Segunda-feira, 11 de Abril de 2011

Um poema, uma época - por Carlos Loures

 

 

 

Um texto, mesmo não sendo uma obra-prima, pode dizer-nos muito sobre uma época.

 

Os poemas, como qualquer outro trabalho literário, devem explicar-se por si mesmos. Porém este, que escrevi em 1966 e que, antes de publicar em livro, saiu no Artes e Letras, suplemento literário do Notícias de Guimarães dirigido pelo meu amigo Santos Simões, merece alguma reflexão, não pelo valor literário, mas pelas revelações que nos faz sobre a vida dos intelectuais antifascistas nesses já distantes anos sessenta. Digamos que, para além da sua função literária, através
das numerosas referências, nos pode ajudar a reconstruir um cenário plausível daqueles anos 60. O Maio de 1968 estava próximo e esse sopro perpassa pelo texto.

 

Mas, vamos ler o poema:

 

Eine kleine Nachtmusik

 

 (Do diário de um estratega)

 

Sou aquilo a que Vailland chamava

 

um estratega do século dezassete

 

- aprendi a avançar retirando

 

a combater onde o inimigo não esteja

 

Por isso

 

mais uma vez virei pelo crepúsculo

 

e tu acenderás as luzes da sala

 

porás um disco a girar e deixaremos

 

que Mozart nos envolva nas suas espirais

 

falaremos de literatura erótica

 

de poesia espacialista de música serial

 

de informalismo holandês do que quiseres

 

Não    descansa   amor

 

da fome e da opressão não falarei

 

nem desse bairro de lata que se vê da janela

 

do teu décimo terceiro andar

 

Serei amável beberemos uísque

 

tiraremos Mozart que começa a incomodar

 

e poremos mesmo um desses discos

 

que não mostras aos amigos da inteligentzia

 

dançaremos talvez

 

viremos até à varanda ver as estrelas

 

tu nomearás as constelações

 

como tanto gostas de fazer

 

fumaremos tabaco americano

 

serei amável até ao fim  amor

 

Depois quando sair pela madrugada

 

virei  a pé até ao meu quarto de pensão

 

olharei o espelho quebrado sobre o lavatório

 

treparei pelas rugas do meu rosto

 

cicatrizes desta vida de estratega

 

fumarei um mau cigarro

 

e irei para a cama ler

 

o último número de uma revista estrangeira

 

e progressista.

 

 Num dos seus romances, acho que em  Drôle de jeu,  Roger Vailland, que morrera em Maio de 1965, caracterizava de forma irónica a estratégia militar 

do século XVII que, basicamente, consistia em flanquear as forças adversárias, evitando-se o choque frontal que, desde a Antiguidade,  caracterizava as grande batalhas. O narrador é, pois, um homem que não enfrenta os problemas – flanqueia-os. Esclareço que, mais do que autobiográfico ou confessional, o poema é um exercício ficcional, criando uma personagem que, embora consciente da realidade do seu tempo, pactua com o duplo fingimento com que uma certa camada da burguesia cobria uma realidade de opressão política e social, de bairros de lata que, podem ser vistos dos apartamentos onde se bebe uísque, se fala de cultura e, por vezes, até se fala de opressão política, social, de bairros da lata…

  

Há depois referências muito datadas – a literatura erótica, que alude à Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica que apreendida, deu amargos de boca a Natália Correia e a Luiz Pacheco. Editada naquele ano de 1966, proibida, era no entanto lida e recitada nas reuniões de gente bem pensante. A alusão ao espacialismo, movimento lançado pelo argentino Lucio Fontana, a música serial ou dodecafonismo que nos levava até Arnold Schönberg, o informalismo ou arte informal, tendência da arte abstracta de que Karel Appel, um artista de Amesterdão, era um dos expoentes (vemos acima um dos seus quadros).


Em fundo, o intemporal Mozart, sempre do gosto das vanguardas. Lá fora eram os bairros de lata, a guerra colonial, a polícia política…

 

Como se sabe, as generalizações são uma forma de terrorismo intelectual que todos devemos evitar. Porém, muito do que estamos hoje a sofrer nas mãos de uma classe política de má qualidade, foi forjado nesses anos, por gente que era de direita, de esquerda, ou de extrema esquerda, por opções que nada tinham a ver com razões profundas. Meras posições intelectuais - «opções de classe», que burgueses, profissionais liberais ou estudantes universitários na sua maioria, assumiam, justamente revoltados por não pderem exprimir livremente as suas ideias. Mas, afinal, era só isso que pretendiam -liberdade de expressão. Aí os temos agora no poder – todos diferentes todos iguais.

 

O narrador, sabe que as coisas são assim e prevê, de certo modo, o que se irá passar. Distancia-se, mas é um estratega do século XVII e por isso evita os choques frontais. Pactua, transige e escreve.

 

Um texto pode dizer-nos muito sobre uma época.

 

 

publicado por Carlos Loures às 12:00
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