Enviado por Julio Marques Mota
Não ao governo de incompetentes, chamem-se Passos Coelho, chamem-se José Sócrates, chamem-se Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, chamem-se Presidente da União Europeia, Herman van Rompuy, ou outros do mesmo quilate. É assim que interpretámos o texto seguinte de Sennet, para quem o Twitter ainda não funcionou na Europa como o fez noutras latitudes .
Mentira meritocrática
Richard Sennet|
O principal desafio das nossas sociedades modernas consiste em criar as condições de uma cooperação entre indivíduos cujas opiniões políticas, convicções religiosas ou as origens culturais diferem. As novas tecnologias de comunicação deveriam abrir esta possibilidade. E fizeram-no, como acaba de se mostrar com os movimentos populares na África do Norte. No Egipto, Twitter permitiu mobilizar classes sociais até então bem separadas, estanques, que nunca não tinham lançado uma acção política comum. Na Europa, no entanto, os novos meios de comunicação social ainda não foram rentabilizados desta forma. Porquê? Comecemos por um paradoxo formulado muito antes da invenção do iPhone.
O PARADOXO DE BURCKHARDT
No XIXº século, o historiador Jacob Burckhardt definia modernidade como “a era das simplificações selvagens”. O paradoxo, de acordo com este autor, resultava do facto que a sofisticação crescente das condições sociais concretas é acompanhada de um empobrecimento das relações sociais. A tese que me proponho aqui defender é que a complexidade dos meios de comunicação excede a nossa capacidade de os utilizar de forma apropriada, fazendo deles uma boa utilização e, nomeadamente, estabelecendo com eles uma verdadeira cooperação. A sociedade moderna produz uma complexidade material que não sabe explorar.
[Nesta linha podemos entender de forma mais generalizada que a sofisticação técnica crescente geram um efeito de brutal desumanização do trabalho, resultante da aplicação nos processos de produção de mega-máquinas, meso-máquinas, micro-máquinas organizacionais e produtivas que afastam de maneira provisória ou mesmo definitiva os saberes feitos de experiência e ou de capacidade de abstracção que tornam muitos dos trabalhadores descartáveis. É nesse senti do nos parece que as reformas do ensino superior , ditas de Bolonha se pretendiam inserir, mas foram longe de mais: produzem agora quase que ignorantes, técnica e socialmente, face ao que se espera ainda deles. E por esta via encontramos muitos dos críticos das reformas de ensino preconizadas por Bruxelas e bem acatadas pelos diferentes governos nacionais.
Ainda aqui, sublinhe-se o que Sennet lembra a seguir, que Burckhardt era um defensor da era medieval contra uma certa ideia de modernidade que a Renascença visa instalar ou mesmo é o que ela representa já.. Como assina um especialista de Burckhardt que passamos a citar:
Na análise que fazia da Renascença tinha como pano de fundo a época medieval e caracterizava esta ultima como a época de uma cultura unificada em que política e religião se interpenetravam e em que o indivíduo só ganha consciência de si-próprio através da comunidade a que pertence. Ora a Renascença, “mãe da nossa civilização” moderna é a era em que o individualismo moderno, com as suas incríveis certezas, surge da destruição da comunidade. E assim nasce a cultura moderna em que a concorrência destrói a comunidade humana anterior. E afirma Burckhardt: nós encontrámos aqui [na Itália da Renascença] o espírito político moderno…manifestando-se da pior maneira por um egoísmo desenfreado, passando por cima de todos os direitos e matando à nascença todos os sinais de uma cultura mais sã” e deste ponto de vista sejamos agora claros, encontramos claros sinais na realidade social que estamos a viver, com as cúpulas, os detentores do poder político, económico, financeiro e social por um lado, e os outros, diferenciação onde é dominante o financeiro, sobre todos os que trabalham, os que sabem fazer, os que sabem criar. Aqui é notório, a realidade prova-o diariamente, o mundo de uns nada tem a ver com o dos outros, nem em saberes, nem em competências, nem em visão do mundo, a não, exclusivamente que uns, se alimentam e vivem do esforço brutal que exigem aos outros. Basta olhar para o mundo de alta finança, para o discurso de cada grande financeiro, e o exemplo mais claro de tudo isto, da incompetência de uns, os de topo, é-nos dados pelos muitos financeiros pagos a milhões de bónus e a colocarem os fundos recolhidos por uma miríade de intermediários no Madoff! Destas forma, temos então as simplificações selvagens de que nos fala Sennet a, propósito de Burckhardt ]
No apoio a esta tese, a era das simplificações selvagens , continua Sennet: aqui apresentarei dois estudos de casos. A primeira tem a ver com a aplicação informática que é suposta promover o trabalho cooperativo, em que os programadores tinham contudo uma concepção demasiado primária para que o esforço dispendido nos levasse a bom porto. O segundo caso tem a ver com o modo de funcionamento actual do capitalismo: as desigualdades impedem a comunicação e a cooperação ao seio das organizações. O empobrecimento das relações sociais ilustra-se por conseguinte por uma má compreensão dos mecanismos de cooperação e pela presença de cada vez mais obstáculos que nos possam levar à aplicação dos referidos mecanismos de cooperação. .
TECNOLOGIA DA COOPERAÇÃO
GoogleWave é uma aplicação Web destinada a promover a partilha das ideias. Materializando no ecrã a evolução das intervenções, abre uma plataforma aos internautas que podem assim participar num projecto em curso. Com GoogleWave, a noção de laboratório participativo foi projectada para o cyberespaço. Infelizmente, esta ambição falhou; a aplicação terá tido apenas um ano de existência, de 2009 até 2010, antes que Google lhe ponha um fim.
Tendo eu próprio feito parte do número de utilizadores da versão beta, ajudei a limpar muitas das arestas do programa. O grupo do qual eu fazia parte tinha-se dado como missão recolher dados e elaborar uma política em matéria de imigração em Londres. Os participantes, espalhados por toda a Inglaterra e por toda a Europa, trocavam mensagens e entravam nas plataformas, chatts , regularmente sobre GoogleWave. Tratava-se de analisar as razões pelas quais, na Inglaterra, os imigrantes de segunda geração têm tendência a desinvestir no país de acolhimento dos seus pais - uma problemática que se refere particularmente às famílias originárias de países muçulmanos
Mas o desafio era também de ordem técnica . Estatísticos e etnógrafos, com efeito, não interpretavam esta forma de ser da mesma maneira. Uns invocavam os obstáculos à mobilidade social; os outros consideram que os jovens, independentemente do seu modo de vida actual, idealizam os costumes do seu país de origem. Um trabalho cooperativo em linha estava-ele em condições de deslindar a situação?
GoogleWave segue um princípio linear que implica uma progressão contínua para um resultado claro e sem ambiguidades. Este programa simples, demasiado simples, não tem em conta as complexidades que gera o trabalho cooperativo. A linearidade da trama narrativa dissuade o pensamento lateral, o que confronta ideias ou práticas diferentes, fora dos caminhos já bastamente percorridos.
Face à impossibilidade de combinar estratos complexos de significação, tanto em termos sociais como também técnicos, o nosso grupo rapidamente esgotou o quadro previsto pelo programa e terminamos por nós por decidir tomar o avião e discutirmos o tema de viva voz.
Finalmente, GoogleWave demonstrou que quando os internautas se empenham, se envolvem num trabalho cooperativo, são então capazes de gerir uma complexidade bem superior àquela que se previa com a aplicação. Os estudos que consagrei ao mundo do trabalho de resto sempre levaram-me a esta constatação: as capacidades dos trabalhadores são superiores à utilização institucional ou formal que se faz delas . É que mostra também o economista Amartya Sen, cuja “teoria das capacidades " sublinha a distância que há entre as capacidades cognitivas do homem e a sua realização na sociedade moderna.
DESIGUALDADES E COMPETÊNCIAS
As desigualdades, assentam sobre “simplificações selvagens” que inibem a comunicação e, por conseguinte, inibem a cooperação. A priori, esta crítica pode parecer absurda. Estruturas fortemente hierarquizadas, como o exército ou a Igreja católica, não provam elas que se pode trabalhar em conjunto em missões bem difíceis? Há no entanto casos onde as desigualdades são um obstáculo à cooperação: quando as competências de um indivíduo não correspondem à função que ocupa numa organização, quando um empregado competente está sob as ordens de um chefe incompetente. Num contexto institucional, esta desigualdade tem consequências desastrosas. O subalterno sentem-se incompreendido , torna-se amargurado, mal disposto, submetido à ditadura de um pequeno chefe e a comunicação social tende a ficar cada vez mais primária.
Na ideologia meritocrática uma tal situação é inconcebível: só os mais competentes acedem aos postos de quadros superiores. O capitalismo moderno fez-se muito exactamente por ter sido capaz de recompensar o mérito. Na escola, seguidamente no trabalho, constantemente nó estamos constantemente a ser avaliados em função das nossas aptidões e dos nossos sucessos. Ora, este sistema meritocrático é falacioso.
Muito frequentemente, o artesão moderno (técnico, auxiliar médico, professor) deve dar conta aos seus superiores menos competentes que ele.
Basicamente, o capitalismo não soube manter os empenhamentos da meritocracia .
A gíria em gestão atribui os disfuncionamentos da comunicação institucional “ao efeito de silo”, [o efeito de silo significa que numa empresa há alguns departamentos, grupos ou indivíduos que procuram agir isoladamente, não interagindo, não comunicando ou não cooperando com os demais componentes do sistema organizacional]. As empresas são ameaçadas pelos trabalhadores que operam cada um no seu silo, sem estar a comunicar entre si. As teorias da gestão lamentam particularmente o efeito de silo nos quadros dirigentes, que perdem a sua capacidade de liderança e são incapazes de fazer face aos problemas se continuam a estar em circuito fechado e isolados do mundo externo.
DOIS ANOS de ESTUDOS
Interroguei-me sobre a relação entre esta compartimentação e as desigualdades que acabamos de evocar a propósito da mentira meritocrática. A fim de elucidar a relação entre compartimentação e incompetência, a minha equipa passou dois anos a estudar os meios financeiros de Nova Iorque e de Londres. Os testemunhos assim recolhidos permitiram estabelecer se os quadros dirigentes estavam ou não à ouvir os técnicos subalternos e, nomeadamente, os programadores encarregados de conceber os algoritmos que estiveram na origem dos instrumentos financeiros modernos, como os derivados de crédito.
Resulta que os cálculos matemáticos são também frequentemente muito difíceis tanto para as instâncias de decisão como para o grande público.
Os dirigentes de um banco de investimento desviam os olhos logo que se lhes fala de detalhes técnicos. “Quando lhe pedi que me resumisse o algoritmo, diz um jovem tesoureiro a propósito do seu superior, um gestor de produtos derivados, que anda de Porsche, ele foi incapaz. “
Para o sociólogo, todo o problema das desigualdades resume-se ao facto de que os quadros superiores, apesar de uma remuneração e responsabilidades mais importantes, têm frequentemente competências técnicas mais baixas que os subalternos. Reencontrase aqui o paradoxo de Burckhardt: as capacidades técnicas das empresas financeiras vão muito para além do uso que delas é feito. As desigualdades medem-se aqui pela compartimentação organizacional.
O SABER E O PODER
Em numerosas instituições financeiras, esta ausência de mutualidade é desastrosa. Mina a autoridade; questionam-na e questionam-nos e a raiva que escondem na presença do chefe explode tão mais rapidamente quanto estes lhes viram as costas . Por último, este tipo de desigualdade incita os técnicos a terem comportamento de silo , a renunciarem a todo e qualquer diálogo com os seus superiores. Tantos factores que afectam a lealdade para com a empresa. Aquando da última crise económica, quando as empresas tinham dificuldade em funcionar como corpo para sobreviver nó vimos, no entanto , que a erosão da lealdade e da cooperação tinha consequências bem reais.
O desafio sociológico aqui tem por conseguinte a ver com a inversão da relação entre competência e hierarquia. Neste contexto, as desigualdades provocam simplificações selvagens; minam o tecido complexo de confiança e de respeito mútuo que faz a trama das organizações. Quando os indivíduos continuam a ser de todo fechados, a cooperação perde toda a sua substância.
Para sair do paradoxo de Burckhardt, deveríamos renovar com o artesão que está em cada um de nós, aprender a trabalhar com a diferença com a finalidade de uma cooperação mais eficaz. No seu tempo, Burckhardt passava para um pessimista, nostálgico do ideal social que ainda se viveu com a Renascença onde os homens cultivavam os seus capacidades a título individual. Hoje, uma abordagem verdadeiramente social das capacidades deveria tornar-nos mais combativos, deveria conduzir-nos a desafiar as formas de saber e de poder que o capitalismo impôs num espírito arbitrário e desigual.
Traduzido do inglês por Myriam Dennehy
Richard Sennet, Mensonge Méritocratique, Le Monde, 9 de Abril de 2011.
Nascido em 1943, este eminente investigador americano ensina na London School of Economics e na Universidade de Nova Iorque. Richard Sennett, sociólogo e historiador
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