Segunda-feira, 18 de Abril de 2011

Mentira meritocrática por Richard Sennet

Enviado por Julio Marques Mota

 

Não ao governo de incompetentes, chamem-se Passos Coelho, chamem-se José Sócrates, chamem-se Presidente  da Comissão Europeia, Durão Barroso, chamem-se Presidente da União Europeia, Herman van Rompuy, ou outros do mesmo quilate.   É assim que interpretámos o texto seguinte de Sennet, para quem o Twitter ainda não funcionou na Europa como o fez noutras latitudes .

Mentira meritocrática
Richard Sennet|

 

O principal desafio das nossas sociedades modernas consiste em criar as condições de uma cooperação entre indivíduos cujas opiniões políticas, convicções religiosas ou as origens culturais diferem. As novas tecnologias de comunicação deveriam abrir esta possibilidade. E fizeram-no, como acaba de se  mostrar com  os movimentos populares na África do Norte. No Egipto, Twitter permitiu mobilizar classes sociais até então bem separadas, estanques,  que nunca não tinham  lançado uma acção política comum. Na Europa, no entanto, os novos meios de comunicação social ainda não foram rentabilizados desta forma. Porquê? Comecemos  por um paradoxo formulado muito antes da invenção do iPhone.

 

O PARADOXO DE BURCKHARDT

 

No XIXº século, o historiador Jacob Burckhardt definia modernidade  como “a era das simplificações selvagens”. O paradoxo, de acordo com este autor, resultava do facto que a sofisticação  crescente das condições sociais concretas é acompanhada  de um empobrecimento das relações sociais. A tese que me  proponho  aqui defender  é que a complexidade dos meios de comunicação excede a nossa capacidade de os utilizar de forma  apropriada, fazendo  deles uma boa utilização  e, nomeadamente, estabelecendo com eles uma verdadeira cooperação. A sociedade moderna produz  uma complexidade material que não sabe explorar.

 

[Nesta linha podemos entender de forma mais generalizada que a sofisticação técnica crescente  geram um efeito de brutal desumanização do trabalho, resultante da aplicação nos processos de produção de mega-máquinas, meso-máquinas, micro-máquinas organizacionais e produtivas  que afastam de maneira provisória ou mesmo definitiva   os saberes feitos de experiência e ou de capacidade de abstracção que tornam muitos dos trabalhadores descartáveis. É nesse senti do nos parece que as reformas do ensino superior , ditas de  Bolonha se pretendiam inserir, mas foram longe de mais: produzem agora quase que ignorantes, técnica e socialmente,  face ao que se espera ainda deles.  E por esta via encontramos muitos dos críticos  das reformas de ensino preconizadas por Bruxelas e bem acatadas pelos diferentes  governos nacionais.

 

Ainda aqui, sublinhe-se o que Sennet lembra a seguir, que Burckhardt era um defensor da era  medieval  contra uma certa ideia de modernidade que a Renascença visa instalar ou   mesmo é o que ela representa já.. Como assina um especialista  de Burckhardt que passamos  a citar:

Na análise que fazia da Renascença tinha como pano de fundo a época medieval e caracterizava esta ultima como a época  de uma cultura unificada  em que política  e religião se  interpenetravam e em que o indivíduo só ganha consciência de si-próprio através da comunidade a que pertence. Ora a Renascença, “mãe da nossa civilização” moderna  é a era em que o individualismo moderno, com as suas incríveis certezas,  surge da destruição da comunidade. E assim nasce a cultura moderna  em que a concorrência destrói  a comunidade humana anterior. E afirma Burckhardt: nós encontrámos aqui [na Itália  da Renascença] o espírito político moderno…manifestando-se da pior maneira por um egoísmo  desenfreado, passando por cima de todos os direitos e matando à nascença todos os sinais  de uma cultura mais sã” e deste ponto de vista sejamos agora claros, encontramos claros sinais na realidade social que estamos a viver, com as cúpulas, os detentores do poder político, económico, financeiro  e social por um lado, e os  outros, diferenciação onde é dominante o financeiro, sobre todos os que trabalham, os que sabem fazer, os que sabem criar. Aqui é notório, a realidade prova-o diariamente, o mundo de uns nada tem a ver com o dos outros, nem em saberes, nem em competências, nem em visão do mundo, a não, exclusivamente  que uns, se alimentam e vivem do esforço brutal que exigem aos outros. Basta olhar para o mundo de alta finança, para o discurso de cada grande financeiro,  e o exemplo mais claro de tudo isto, da incompetência de uns, os de topo,  é-nos  dados pelos muitos  financeiros  pagos a milhões de bónus  e a colocarem  os fundos recolhidos por uma miríade de intermediários no Madoff! Destas forma, temos então as simplificações selvagens  de  que nos fala Sennet a, propósito de Burckhardt ]

No  apoio a esta tese,  a era das simplificações selvagens , continua Sennet: aqui  apresentarei dois estudos de casos. A primeira tem a ver com  a aplicação informática que é suposta promover o trabalho cooperativo, em que os  programadores tinham contudo uma concepção demasiado primária para que  o esforço  dispendido nos levasse a bom porto. O segundo caso tem a ver com o modo de funcionamento actual do capitalismo: as desigualdades impedem a comunicação e a cooperação ao seio das organizações. O empobrecimento das relações sociais ilustra-se por conseguinte por uma má compreensão dos mecanismos de cooperação e pela presença de cada vez mais obstáculos que nos possam levar à aplicação  dos referidos mecanismos de cooperação. .

 

TECNOLOGIA DA COOPERAÇÃO

 

GoogleWave é uma aplicação Web destinada a promover a partilha das  ideias. Materializando  no ecrã a evolução das intervenções, abre uma plataforma aos internautas  que podem assim participar num projecto em curso. Com GoogleWave, a noção de laboratório participativo foi projectada para o cyberespaço. Infelizmente, esta ambição falhou; a aplicação terá tido apenas um ano de existência, de 2009 até  2010, antes que Google lhe ponha um fim.

 

Tendo eu próprio feito parte do número de utilizadores da versão beta, ajudei a limpar  muitas das arestas do programa. O grupo do qual eu fazia parte tinha-se dado como  missão   recolher dados e  elaborar uma política em matéria de imigração em Londres. Os participantes, espalhados por toda a Inglaterra e por  toda a Europa, trocavam mensagens e entravam nas plataformas, chatts ,  regularmente sobre GoogleWave. Tratava-se de analisar as razões pelas quais, na Inglaterra, os imigrantes de segunda geração têm tendência  a desinvestir  no país de acolhimento dos seus pais - uma problemática que se refere particularmente às famílias originárias de países muçulmanos

 

Mas o desafio era também de ordem técnica . Estatísticos e etnógrafos, com efeito,  não interpretavam  esta forma de ser da mesma maneira. Uns  invocavam os obstáculos à mobilidade social; os outros consideram que os jovens, independentemente do seu modo de vida actual, idealizam  os costumes do seu país de origem. Um trabalho cooperativo em linha estava-ele  em condições de deslindar a situação?

 

GoogleWave segue um princípio linear que implica uma progressão contínua para um resultado claro e sem ambiguidades.  Este programa simples, demasiado simples, não tem em conta as complexidades que gera o trabalho cooperativo. A linearidade da trama narrativa dissuade o pensamento lateral, o  que confronta ideias ou práticas diferentes, fora dos caminhos já bastamente percorridos.

 

Face à impossibilidade de combinar estratos complexos de significação, tanto em termos sociais como também técnicos, o nosso grupo rapidamente  esgotou  o quadro previsto pelo programa e terminamos por nós por decidir tomar  o avião e discutirmos o tema de viva  voz.

 

Finalmente, GoogleWave demonstrou que   quando os internautas se empenham, se envolvem num trabalho cooperativo, são então capazes de gerir uma complexidade bem superior àquela  que se  previa com a aplicação. Os estudos que consagrei ao mundo do trabalho de resto sempre levaram-me a esta constatação: as capacidades dos trabalhadores são superiores à utilização  institucional ou formal que se faz delas . É que mostra também o economista Amartya Sen, cuja “teoria das capacidades " sublinha a distância que há  entre as capacidades cognitivas do homem e a sua realização na sociedade moderna.

 

DESIGUALDADES E COMPETÊNCIAS

 

As desigualdades, assentam sobre “simplificações selvagens” que inibem a comunicação e, por conseguinte, inibem a cooperação. A priori, esta crítica pode parecer absurda. Estruturas fortemente hierarquizadas, como o exército ou a Igreja católica, não provam elas  que se  pode  trabalhar em conjunto  em  missões bem difíceis?  Há  no entanto casos onde as desigualdades são um obstáculo à  cooperação: quando as competências de um indivíduo não correspondem à função que ocupa numa organização, quando um empregado competente está  sob as ordens de um chefe incompetente. Num contexto institucional, esta desigualdade tem consequências desastrosas. O subalterno sentem-se incompreendido , torna-se amargurado, mal disposto, submetido à ditadura de um pequeno chefe  e a comunicação social tende a ficar cada vez mais primária.

 

Na ideologia meritocrática  uma  tal situação é inconcebível: só os mais competentes acedem aos postos de quadros superiores. O capitalismo moderno fez-se muito exactamente por ter sido capaz de  recompensar o mérito. Na  escola, seguidamente no trabalho,  constantemente nó estamos  constantemente a ser avaliados  em função das nossas aptidões e dos nossos sucessos. Ora, este sistema meritocrático é falacioso.

 

Muito frequentemente, o artesão moderno (técnico, auxiliar médico, professor) deve dar conta  aos seus  superiores menos competentes que ele.

 

Basicamente, o capitalismo não soube manter os empenhamentos da meritocracia .

 

A gíria em gestão  atribui os disfuncionamentos da comunicação institucional “ao efeito de silo”, [o efeito de silo significa que numa empresa há alguns departamentos, grupos ou indivíduos que procuram agir isoladamente, não interagindo, não comunicando ou não cooperando com os demais componentes do sistema organizacional]. As empresas são ameaçadas pelos trabalhadores que operam cada um no seu silo, sem estar a comunicar entre si. As teorias da gestão lamentam particularmente o efeito de silo nos quadros dirigentes, que perdem a sua capacidade de liderança e são incapazes de fazer face aos problemas se continuam a estar em circuito fechado e isolados do mundo externo.

 

DOIS ANOS de ESTUDOS

 

Interroguei-me sobre a relação entre esta compartimentação e as desigualdades que acabamos de evocar a propósito da mentira meritocrática. A fim de elucidar a relação entre compartimentação e incompetência, a minha equipa passou dois anos a estudar os meios financeiros de Nova Iorque e de Londres. Os testemunhos assim recolhidos permitiram estabelecer se os quadros dirigentes estavam ou não à ouvir os técnicos subalternos e, nomeadamente, os programadores encarregados de conceber os algoritmos que estiveram na origem dos instrumentos financeiros modernos, como os derivados de crédito.

 

Resulta que os cálculos matemáticos são também frequentemente muito difíceis  tanto  para as instâncias de decisão como  para o grande público.

 

 

Os dirigentes  de um banco de investimento desviam os olhos logo que se lhes fala de detalhes técnicos. “Quando lhe pedi  que me  resumisse  o algoritmo, diz  um jovem tesoureiro a propósito do  seu superior, um  gestor de produtos derivados, que anda de  Porsche, ele foi incapaz. “

 

Para o sociólogo, todo o problema das desigualdades resume-se ao facto de que os quadros superiores, apesar de uma remuneração e responsabilidades mais importantes, têm frequentemente competências técnicas mais baixas que os  subalternos. Reencontrase aqui o paradoxo de Burckhardt: as capacidades técnicas  das empresas financeiras vão muito para além do uso que delas  é feito. As desigualdades medem-se aqui pela  compartimentação organizacional.

 

O SABER E O PODER

 

Em numerosas  instituições financeiras, esta ausência de mutualidade é desastrosa. Mina a autoridade; questionam-na e questionam-nos e a raiva   que escondem na presença do chefe explode tão mais rapidamente  quanto estes lhes viram as  costas . Por último, este tipo de desigualdade incita os técnicos a terem comportamento de silo , a renunciarem a todo e qualquer diálogo com os seus superiores. Tantos factores que afectam a lealdade para com a empresa. Aquando da última crise económica, quando as empresas tinham dificuldade em funcionar como corpo   para sobreviver nó vimos,  no entanto , que a erosão da lealdade e da cooperação tinha consequências bem reais.

 

O desafio sociológico aqui tem por conseguinte a ver com  a  inversão da relação entre competência e hierarquia. Neste contexto, as desigualdades provocam simplificações selvagens; minam  o tecido complexo de confiança e de respeito mútuo que faz a trama das organizações. Quando os indivíduos continuam a ser de todo  fechados, a cooperação perde toda a  sua substância.

 

Para sair do paradoxo de Burckhardt, deveríamos renovar  com o artesão que está em cada um de  nós, aprender a trabalhar com a diferença com a finalidade  de uma cooperação mais eficaz. No seu tempo, Burckhardt passava para um pessimista, nostálgico do ideal social que ainda se viveu com a Renascença  onde os homens cultivavam os seus capacidades a  título individual. Hoje, uma abordagem verdadeiramente social das capacidades deveria tornar-nos mais combativos, deveria  conduzir-nos a desafiar as formas de saber e de poder que o capitalismo impôs num espírito arbitrário e desigual.

 

Traduzido do inglês por Myriam Dennehy

 

Richard Sennet, Mensonge Méritocratique, Le Monde, 9 de Abril de 2011.

Nascido em 1943, este eminente investigador americano ensina na London School of  Economics e  na Universidade de Nova Iorque. Richard Sennett, sociólogo e historiador

 

publicado por Luis Moreira às 20:00
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3 comentários:
De Augusta Clara a 18 de Abril de 2011
É verdade que o mundo está a virar-se de pernas para o ar, mas afirmar que o Renascimento, a época da libertação e do primado da razão sobre as crenças sobrenaturais e o obscurantismo religioso, está na origem do estado a que chegámos parece-me um pouco, para não dizer muito, forçado.
De carlos ruão a 18 de Abril de 2011
... jacob burckhardt, o célebre historiador da arte da designada «escola de viena», falecido em 1897 !!! vem aqui citado FORA DE QUALQUER CONTEXTO HISTÓRICO e em nenhuma circunstância pode ser objecto de qq comparação directa com a realidade actual pós-modernista.
O que sublinha, antes de tudo, a grande falácia da atitude a-histórica tipica do mundo em que vivemos e, particularmente, a ignorância do autor.
... e não será demasiado mencionar que o pensamento de JB foi mal interpretado (para além de descontextualizado); leia-se, para quem tiver paciência e rigor, «a civilização do renascimento italiano» editado pela presença.

ps: aquilo que estava em causa para a «escola de viena» de JB até Erwin Panofsky era na verdade a própria origem da época moderna como evolução natural dos renascimentos dos séculos XIII e XIV na europa ocidental e não mais do que isso (veja-se EP «renascimento e renascimentos»)
De Luis Moreira a 19 de Abril de 2011
Obrigado, Carlos Ruao. Este comentario dava um belo texto.

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