10/83 e em que curiosamente as «flores de Abril» participam do processo de libertação através dum diálogo, antes impensável, que «escancarou as coisas interditas»:
[...] Um hálito forte
de Primavera excitava o húmido
corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas (p. 67);
e igualmente Armindo Rodrigues ("Portugal, cravo vermelho", pp. 96-99), com a particularidade de a transposição metafórica atingir um espaço mais abrangente, apoiando-se a memória poética num tempo de euforia (primeiro de Maio de 1974) e de espontânea participação unitária, o que parece justificar os dois últimos versos do poema: «Portugal todo floriu/ num mesmo cravo vermelho» (p. 99); ou ainda Hélia Correia (“25 de Abril”) num texto que mantém a mesma atmosfera de festa triunfal, agora quase báquica numa comunhão com o vinho, a dança e o amor, numa orgia dos sentidos em que os cravos adquirem uma funcionalidade libertária:
Bebamos, pois, o vinho destas vozes,
soltemos estes cravos como potros
embriagados.
Como intensas éguas
incendiárias. (p. 140)
Em contraposição com a memória do caos e da opressão, patente, por exemplo, em Armindo Rodrigues ("Prisão de Caxias", 1949) ou em Jorge de Sena ("Cantiga de Abril"), o lexema "liberdade", com as suas múltiplas conotações («Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade», escreve Jorge de Sena como epígrafe ao poema acima mencionado, p. 157), não podia estar ausente de um discurso que faz daquele conceito a própria arma, não apenas com a finalidade de exorcizar fantasmas do passado mas, mais precisamente, atribuindo-lhe a função de «símbolo fortíssimo», «ave indócil a que não renunciamos», no dizer de Amadeu Baptista (p. 59), a que se associam Artur Lucena («Serei seremos os exactos amigos da liberdade», p. 107), Casimiro de Brito ("Memória do primeiro de Maio", p. 121) ou Eugénio de Andrade ("Rente à fala", 4), um poema datado de 26/4/74 e em que a conquista da liberdade se manifesta na reapropriação da terra,
Esta terra de sol esta terra ainda
é bem ela esta terra inocente
este corpo há que deixá-lo ser água
não é fácil separá-lo da luz
quase nua esta terra agora minha (p. 129),
uma «terra inocente» que é metáfora de «país» e que se apresenta, na perspectiva do sujeito poético, conotada por elementos significativos - «sol», «água», «luz» - que contribuem para
a «quase nudez» de um corpo social no limiar da transfiguração. É este igualmente o sentido do belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen ("25 de Abril"), não incluído na antologia por lamentável esquecimento, e que aqui se transcreve, até como homenagem à grande poetisa:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo[3]
Mas é todavia o lexema “Abril” a percorrer o sintagma global de Poemabril numa dinâmica que o coloca como centro de irradiação textual, fragmentando-se em todas as direcções, isto é, aberto a muitas leituras que, porém, o elegem como tempo coincidente com o florir da esperança, «astro decisivo» para Jaime Rocha (“Abril”, p. 151) ou mês-símbolo da poesia por antonomásia de José Carlos Ary dos Santos (“As portas que Abril abriu”, pp. 169-171) ou Manuel Alegre, figurando o último com um dos muitos poemas/variações sobre o tema ("Trova do mês de Abril", pp. 210-211), um texto de 1981 e anteriormente publicado no seu livro Atlântico (1989):
Foram dias foram anos a esperar por um
só dia.
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que
doía
com seus riscos e seus danos. Foi a noite
e foi o dia
na esperança de um só dia. (p. 210)[4].
Abril («um só dia») traduz a viragem da História depois da longa espera e da longa errância, então com a única e profética certeza de que "País de Abril é o sítio do poema".[5]
Mas outros poetas escolheram "Abril" como ponto de partida e como núcleo da expansão textual, caracterizando-o como «luminoso e brando» ou como mês «que pode ter a altura de um povo» (José Jorge Letria, “Abril. Quatro andamentos”, pp. 189-191); como grito «com agulhas/ de cristal/ e fecundar abril» (José Manuel Mendes, "10°. poema de Abril", p. 193); ou "Como se fosse uma lenda", título do excelente poema de Rui Mendes: «Eu sou daqui destas marés íngremes preia-mar de rosas/ Abril vi cantar leda madrugada às raparigas frondosas» (p. 261), onde são nítidos os ecos da grande tradição poética, aqui ressemantizada. Nem sempre, porém, as vozes poéticas se limitam a cantar Abril em termos de celebração luminosa; por vezes a disforia provém das datas de composição dos textos e da intervenção do efeito diacrónico: «Que é feito do mês de Abril?», pergunta, por exemplo, José Fanha (pp. 179-181), a que corresponde igualmente a interrogação «por onde andaste» de Henrique Madeira (“Abril”, p. 141); e Luís Serrano ("Recordo Abril") inscreve o desamor inevitável: «que de abril resta/ [...] / nos arquivos desencantados/ da memória?» (p. 198).
Na diversidade de perspectivas e na variada arquitectura do fazer poético, as composições de Poemabril não podem deixar de corresponder a outros tantos exercícios em torno da palavra, elemento que tem esse poder único e irreversível de fixar a memória, individual ou colectiva, de um evento, no caso específico a «revolução de 25 de Abril de 1974» e sua repercussão na consciência dos poetas. É a este poder que se refere António Ramos Rosa (“A espécie viva”):
no obscuro viveremos para libertar os astros dos signos
[e as palavras do ventre obscuro.
com a sabedoria das obras estrangularemos os
[dispositivos da hecatombe (p. 77),
numa afirmação da força da palavra como «labaredas de consciência» iluminando o discurso «contra os mestres da catástrofe».
[1] Todas as citações são feitas a partir da segunda edição, cit., indicando apenas o nome do autor e a respectiva página.
[2] «Escrito em 25/4/77, reagindo ao facto de o 25 de Abril se ir comemorar com uma parada militar e do mais que era a situação revivalista de então. (p. 123).
[3] Cit. de Abril, 30 anos trinta poemas, organização e prefácio de José Fanha e José Jorge Letria, ilustrações de Armando Alves e Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras. 2004. p. 9. Mas Sophia de Mello Breyner Andresen haveria de produzir outro belíssimo poema intitulado "Revolução": «Como casa limpa/ Como chão varrido/ Como porta aberta// Como puro início/ Como tempo novo/ Sem mancha nem vício// Como a voz do mar/ Interior de um povo// Como página em branco/ Onde o poema emerge// Como arquitectura/ Do homem que ergue/ Sua habitação. (ibidem, p. 31).
[4] Percorrendo a obra poética de Manuel Alegre, são inúmeras as referências a Abril e já desde o seu primeiro livro. Veja-se "País de Abril", "Explicação do país de Abril", "A rapariga do país de Abril" (Praça da Canção, 1965); "Portugal e Paris" (O Canto e as Armas, 1967); "Era Paris Abril setenta e um", "O cavaleiro", "Crónica de Abril", "Trova do mês de Abril", “Abril de Abril”, “Abril de sim Abril de não" (Atlântico, 1981).
[5] Manuel Alegre, Obra Poética, pref. de Eduardo Lourenço, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1999, p. 81.
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