Terça-feira, 5 de Abril de 2011

O Mistério da Árvore - Raul Brandão

 

Quem conta um conto...

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Raul Brandão  O Mistério da Árvore

 

 

Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fu­gia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.

 

Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca.

 

Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabe­ça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada dian­te do Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino. Nem uma folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca.

 

No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipita­dos, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lajes duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...

 

Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se naquela terra praguenta, ela en­volta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vesti­dos, vieram enlaçados com a Primavera, cobrindo a ter­ra erma, que calcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as ma­cieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar.

 

Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estre­mecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Que­ria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fra­gas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta — fora-o sempre — e os seus frutos cadá­veres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia sé­culos que servia de forca.

 

Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmú­rios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvo­res luminosos. Punha-se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar...

 

Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entrou um bafo novo: cheiravam a sol e à lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro e, pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore.

 

Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram ex­traordinariamente belos, mas deles irradiava uma for­ça imensa — daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais dian­te de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor!

 

Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apode­raram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta — olhos nos olhos, mãos nas mãos...

 

 

 

 

Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois haviam sido enforcados mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos de­certo. Em vão reduzira tudo a cinzas — por baixo das cinzas latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores falassem!, se as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chalrava. perdia-se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes, mais vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folhas. que o vento chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara despir para sempre as árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sus­surro da vida — como se ele não tivesse mandado espe­zinhar a vida!... Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria ele também ser a macieira, mendigo, húmus?, transformar a dor em felicidade?, beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh, como odiava a mocidade, a ternura, os lábios moços que se beijam!...

 

Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore que no seu reino servia de forca.

 

Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantas­ma triste e enorme, negro como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria alma — a árvore desme­dida que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a tingir-se de violeta, as árvores a azular, e a for­ca, em que se absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia séculos perdera a seiva e a vida.

 

Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que se pen­diam enforcados cheiinho de flor. Dura e má como as pragas juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro — era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços haviam sido enforcados muitos des­graçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de afli­ção. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, Primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte — e naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a Primavera e o noi­vado da terra — a árvore maldita que desde séculos ser­via de forca.

 

(in Raul Brandão, Obras Completas, Círculo de Leitores)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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