Difícil e ingrato empenho assumem todos aqueles que aceitam o convite para indicar os 10 livros que devem ser salvos na produção literária relativa ao séc. XX. Isso porque todos nós sabemos de como foi rico, quanto à criatividade artística, esses tempos há pouco concluídos, mas que continuam a desaguar neste começo do séc. XXI; depois, porque quem faz uma tal escolha, o faz a partir de um determinado ponto de vista e de conhecimentos. Consequentemente, nos encontramos diante de claros limites de ação e prontos a muitas, infindáveis injustiças. Porém, de qualquer forma, já que essa é uma operação que pode ser proposta aos muitos, urge enfrentá-la. Se, como é claro, perfeitos não podemos ser, pelo menos seremos conscientemente empenhados...
Para começar, o empenho nos leva a indicar quatorze e não dez livros; depois nos conduz a enunciar claramente determinados critérios pelas escolhas feitas: 1) fixamos 7 grupos linguísticos preferenciais, com indicações de 2 livros para cada grupo; 2) quando o autor escolhido é um poeta, propomos o título “Poesia”, comum a todos mesmo quando não tenha sido publicada uma recolha de poemas de sua pessoal produção com este ou outros títulos; 3) em apêndice às singulares indicações, apresentamos nomes, somente os nomes, de autores da mesma família literária igualmente geniais. Assim procedendo confiamos de limitar as injustiças causadas pelos nossos limites críticos e de saber...
1 – Língua inglesa: a) Ulisse (1922), de James Joyce (1882-1941); b) “Poesia”, de T. S. Eliot (1888-1965).
O Ulisse, de Joyce, é possivelmente o máximo resultado da aventura relativa à linguagem assumida pelos grandes autores do Novecentos. Na obra-prima joyciana a narrativa da jornada dublinese de 10 de junho de 1904, vivida por Leopoldo Blum, transfigura-se no canto de um sentido radical da existência. O romance atinge tais graus de invenção ao ponto de conduzir o sitema do conhecimento do mundo e a sua corresponde expressão muito além da razão lógica, fazendo da palavra o núcleo narrativo por excelência. De tudo isso resulta uma escritura que descreve a existência do homem a partir de uma dimensão semântica geradora de uma nova poesia. Paralelamente à aventura de Ulisse se desenvolve uma parte significativa das literaturas de língua inglesa, em autores como John dos Passos, Faulkner, Virgínia Woolf, Ford Madox Fox, Synge, Katherine Mansfield, Nabokov.
A “Poesia” de T. S. Eliot se nos apresenta como um dos mais significativos exemplos da criação lírica do séc. XX. A investigação do poeta anglo-americano se mostra sempre ligada à linguagem, no desejo constante de um encontro entre criação lírica e racionalidade crítica. O poema que daí resulta é sempre amplo e completo, ainda que geralmente imbuído da dimensão estética do fragmento, uma herança da tradição romântica. Muitos poetas de língua inglesa podem ser colocados na esteira crítica eliotiana, mesmos aqueles mais claramente tendentes a uma integral investigação formal, como Pound, Cummings; até outros mais afins ao primado da imagem, como Yeats, Joyce, Sturge Moore, Roberto Lowell.
2 – Língua francesa : a) LaRecherche du temps perdu (1913/1927), de Marcel Proust (1871-1922) ; b) La Peste (1947), de Albert Camus (1913-1960).
La Recherche, de Proust, é a obra-prima que traduz mais integralmente um dos elementos-guias da criação literária do Novecentos: a memória. A genial língua impressionista de Proust atinge o mais profundo da “duração” dos fenômenos e dos sentimentos transmetidos diretamente do ato de recordar. A revolucionária lição bergsoniana sobre a duração do tempo e as suas relações com a memória encontra nos personagens proustianos a maior equação entre criação artística e pensamento filosófico. O tempo de Proust é amplo e universal , o que nos permite de colocar ao seu lado obras de autores tão diversos como Romain Rolland, Blaise Cendrars, Gide, Mauriac, Bernanos, Céline.
La Peste,de Camus, é a obra-prima da narrativa francesa moderna que alarga a dimensão proustiana, sendo o seu oposto. Camus se propõe de revelar a realidade vivida diretamente. Para chegar a tal revelação ele se apropria da linguagem de um realismo renovado a partir da escritura, ela mesma. Somente a afirmação da primazia da razão objetiva e da lógica em favor da criação poética leva a uma tal linguagem, ao mesmo tempo insólita forma de revelação do mundo e instrumento de poesia.
3 – Língua alemã: a) O homem sem nenhuma qualidade (1952), de Musil (1880-1942); b) O Processo (1925), de Franz Kafka (1883-1924)
O homem sem nenhuma qualidade, de Musil, e O Processo, de Kafka, são duas diversas obra-primas, muito diversas, mas que têm em comum o sentido do absurdo. Trata-se porém de diferentes expressões da absurdidade predominante na vida do homem: enquanto na obra-prima austríaca o absurdo não reside nos acontecimentos, mas vem compreendido a partir da narrativa apoiada em um tempo que passa e que não mais se reconhece, nos sentimentos das coisas que mais e mais se distanciam deixando os homens que os vivem como se existissem despojados de tudo, na obra-prima kafkiana o sentido do absurdo é direto. O Processo faz viver a absurdidade da vida em um tempo privado da razão e tendente à auto-destruição. Ambos os romances são exemplos da máxima partecipação do homem moderno com o seu tempo. Brecht, Thomas Mann, Schwitters, Kraus, Roth, Doblin, Doderer, Ghunter Grass são expressões paralelas às vozes de Musil e Kafka.
4 – Língua russa: a) O Doutor Zivago (1957), de Boris Pasternak (1890-1960); b) O Mestre e Margarida (1967), de Michail Bulgakov (1891-1940)
O Doutor Zivago, de Pasternak, e O Mestre e Margarida, de Bulgakov, ainda que a partir de diversas estruturas literárias, são dois máximos exemplos de romances do Novecentos russo. A obra-prima de Pasternak é construída diretamente do testemunho histórico-político, sem fazer-se político. Pasternak permanece principalmente no plano da criação poética. O Maestro e Margarida se concentra principalmente no espaço onírico, na linguagem enquanto tal. Porém, ainda preso a uma maneira tendente ao literário, o autor não ignora a dimensão do empenho e do testemuno político. Os dois romances são duas obra-primas, pode-se dizer, complementares. Tão amplos ao ponto de poder ter ao lado escritores tão diversos como Belyj, Malevich, Babel, Eremburg, Solzenicyn.
5 – O italiano: a) A consciência de Zeno (1923), de Italo Svevo (1862-1928); b) “Poesia”, de Eugenio Montale (1896-1981)
A consciência de Zeno, de Svevo, permanece como um dos grandes romances do Novecentos porque é capaz de transferir a atenção da análise psicológica da tradição realista às lições de Freud. A história de Zeno Cosini não é o resultado final de acontecimentos exteriores, mas a análise que o personagem faz de si mesmo. Svevo encontra dessa maneira para a sua obra-prima endereços que não interessam tão somente à literatura italiana, mas igualmente a outros sistemas literários nacionais. O período inaugurado por uma obra-prima como A consciência de Zeno permite a exaltação de outros narradores italianos, de Pallazzeschi a Gadda, de Landolfi a Emanuelli, Savinio, Pavese, Calvino.
A”Poesia” de Montale começa quase como que ignorando as perspectivas abertas pelas propostas das vanguardas históricas. O seu primeiro elemento de composição da voz lírica é a tradição, particularmente a lição leopardiana. Porém, logo sabe esclarecer as próprias intenções de modernidade, fundando sobre um particular endereço de linguagem a sua visão do mundo. As suas poesias, ainda que partindo de uma aparente visão negativa da existência, logo em seguida se faz um iluminante testemunho da mesma. Com Montale encontramos outros poetas da mesma dimensão: Quasimodo, Ungaretti, Penna, Luzi, Zanzotto.
6 – Língua castelhana: a) Névoa (1914), de Miguel Unamuno (1864-1936); “Poesia”, de Rafael Alberti (1902-1999)
Ao exaltar Névoa, de Unamumo, me permito de alargar a minha atenção a livros de autores espanhóis e hispano-americanos, como Borges, Cela, García Marquez, José Lezama Lima. Não que façam necessariamente parte da família unamuniana, mas porque são feitos com a mesma espessurra.
Névoa é uma dos romances mais especificamente ligados ao pensamento predominante do séc. XX. A trágica história de Augusto Péres, dominado por um sentimento de angústia existencial, corresponde a um dos traços mais profundos do homem moderno. Como afirmou o mesmo Unamuno, “Augusto Péres ameaçou todos os homens”, e assim fez com que permanecesse a sua história.
Na “Poesia” de Rafael Alberti podemos encontrar praticamente todos os endereços da produção poética de língua espanhola do Novecentos. Já na primeira criação de 1924 estão presentes as características fundamentais da sua poesia: ao lado de uma linguagem vinda da modernidade novecentista, o poeta visualiza a sua adesão à cultura popular e à tradição; bebe das lições do Ultraísmo futurista; atinge a nota principal de sua criação, o empenho social e político. Nestas variadas linhas da poesia albertina encontramos espaço para exaltar outros poetas espanhóis e hispanoamericanos do séc. XX: Antonio Machado, Juan Jamon Jimenez, Vicente Alexandre, Garcia Lorca, Gabriela Mistral, Neruda, Borges, Octavio Paz.
7 - Língua portuguesa: a) “Poesia”, de Fernando Pessoa (1888-1935); b) Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967)
Fernando Pessoa com a “Poesia”, distribuida na vastidão de uma personalidade mítica que vai da voz ortônima até os vários heterônimos – espelhos côncavos e convexos do poeta, sintetisa em si toda uma literatura. A aventura novecentista por uma nova linguagem poética encontra nos textos pessoanos dimensões que não permanecem somente ligadas à escritura, mas atingem a grandeza dramática da epopéia sem heróis e eventos maravilhosos, externamente até mesmo à própria linguagem. Na esteira mítica da poesia de Pessoa, ainda que quase sempre dele diferentes, podemos exaltar outros poetas portugueses e brasileiros: Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto.
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é a obra-prima da narrativa brasiliana contemporânea e um dos maiores produtos da língua portuguesa. Sendo o romance da linguagem na mais ampla dimensão do conceito, é também o romance de uma humanidade – os habitantes do “sertão“, gente da imensidade espacial do interior do Brasil – que, ainda que confinada na dimensão do regional, assume aquela do universal. Romance de amor e epopéia do homem em confronto com um mundo duro e difícil, Grande Sertão rompe as barreiras antes existentes entre prosa e poesia, facendo-se história. A moderna lição rosiana nos indica sobre a existência de outros grandes narradores de língua portuguesa do séc. XX: Euclides da Cunha, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Adelino de Magalhães, Mário de Andrade, Miguel Torga, Graciliano Ramos, Jorge Amado,Adonias Filho, José Cardoso Pires, José Saramago.
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