Quinta-feira, 28 de Abril de 2011

Crise, Falência e Incumprimento : economia e política da reestruturação da dívida da Islândia. PARTE I

Júlio Marques Mota

 

 “Pode-se perguntar à  maioria das pessoas - agricultores, pescadores, professores, doutores, enfermeiros  – se estão dispostas a assumir a responsabilidade da falência dos bancos privados?  Esta questão, que estará no centro do debate  no caso do  banco islandês Icesave, vai ser a questão quente  em numerosos países eurpeus”

 

Ólafur Ragnar Grimsson, Presidente da República da Islãndia (Outubro de  2010)

 

Porquê voltarmos hoje à crise islandesa?

 

Este pequeno país já não está sob o centro da actualidade. É certo que teve uma crise bancária e financeira espectacular que conduziu o Estado e o país inteiro à beira da falência. Além disso, se é certo que os montantes das dívidas em questão são importantes, os valores globais (algumas dezenas de milhares de milhões de euros) não são susceptíveis de perturbar gravemente os equilíbrios financeiros internacionais. Por fim, face  às últimas notícias, as coisas por ali vão bem melhor: baixa da inflação, retoma do crescimento, baixa do desemprego…

 

 

Então, sendo assim, por que voltar a falar da Islândia? Por três razões, pelo menos, assim o pensamos. A principal é que se a crise islandesa é, em muitos aspectos, “a irmã gémea” da crise irlandesa, distingue-se dela, no entanto, por vários traços, dos quais o mais saliente é que, de imediato, logo que a crise rebentou e se instalou, a Islândia empenhou-se numa direcção original, visando fazer com que o essencial da dívida bancária fosse pago pelos próprios credores.

 

Depois de longas negociações e maquinações e de uma actualização da legislação sobre as falências, o que se passou foi então o seguinte: o essencial da dívida bancária islandesa continuou a ser uma dívida bancária privada. Tendo os bancos devedores ficado na situação de incumprimento, são nomeadamente os credores (e, em particular, os credores constituídos no seu essencial por investidores institucionais não residentes) que vão assumir este incumprimento. E, por fim, mas não menos importante, o projecto de compromissos estabelecido sobre a parte da dívida para a qual o Estado islandês se assume obrigado a dar a sua garantia foi finalmente rejeitado, na sequência de um referendo exigido por uma petição gigantesca que reuniu quase um terço dos eleitores da ilha. A organização deste referendo, que vinha coroar uma mobilização tenaz do povo islandês, forçou os seus governantes (e com eles a União Europeia e o FMI que agiam nos bastidores), a voltarem aos acordos iniciais. Finalmente o referendo permitiu obter um grande adiamento e um fraccionamento do respectivo pagamento da dívida bem como taxas de juro bem mais baixas do que as taxas inicialmente previstas.

 

Por todas as razões, e embora o peso económico da ilha seja muito fraco (o seu PIB é cerca de 8 mil milhões de euros apenas), o estudo do caso islandês apresenta um grande interesse. Ele permite penetrarmos nos segredos da reestruturação das dívidas, ao permitir que se analise “por dentro” as condições nas quais esta reestruturação é feita[1]. Trata-se, cada qual o compreenderá bem, de um assunto fundamental, no próprio momento em que - e isto é agora um segredo de Polichinelo- a Grécia assim como a Irlanda trabalham cada uma delas incansavelmente sobre o seu “plano B”: plano de reestruturação das suas respectivas dívidas soberanas.

 

Nesta nota, depois de recordarmos resumidamente as condições da formação da crise financeira e seguidamente da sua explosão na Islândia em Outubro de 2008, exporemos o processo de reestruturação das dívidas ao qual a Islândia se comprometeu. Centraremos a nossa atenção sobre dois aspectos distintos (embora complementares e ligados entre si): o processo de como se realizou a liquidação “dos antigos bancos” islandeses em situação de incumprimento, e um outro processo, o que - na sequência de um conflito muito duro com o Reino Unido e a Holanda - conduziu a um acordo sobre o caso específico de Icesave, uma agência de Landsbanki, (segundo banco islandês) que operava como banco em linha. O papel decisivo da mobilização do povo islandês durante estes conflitos é aqui lembrado. Sem o movimento que se passou a designar de “revolução dos tachos”, ninguém duvida que as coisas na Islândia teriam tomado um outro caminho, bem diferente.

 

1)  A crise islandesa, ou quando a rã financeira quer fazer-se tão gorda como o boi.

 

Durante muito tempo colónia da Noruega e seguidamente da Dinamarca, é em 1944 que a Islândia acede à independência. Este país é então um dos mais pobres da Europa. Ao longo de algumas décadas a Islândia contudo conseguiu realizar uma espectacular transformação económica. Até aos anos de 1970, o país continua a ser um país proteccionista, largamente virado para si-mesmo e não conhece perturbações maiores, a não ser o factores de ter tirado partido do Plano Marshall do qual a ilha foi um dos destinatários.                                                                                                                                                                                     Nos anos de 1980, o país prudente e progressivamente, abre-se às trocas com o exterior. Mas a Islândia é ainda uma muito pequena economia dependente da pesca para o seu comércio externo (90% das suas receitas externas) e onde estão presentes as actividades ligadas à hidro-electricidade e à geotermia.

 

É a partir dos anos de 1990, que se faz a verdadeira mutação, com a aplicação de reformas neoliberais impondo uma liberalização apressada da economia islandesa. Momento chave: em 1994, a Islândia adere ao Espaço Económico Europeu (EEE).

__________________________________

[1] Para uma apresentação das questões postas  pela reestruturação das dívidas, veja-se a nota de  D. Plihon http://atterres.org . Precisemos que no caso islandês apresentado não se trata, sobretudo, do caso da dívida soberana. O essencial da dívida bancária privada continua como tal a ser privada e não soberana. E como o mostraremos nesta nota, na sequência  da declaração de falência dos bancos devedores, foram os credores (numa grande proporção) que tiveram que suportar a situação de não pagamento. Para uma pequena parte da dívida privada, o Estado islandês foi forçado a dar a sua garantia. Nesta situação as negociações, que foram sujeitas a fortes e múltiplas maquinações, permitiram chegar a soluções originais.

 

Efeito imediato, esta entrada significa também a existência da liberdade de circulação dos capitais e, para as instituições financeiras locais detentoras “de um passaporte”, o direito de abrirem sucursais em todos os países do espaço europeu. Paralelamente os direitos aduaneiros são imediatamente reduzidos. A Islândia mundializa-se. Ponto capital contudo, se a Islândia através da sua adesão ao Espaço Económico Europeu (EEE) se integra fortemente nas economias da UE, ela continua fora da zona euro e conserva o controlo da sua moeda nacional: a coroa (ISK).

 

Como muitos outros países europeus, a Islândia, a partir da década de 1990 lança-se num vasto programa de privatizações, nomeadamente do seu sector bancário. A sua função pública é sujeita a um processo de reformas, o estatuto dos seus funcionários passa a ser contratualizado. O governo esforça-se por diversificar a estrutura da economia.                                                                                                                             

 

Criaram-se novas actividades, como a indústria do alumínio, a informática e as biotecnologias pelas quais se interessaram os investidores, nacionais ou estrangeiros[2]. Rapidamente contudo uma ambição se manifesta e torna-se predominante relativamente a todas as outras. Os novos aventureiros que tomaram o controlo dos bancos por ocasião das privatizações sonham fazer da ilha um lugar financeiro “global”, à maneira  da Suíça ou do Luxemburgo.

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[2] A Islândia conhece assim certas situações de sucesso na investigação genética (Decode Genetics), nos medicamentos genéricos (Actavis), no negócio na aeronáutica (Aviation Group ), as novas tecnologias aplicadas ao agro-alimentar (Marel), nos jogos vídeos em linha (CCP‐G games), nas energias renováveis (Geysr) ou   ainda   nas próteses médicas (Ossur).

 

Uma finança sobredimensionada e extrovertida

 

Como na Irlanda a finança aumenta, aumenta a sua dimensão[3]. Três grandes bancos: Kaupthing, Landsbanki e Glitnir, impõem-se e vão sobre determinar o futuro do país. Sob a incitação de dirigentes agressivos “os novos vikings”[4] - os bancos ultimamente privatizados[5] estão a operar nos mercados globais. Para alargar a sua base local de colecta de clientes (extremamente reduzida: o país tem apenas cerca de 300.000 habitantes) os bancos islandeses abrem sucursais no estrangeiro (no Reino Unido em particular mas também na Holanda e nos países do Norte da Europa) aproveitando-se assim plenamente da adesão da Islândia ao Espaço Económico Europeu (EEE)[6]. Tendo em conta as taxas muito atractivos propostas aos depositantes, esta política de expansão é um verdadeiro sucesso. O segundo eixo da política de expansão do pólo financeiro local consistirá em procurar financiamentos no mercado internacional aproveitando a extrema liquidez que nesse mercado existe. Com as dívidas contraídas no estrangeiro (a economia mundial abunda então em liquidez à procura de colocações), três dos grandes bancos financiam igualmente os particulares (alimentando aqui como aconteceu frequentemente em toda a Europa uma formidável bolha imobiliária) mas também as empresas locais que procedem a largas aquisições externas[7].                                                                                                                 

 

No essencial, contudo, os fundos recolhidos são de curto prazo, enquanto que os empréstimos realizados são-no a médio ou longo prazo. Factor agravante, os empréstimos contraídos pelos bancos foram geralmente em divisas porque ligados aos contratos subjacentes acordados de refinanciamento pelos bancos estrangeiros (Tryggvi, 2010)[8] .

 

O modo de expansão escolhido acumula assim duas séries de riscos: o risco da dependência ao mercado interbancário: os bancos islandeses só podem assegurar os seus fins de mês indo cada vez mais recorrer aos mercados financeiros externos, e o risco cambial também: se a coroa viesse a depreciar-se, mecanicamente, as dívidas expressas em divisas aumentariam fortemente, pondo em perigo os devedores.

 

Esta política coloca assim o conjunto do país em perigo. E isto a uma escala gigantesca. A dívida bruta externa do país que é ainda de apenas 139% do PIB em 2003, aumenta para mais de 550% em 2007. No mesmo período, os activos consolidados[9] dos bancos passam de 170% para 880% do PIB (gráfico 1). Os activos detidos pelas três grandes - Kaupthing, Landsbanki e Glitnir - representam então 85% dos activos do sistema bancário total. Tudo ou quase tudo depende da sua capacidade em assumir os seus compromissos.



[3] Para a análise do crescimento e depois da explosão da banca e da finança islandesa , veja-se a nota de B. Coriat disponível no sitio http://atterres.org.

[4]  O processo de privatização levantou múltiplas acusações de favorecimentos de ordem política.

[5] A totalidade do sistema bancário - à partida largamente público - foi privatizado por vagas sucessivas de 1994 a 2003.

[6] Com esta adesão, eles obtêm a autorização para operarem em todos os país do espaço económico europeu.

[7] Os grupos islandeses vão assumir numerosas participações nos grupos estrangeiros financiando-se a crédito no plano interno, financiando-se nos bancos domésticos. Indirectamente, os bancos ficam expostos ao risco de uma inversão dos valores das acções, se estas últimas ao descerem de valor, provocarem a insolvabilidade das empresas endividadas.

[8] “Coping with a banking crisis –Rise, fall and rebirth of the Icelandic banking system”, Tryggvi Pálsson (2010).

[9]  Consolidados, isto é, incluindo os activos das filiais estrangeiras dos bancos.

 

 

 

Este crescimento e esta expansão feita em todos os azimutes não se fizeram sem entorses múltiplas às conhecidas “boas práticas” bancárias e financeiras. Aqui como na Irlanda, a ausência de uma verdadeira supervisão tornou possível todos os excessos. Um relatório encomendado aquando da explosão da crise e cujas conclusões foram tornadas públicas em Abril de 2010, enuncia a longa lista de práticas fraudulentos - ou quase como tais - que eram a prática comum na finança islandesa[10].                                                                                                                           
É assim que este relatório, entre um grande número de outras práticas ilícitas, aponta a maneira como os accionistas beneficiaram de maneira privilegiada de empréstimos e de adiantamentos dos seus próprios bancos, e em montantes tais que eram sem qualquer proporção com as garantias que podiam apresentar. Mais grave ainda, numerosos são os casos e para montantes importantes, os fundos próprios (equity) dos bancos tinham por origem empréstimos consentidos pelos próprios bancos.                                                                                                          
Este fenómeno também chamado de weak equity que é perfeitamente fraudulento é um elemento agravante da situação dos bancos. Não somente os bancos estavam sobre comprometidos em relação aos seus fundos próprios, mas estes próprios fundos tinham por origem empréstimos por eles concedidos e transferidos depois das contas dos seus próprios devedores! Recentemente de resto, vários dirigentes dos grandes bancos islandeses foram colocados em prisão preventiva sob a acusação “de manipulação de mercado”[11].


[10] Para o Relatório da Comissão Especial de Investigação, veja-se: http://sic.althingi.is/

 

[11] http://www.google.com/hostednews/afp/article/ALeqM5i_8IvTANWHSQ6zt8mF5Kxj8mU81

g?docId=CNG.613bea31ca2dfb51007376451423f687.421

 

Todos estes elementos se explicam pelo clima de euforia que reinava então. O dinheiro era fácil. Os rendimentos das colocações eram confortáveis. De um ponto de vista da valorização “do valor accionista”, a estratégia é onerosa. Os rendimentos eram muito elevados. O ROE (rendimento sobre os capitais próprios) excede largamente os 15%. Em certos bons anos este atinge 40% ou até mesmo 50% (gráfico 2).

 

 

E é bem certo que os dividendos por acção crescem muito fortemente (gráfico 3).

 

 

Tudo parece sorrir a esta estratégia. Em 2007, a ilha ocupa o primeiro lugar à escala mundial de acordo com o índice de desenvolvimento humano (IDH) das Nações Unidas, o quinto lugar dos países mais ricos do mundo com um PIB per capita de 50 mil dólares. Melhor ainda, os poderosos analistas e especialistas em previsões da OCDE ou do World Economic Forum prevêem um futuro brilhante para este país. A Islândia é classificada como sétimo melhor país em termos de competitividade da sua economia!

 

Com efeito, e na própria altura em que dois relatórios escritos por peritos, entre os mais reconhecidos da finança internacional “oficial”, elogiam a banca e a regulação financeira da Islândia[12], todas as condições estavam a ser reunidas para o aparecimento da catástrofe. A rã financeira islandesa conseguiu mesmo inchar de tal modo que parecia um boi. Só lhe restava rebentar. Com um sistema bancário totalmente sobredimensionado e extrovertido, mais que qualquer outro, a economia islandesa está exposta aos riscos da conjuntura financeira internacional.



[12] Trata-se de um lado do relatório de F. Michkin (Professor em Columbia e que exerceu altas funções no Federal Reserve Bank de New York de 1994 a 2007), intitulado «Financial Stability in Iceland» (sic !...) publicado em 2006, e por outro do relatório de Richard Portes, Professor na London Business School, intitulado «The Internationalisation of the  Iceland’s Financial Sector», publicado em 2007. Os dois relatórios encomendados depois da crise de 2006 que sacudiu a Islândia, insistem no entanto sobre a solidez da finança islandesa, sobre a excelência do seu percurso e sobre a qualidade da supervisão exercida pelas autoridades. Estes textos estão disponíveis em:

http://www.vi.is/files/555877819Financial%20Stability%20in%20Iceland%20Screen%20Version.pdf

http://www.iceland.org/media/jp/15921776Vid4WEB.pdf 

 

CONTINUA...

publicado por siuljeronimo às 20:00

editado por Luis Moreira às 02:29
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1 comentário:
De Luis Moreira a 28 de Abril de 2011
Para quem quiser compreender este texto é uma lição, mas há quem não queira ver. Cá há pelo menos 3 bancos que fizeram isto, emprestar dinheiro a clientes para controlarem o capital próprio. E, num caso, pelo menos, (BCP), a CGD fez empréstimos "finos" para controlar. veja-se quem transitou para a administração do banco, tudo com dinheiro "nosso"...

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