Sábado, 16 de Abril de 2011

O Beijo 2 - Anton Tchekhov

Anton Tchekhov  O Beijo

 (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

 

 

(conclusão)

 

- Aguentáá as bestas! - ouvia-se a ordem sempre que o caminho descia.

 

Riabóvitch também gritava «aguentáá as bestas!» e temia que o grito lhe rasgasse os sonhos e o trouxesse à reali­dade...

 

Ao passarem ao lado de uma grande propriedade, Ria­bóvitch espreitou pelos gradis do parque. Viu uma comprida alameda, direita como uma régua, coberta de saibro amarelo e marginada de bétulas novinhas... Com a ânsia de um homem levado pelos devaneios, imaginou pequeninos pés femininos a pisarem o chão amarelo e, num repente, desenhou-se-lhe diante dos olhos aquela que o beijara, aquela que ontem, à mesa da ceia, só pudera fantasiar. A imagem colou-se a ele e já não o abandonou.

 

Pelo meio-dia, vindo da retaguarda, do lado do com­boio, soou um grito:

 

- Atenção! Olhar à esquerda! Senhores oficiais!

 

Num carro puxado por uma parelha de cavalos bran­cos, passava o general da brigada. Parou junto da segunda ba­teria e gritou qualquer coisa que ninguém apanhou. Vários ofi­ciais se aproximaram dele, Riabóvitch também.

 

- Então? Como vai isso? - saudou o general pestane­jando com os olhos vermelhos. - Há doentes?

 

Depois das respostas, o general, pequeno e magro, mas­tigou com os lábios, ficou a pensar e disse, por fim, a um dos oficiais:

 

- O seu boleeiro do cavalo de varal, da terceira peça, tirou a joelheira e pendurou-a, o canalha, no armão dianteiro. Aplique-lhe um castigo.

 

Levantou os olhos para Riabóvitch e continuou:

 

- Os tirantes dos seus cavalos parecem-me compridos demais...

 

Depois de mais algumas observações aborrecidas, o ha­bitual, o general, com um risinho, pôs os olhos em Lobitko.

 

- O tenente Lobitko está hoje com um ar muito triste -disse. - Tem saudades da Lopukhova, eh? Eh, meus  senhores, o tenente Lobitko está com saudades da Lopukhova!

 

Lopukhova era uma senhora muito alta, assaz corpu­lenta, passante há muito dos quarenta. O general, que tinha um fraquinho pelas senhoras corpulentas, fossem de que idade fossem, suspeitava desse fraquinho também nos seus oficiais. Os oficiais sorriram respeitosamente. O general, satisfeito com pilhéria tão venenosa, desatou à gargalhada, deu uma palmada nas costas do cocheiro e fez a continência. O coche seguiu para diante...

 

«Tudo o que sonho agora e se me afigura tão impos­sível e extraterreno é, no fundo, bastante vulgar - pensava Riabóvitch, olhando as nuvens de poeira que corriam atrás do coche do general. - Sim, vulgaríssimo e vivido por todos... Este gene­ral, por exemplo, em tempos também amou, e agora está casado e tem filhos. O capitão Wachter também está casado e é amado, embora tenha uma nuca vermelhusca bem feia e não tenha praticamente cintura... O Salmánov é bruto e demasiado tártaro, mas já teve um romance que culminou em casamento... Eu sou igual a todos eles e hei-de passar pelo mesmo, mais cedo ou mais tarde...»

 

A ideia de ser um homem vulgar e ter uma vida vulgar alegrou-o e animou-o. Já a desenhava sem receios, a essa vida e às suas felicidades, não restringindo em nada o voo da imaginação...

 

Quando, pelo anoitecer, a brigada chegou ao destino e os oficiais já descansavam nos abarracamentos, Riabóvitch, Merzliakov e Lobitko sentavam-se em volta de uma arca e jan­tavam. Merzliakov comia sem pressas e, mastigando vagarosa­mente, lia a Véstnik Evrópi que equilibrava nos joelhos. Lobitko falava sem parar, sempre a encher o copo de cerveja, e Riabóvitch, com uma neblina na cabeça por um dia inteiro de devaneios, só se calava e bebia. Ao fim de três copos sentiu-se embriagado e mole, com uma vontade insuperável de partilhar com os companheiros a sensação em que vivia.

 

- Aconteceu-me uma coisa estranha em casa desses Rabbeck... - começou, tentando dar à voz um tom
indiferente e irónico. - Fui até à sala de bilhar...

 

Contou, em muito pormenor, a história do beijo e, um minuto passado, já se calava... Num minuto pôde contar tudo, e ficou terrivelmente espantado por ter precisado de tão pouco tempo. Parecia-lhe que podia falar daquele beijo até ao ama­nhecer. Ouvindo a história, Lobitko, que mentia muito e como tal não acreditava em ninguém, olhou para ele com desconfiança e soltou uma risadinha. Merzliakov ergueu as sobrancelhas e, sem desviar os olhos da VéstnikEvrópi, sentenciou:

 

- Só Deus sabe o que isso é!... Atirar-se ao pescoço de alguém sem lhe chamar primeiro pelo nome... Uma psicopata qualquer.

 

- Sim, deve ser psicopata... - concordou Riabóvitch.

 

- A mim aconteceu-me uma vez o raio de um caso se­melhante... - disse Lobitko, fazendo olhos de susto. - Foi no ano passado, eu ia para Kovno... Compro bilhete de segunda clas­se... A carruagem está cheia como um ovo, é impossível dormir. Dou cinquenta copeques ao hospedeiro... Ele pega-me na ba­gagem e leva-me para um compartimento... Deito-me, cubro-me com um cobertor... Escuro como breu, estão a ver? Então, faço
um movimento com a mão e sinto um cotovelo... Abro os olhos e, imaginem só, é uma mulher! Olhos negros, lábios vermelhos como salmão, do bom, as narinas a arfarem com paixão, os seios ali, como uns...

 

- Desculpe lá - interrompeu-o com calma Merzliakov - quanto aos peitos, muito bem, eu compreendo, mas como podia ver-lhe os lábios se estava escuro?

 

Lobitko esquivou-se rindo desdenhosamente da falta de esperteza de Merzliakov. Riabóvitch sentiu-se melindrado. Afastou-se da arca, deitou-se e deu-se a palavra de honra de nunca mais entrar em confidências.

 

Começava a vida de acampamento... Corriam os dias, todos iguais. E em todos esses dias de bivaque Riabóvitch se sentia, pensava e se portava como um apaixonado. Todas as manhãs, quando o impedido lhe trazia água fria para lavar a cara, despejava-a na cabeça e infalivamente se lembrava de que existia uma coisa boa e quente na sua vida.

 

À noite, quando os companheiros entravam de conversa sobre o amor e as mulheres, escutava atento, chegava-se a eles e fazia aquela expressão do soldado que ouve o relato de uma batalha em que ele próprio entrou. Nas noites em que os oficiais subalternos, já de grão na asa, com o "setter"- Lobitko à cabeça, faziam incursões    dom-joanescas à povoação, Riabóvitch alinhava tristemente e, de cada vez, sentia-se profundamente culpado e pedia-lhe perdão, a ela... Nas horas de folga ou nas noites de insónia, quando lhe apetecia recordar a infância, o pai, a mãe, enfim, tudo o que lhe era querido e familiar, também lhe vinha à memória Mestétchki, o esquisito cavalo baio, o von Rabbeck, a mulher dele, parecida com a imperatriz Eugenia, o quarto escuro, o rasgão de luz na porta...

 

A trinta e um de Agosto deixava o acampamento, não com a brigada, só com duas baterias. Durante todo o percurso ia em ânsias, e a sonhar, como se estivesse a caminho da pátria. Ansiava com paixão tornar a ver o invulgar cavalinho raboto, a igreja amarela, a família pouco sincera dos Rabbeck, a sala escura; a «voz interior», que tantas vezes engana os apaixona­dos, sussurrava-lhe que sim, que ia encontrá-la... Atormentavam-no as perguntas: como encontrar-se com ela? De que falar com ela? Terá ela esquecido o beijo ou não? No pior dos casos, pen­sava, mesmo que não a encontrasse, ia ser-lhe agradável passar pela sala escura e recordar...

 

Ao anoitecer surgiram no horizonte a igreja familiar e os celeiros brancos. Bateu o coração de Riabóvitch... Nem ouvia o oficial que ao lado lhe dizia qualquer coisa, esqueceu tudo e só espreitava ansiosamente o rio a brilhar ao longe, o telhado de uma casa, um pombal sobre que voejavam em círculos os pom­bos iluminados pelo sol poente.

 

Ao aproximar-se da igreja, e depois, quando ouvia o quartel-mestre sobre o aboletamento, esperava a cada segundo que surtisse de trás da cerca o cavaleiro à paisana a convidar os senhores oficiais para o chá, mas... o relatório do quartel-mestre chegou ao fim, os oficiais apearam-se e foram, muito devagar, para a aldeia, e o cavaleiro não aparecia...

 

«Agora o Rabbeck vai ficar a saber pelos "mujiques" que chegámos e vai mandar-nos chamar» - pensava Riabóvitch entrando na izbá, sem perceber por que acendia uma vela o com­panheiro e os ordenanças se apressavam a pôr os samovares...

 

Apoderou-se dele uma inquietação pesada. Deitou-se, depois levantou-se e foi espreitar à janela, não viesse o cavaleiro. O cavaleiro não chegava. Estendeu-se de novo, tornou a levantar-se meia hora depois e, não aguen­tando a inquietação, saiu para a rua e caminhou na direcção da igreja. Na praça, junto à cerca, tudo escuro e deserto... No de­clive do carreiro deparou com três praças, muito calados. Ao darem de caras com Riabóvitch agitaram-se e saudaram. Re­tribuiu-lhes a continência e pôs-se a descer pelo carreirinho familiar.

 

Na outra margem, todo o céu estava inundado de tinta rubra; levantava-se a lua; duas camponesas, conversando em voz alta, andavam pela horta a esgalhar folhas de couve; por trás da horta, negrejavam izbás... Na margem de cá, tudo na mesma, como em Maio: o carreiro, os arbustos, os salgueiros debruçados para a água... só não se ouvia o destemido rouxinol e não cheirava a álamo nem a erva nova.

 

Chegado ao parque, Riabóvitch espreitou pelos gradis. No parque, silêncio e escuridão... Só se enxergavam os troncos brancos das bétulas mais próximas e um bocado da alameda, o resto era uma massa escura. Riabóvitch, que escutou e espreitou ansiosamente um bom quarto de hora, sem chegar a ouvir o mínimo som, sem ver a mais ténue luzinha, arrastou-se de volta...

 

Aproximou-se do rio. Ergueu-se-lhe pela frente o bran­co do barracão de banhos do general e uns lençóis dependurados nas guardas do pontão de madeira... Subiu ao pontão, ficou ali parado e apalpou, por nada, um lençol. Era áspero e frio. Olhou para baixo, para a água... O rio corria silencioso e rápido, só murmurando imperceptivelmente em redor dos espeques do barracão. A lua vermelha reflectia-se perto da margem esquerda; pequeninas ondas serpenteavam por cima da imagem da lua, esticavam-na, deformavam-na, rasgavam-na em pedaços, como se quisessem arrastá-la com elas...

 

«Que estupidez! Que estupidez! - pensava Riabóvitch olhando para a água corredia. - Que pouco inteligente é tudo isto!»

 

Agora que não esperava nada, a história do beijo, a impaciência, as vagas esperanças e a desilusão mostravam-se-lhe à luz clara. Já não estranhava que o cavaleiro do general se não mostrasse, nem nunca chegasse a ver a que um dia, por acaso, lhe dera um beijo destinado a outro; ao contrário, seria estranho se alguma vez a visse...

 

A água corria, sabe-se lá para onde e para quê. Assim corria em Maio; em Maio, desaguara de um riacho para o rio grande, do rio grande para o mar, do mar para as nuvens, nas nuvens fez-se chuva e talvez, agora, essa mesma água corresse outra vez diante dos olhos de Riabóvitch... Porquê? Para quê?

 

E todo o mundo, toda a vida pareceram a Riabóvitch uma brincadeira incompreensível, sem sentido... Desviando os olhos da água e lançando-os para o alto, voltou a lembrar-se como o destino, na pessoa de uma mulher desconhecida, o aconchegara sem querer; lembrou os sonhos e as imagens estivais: e a vida caiu-lhe em cima, miserável, incrivelmente aborrecida e incolor...

 

Quando voltou à izbá não encontrou nenhum dos companheiros. O ordenança informou-o que tinham ido todos a casa do «general Fontriábkin», tinha vindo buscá-los um cavaleiro... Por um instante, acendeu-se no peito de Riabóvitch uma alegria. Apagou-a imediatamente, deitou-se na cama e, para fazer pirraça ao destino, como que para o irritar, não foi a casa do general.

 

 

TCHÉKHOV, A. P, "Sobránie Sotchinéni V12 tomakh" ("Colectânea de Obras" em 12 volumes", fixação de texto e notas de M. Eriómin, Ed. Pravda, Moscovo, 1985, vol 6, pp. 258-276.


 

Notas

 

1Eugenia Maria de Montijo de Cusmán, condessa de Teba, mulher de Napoleão III; imperatriz dos Franceses de 1853 a 1870, nasceu em Granada, em 1826, e morreu em Madrid em 1920. (N. da T.)

 

2Izbá - casa típica dos camponeses russos, feita de troncos.

 

3Véstnik Evrópi («Noticiário da Europa») - revista mensal político-literária, editada em S. Petersburgo de 1866 a 1918.

 

4Antigas adagas cossacas. A chachka cossaca, lâmina conhecida pe­los turcos como yataghan, esteve na origem da adaga-de-orelhas, que veio a ser associada em larga escala à realeza.

 

(in FICÇÕES, Revista de Contos, Nº. 1, Abril, 2000)


      

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links