Sábado, 26 de Março de 2011

Cartas da Terra 6 - Mark Twain

Mark Twain  Cartas da Terra - A Arca (continuação)

 

(tradução de Miguel Batista)

 

 

 

CARTA VI


No terceiro dia, por volta do meio-dia, descobriu-se que ti­nha ficado uma mosca para trás. A viagem de regresso revelou-se longa e difícil, por conta da falta de uma carta de marear e de uma bússola, e devido à configuração alterada de todas as costas, pois a subida constante da água tinha submergido alguns dos pontos de referência mais baixos e dado um aspecto pouco fa­miliar aos mais altos; mas, ao fim de dezasseis dias de zelosa e fiel busca, a mosca foi enfim encontrada e recebida a bordo com hinos de louvor e gratidão, com a Família entretanto desco­berta, em sinal de reverência pela sua origem divina. Estava can­sada e moída, e tinha sofrido um pouco por causa do tempo, mas, fora isso, encontrava-se em bom estado. Os homens e as suas famílias haviam morrido de fome em cumes de montanha áridos, mas a ela não faltara alimento, com os inumeráveis cadá­veres a fornecerem-no numa fétida e pútrida riqueza. A ave sa­grada foi deste modo providencialmente preservada.

 

Providencialmente. É esta a palavra. Porque a mosca não ti­nha sido deixada para trás por acaso. Não, a mão da Providência andava ali metida. Não há acasos. Todas as coisas que acon­tecem, acontecem com uma finalidade. Estão previstas desde o princípio dos tempos, estão destinadas desde o princípio dos tempos. Desde a aurora da Criação que o Senhor tinha previsto que Noé, alarmado e confuso com a invasão dos prodigiosos fósseis oficiais, fugiria prematuramente para o mar desprovido de uma determinada doença de enorme valor. Estaria na posse de todas as outras doenças e poderia distribuí-las entre as novas raças de homens, à medida que elas fossem aparecendo no mun­do, mas faltar-lhe-ia a melhor de todas: a febre tifóide, uma doença que, quando as circunstâncias são especialmente favorá­veis, tem a capacidade de destruir completamente um paciente, sem o matar -, pois pode voltar a pô-lo de pé com uma longa vida dentro de si, ainda que surdo, mudo, cego, aleijado e idiota. A mosca-doméstica é o seu principal disseminador e é mais competente e calamitosamente eficaz do que todos os demais distribuidores do temível flagelo juntos. E, portanto, por predes­tinação desde o princípio dos tempos, esta mosca foi deixada pa­ra trás para procurar um cadáver tifóide e se alimentar da sua corrupção e infeccionar as suas pernas com germes e transmiti-los ao mundo repovoado como sua actividade permanente. Da­quela única mosca, nas épocas que desde então transcorreram, milhares de milhões de leitos de doença foram abastecidos, mi­lhares de milhões de corpos destruídos foram enviados para cambalear pela Terra, e milhares de milhões de cemitérios foram reforçados com mortos.

 

É deveras difícil compreender o temperamento do Deus da Bíblia; é uma tal confusão de contradições, de instabilidades aguadas e firmezas de ferro; de princípios abstractos e santarrões feitos de palavras e de outros, concretos e infernais, feitos de ac­tos; de bondades fugazes que o arrependimento converteu em permanentes malignidades.

 

Contudo, quando após muita perplexidade se alcança a cha­ve do Seu temperamento, ao menos chega-se enfim a uma espé­cie de compreensão do mesmo. Com uma franqueza assaz bizar­ra e juvenil e surpreendente, foi Ele próprio a fornecer essa chave. É ciúme!

 

Espero que isto vos faça ficar de boca aberta. Estais cientes - pois já vos contei isso numa carta anterior — de que, entre os seres humanos, o ciúme é declaradamente considerado uma fra­queza; uma imagem de marca de espíritos mesquinhos; uma pro­priedade de todos os espíritos mesquinhos; todavia, uma proprie­dade da qual até o mais mesquinho de todos se envergonha - e, quando acusado da sua posse, mentirosamente a negará e, me­lindrado, tomará a acusação como um insulto.

 

Ciúme. Não o esqueceis, tende-o presente. É a chave. Com ela, ireis em parte compreender Deus à medida que formos avançando; sem ela, ninguém O pode compreender. Como vos disse, Ele próprio ergueu abertamente esta chave para que todos a vissem. E Ele diz ingenuamente, com franqueza e sem sugestão de embaraço: «Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento.»

Estais a ver, é só outra maneira de dizer: «Eu, o Senhor vos­so Deus, sou um Deus mesquinho - um Deus mesquinho, e ir­ritável com coisas pequenas.»

 

Era um aviso que Ele estava a dar: não suportava a ideia de que outro Deus qualquer recebesse alguns dos cumprimentos dominicais desta cómica raçazinha humana — queria-os todos para Si. Estimava-os. Para Ele, eram riquezas, assim como o di­nheiro de lata o é para um zulu.

 

Mas esperai... não estou a ser justo — estou a apresentá-Lo erradamente; o preconceito está a suadir-me a dizer o que não é verdadeiro. Ele não disse que queria toda a adulação; nada dis­se sobre não estar disposto a partilhá-la com os demais deuses; o que Ele disse foi: «Não terás outros deuses diante de mim.»1

 

Isto é algo de bem diferente, e faz com se olhe para Ele com muito melhores olhos, confesso-o. Havia uma abundância de deuses, as florestas estavam cheias deles até aos olhos, como se costuma dizer, e tudo o que Ele exigia era ser colocado tão alto quanto os outros - não acima de nenhum deles, mas também não abaixo de nenhum deles. De boa vontade aceitaria que eles fertilizassem virgens terrenas, mas não com melhores condições do que as que Ele pudesse ter para Si, quando chegasse a Sua vez. Ele queria ser considerado Seu igual. Nisto, Ele insistia, e na linguagem mais clara: não teria outros deuses diante dele. Eles podiam marchar lado a lado com Ele, mas nenhum deles podia encabeçar a procissão, e Ele não reclamava o direito de ser Ele próprio a fazê-lo.

Julgais que Ele foi capaz de se manter fiel a essa justa e hon­rosa posição? Não. Ele conseguia seguir uma má resolução para todo o sempre, mas era incapaz de seguir uma boa por mês. Em breve, pôs mais esta de lado e declarou calmamente ser o único Deus em todo o universo.

 

Como eu estava a dizer, o ciúme é a chave — através da his­tória dele, Ele está presente, é proeminente. É a carne e o sangue da Sua disposição, é a base do Seu carácter. A mais pequena das coisas pode desmanchar-lhe a compostura e desordenar-lhe a ca­pacidade de julgar, se tocar no ponto fraco do Seu ciúme! E na­da anima este traço tão rapidamente, tão garantidamente e tão exageradamente como a suspeita de que algum tipo de competi­ção com o Cartel divino esteja iminente. O medo de que, se co­messem do fruto da Arvore do Conhecimento, Adão e Eva pas­sassem a «ser como deuses» ateou de tal maneira o Seu ciúme que a Sua razão foi afectada, e Ele não mais pôde tratar aquelas pobres criaturas de forma justa ou caritativa, ou até abster-se de lidar de modo cruel e criminoso com a sua inocente posteridade.

 

Até hoje, a Sua razão nunca recuperou daquele choque - um furioso pesadelo de vingança vem-no possuindo desde en­tão, e Ele quase que arruinou o Seu engenho natural ao inventar dores e infortúnios e humilhações e desgostos por meio dos quais pudesse amargurar as vidas breves dos descendentes de Adão. Pensai nas doenças que engendrou para eles! São inume­ráveis - nenhum livro consegue nomeá-las a todas. E cada uma delas é uma cilada, armada a uma vítima inocente.

 

O ser humano é uma máquina. Uma máquina automática. É composto de milhares de mecanismos complexos e delicados, que executam as suas funções com perfeição e harmonia, em conformidade com leis ideadas para o seu governo e sobre as quais o próprio homem não tem autoridade, domínio ou contro­lo. Para cada um destes milhares de mecanismos, o Criador pla­neou um inimigo cuja função é molestá-lo, atazaná-lo, persegui-lo, danificá-lo, afligi-lo, como dores, misérias e, enfim, destruição. Nenhum desses mecanismos foi ignorado.

 

Do berço à cova, estes inimigos estão sempre ocupados — não conhecem descanso, noite ou dia. São um exército: um exér­cito organizado; um exército sitiante; um exército atacante; um exército alerta, vigilante, impaciente, sem misericórdia; um exér­cito que nunca abranda, que nunca dá tréguas.

 

Desloca-se em pelotão, em companhia, em batalhão, em re­gimento, em brigada, em divisão, em corpo de exército - às ve­zes congrega as suas partes e avança sobre a humanidade com toda a sua força. É o Grande Exército do Criador, e Ele é o Co-mandante-Chefe. Na sua linha avançada, de longo a longo, hediondos pendões agitam as suas lendas em face do Sol: Catás­trofe, Doença, e as demais.

 

Doença! Esta é a força principal, a força diligente, a força devastadora! Ataca o bebé no momento em que ele nasce, provê-o de um padecimento atrás de outro: crupe, sarampo, papei­ra, problemas intestinais, dores de dentição, escarlatina e outras especialidades da infância. Persegue a criança até à mocidade e provê-a de algumas especialidades para esse período da vida. Persegue o jovem até à maturidade, da maturidade até à velhice e da velhice até à cova.

 

Com estes factos perante vós, tentaríeis agora adivinhar a principal alcunha carinhosa dada pelo homem a este feroz Comandante-Chefe? Vou poupar-vos o trabalho - mas não vos deveis rir: é Pai Nosso no Céu!

 

É curioso — o modo como a mente humana funciona. O cristão começa com esta asserção clara, esta asserção definiti­va, esta asserção inflexível e intransigente: Deus é omnisciente e omni­potente.

 

Sendo este o caso, nada pode acontecer sem Ele saber de antemão que essa coisa vai acontecer; nada acontece sem a Sua permissão; nada pode acontecer que Ele decida não permitir.

 

Isto é definitivo quanto baste, não é? Faz com que o Criador seja claramente responsável por tudo o que acontece, não faz?

 

O cristão admite-o naquela frase em itálico. Admite-o com convicção, com entusiasmo.

 

Então, tendo feito do Criador responsável por todas as do­res e doenças e misérias supraditas, que aquele poderia não ter permitido, o prendado do cristão chama-lhe lisonjeiramente «Nosso Pai»!

 

É como vos digo. Ele equipa o Criador com todos os traços que entram na feitura de um demónio e depois chega à conclu­são de que um demónio e um pai são a mesma coisa! E, no en­tanto, negaria que um lunático malevolente e um director de ca­tequese são essencialmente a mesma coisa. O que achais vós da mente humana? Quer dizer, no caso de achardes que há uma mente humana.

 

_____________ 

 1. A maioria dos excertos bíblicos constantes desta tradução pertence à Bíblia Sagrada edi­tada pela Difusora Bíblica (Lisboa/Fádma, 2000). Contudo, por razões de proximidade com o original, por vezes tornou-se necessário citar uma outra versão, no caso a das Edi­ções Paulinas (São Paulo, 1971). É o que acontece aqui. (N. do T.)

 

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)

 


 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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