Sexta-feira, 25 de Março de 2011

Cartas da Terra 5 - Mark Twain

Mark Twain Cartas da Terra - A Arca

 

(tradução de Miguel Batista)

 

(e Noé encheu o barco...a arca)

 

 

 

CARTA V

 

 

 

Noé começou a reunir animais. Era para haver um casal de toda e qualquer criatura que andasse ou rastejasse, nadasse ou voasse, no mundo da natureza animada. Temos de tentar adivi­nhar quanto tempo levou a reunir todas as criaturas e quanto é que isso custou, uma vez que não há registo dessas minúcias. Quando Símaco tratou dos preparativos para iniciar o seu jovem filho na vida adulta na Roma Imperial, enviou homens à Ásia, a África e a toda a parte para reunirem animais para os combates na arena. Demorou aos homens três anos a acumular os animais e a trazê-los até Roma. E tratava-se tão-somente de quadrúpedes e jacarés, como compreendereis; não havia cá aves, cobras, rãs, minhocas, piolhos, ratos, pulgas, carraças, lagartas, aranhas, moscas-domésticas, mosquitos — só puros e simples quadrúpe­des e jacarés, e nenhum quadrúpede que não fosse de combate. Não obstante, é como eu disse: levou três anos a reuni-los, e o custo dos animais e do transporte e do salário dos homens tota­lizou quatro milhões e quinhentos mil dólares.

 

Quantos animais eram? Não sabemos. Mas eram menos de cinco mil, pois esse foi o maior número jamais reunido para aqueles espectáculos romanos, e foi Tito, e não Símaco, que fez essa colectânea. Comparados com a empreitada de Noé, não passavam de museus miúdos. Só de aves e animais terrestres e criaturas de água doce, ele tinha de reunir cento e quarenta e seis mil espécies, além de para cima de dois milhões de tipos de insectos.

 

Milhares e milhares destes bichos são muito difíceis de apa­nhar, e, se Noé não tivesse desistido e parado, ainda hoje estaria de roda daquilo, como costumava dizer Levítico. Contudo, não quero com isto dizer que ele renunciou; não, ele não o fez. Reu­niu todas as criaturas para as quais tinha espaço e então é que parou.

 

Se ele estivesse a par de todos os requisitos desde o início, teria ficado desde logo ciente de que o que era necessário era uma frota de arcas. Mas ele não sabia quantas espécies de criatu­ras havia, tal como o seu Chefe não sabia. Por isso não tinha ne­nhum canguru, nenhum opossum, e nenhum monstro-de-gila, e nenhum ornitorrinco, e faltava-lhe um sem-número de outras bênçãos indispensáveis que um Criador amoroso proporcionara ao homem e das quais depois se esquecera, visto que elas há muito haviam deambulado para um lado deste mundo que ele nunca vira e de cujos afazeres não estava ao corrente. E, por conseguinte, só por um triz é que todas elas não se afogaram.

 

Só escaparam por acaso. Não havia água que chegasse para tudo. Só tinha sido fornecida a suficiente para inundar um pe­queno canto do globo — o resto do globo não era então conhe­cido, e julgava-se que fosse inexistente.

 

Contudo, aquilo que real e final e definitivamente fez com que Noé decidisse parar, tendo já espécies suficientes para fins puramente comerciais, deixando assim que as outras se extin­guissem, foi um incidente ocorrido nos últimos dias: um foras­teiro agitado chegou trazendo notícias extremamente alarmantes. Disse que estivera a acampar no meio de algumas montanhas e vales, a cerca de mil quilómetros de distância, e que ali vira uma coisa prodigiosa: estava à beira de um precipício com vista para um extenso vale onde divisou um mar de estranha vida animal, negro e encapelado, a aproximar-se. Passado pouco tempo, as criaturas passaram por ele, debatendo-se, lutando, bulhando, guinchando, bufando — uma imensa e horrível mole de

carne tumultuosa! Preguiças do tamanho de elefantes; rãs do tamanho de vacas; um megatério e o seu harém, inacreditavelmente gigan­tescos; sáurios e sáurios e sáurios, grupo após grupo, família após família, espécie após espécie — com trinta metros de com­primento, dez metros de altura, e duas vezes mais conflituosos: um deles deu uma pancada com a cauda num touro de Durham, perfeitamente inculpado, e mandou-o ao ar, com um assobio, a uma altura de quase cem metros, e ele caiu ao pés do homem com um gemido e deixou de existir. O homem disse que esses prodigiosos animais tinham ouvido falar da arca e vinham a ca­minho. Vinham para se salvarem do dilúvio. E não vinham em casal, vinham todos: eles não sabiam que os passageiros estavam limitados a casais, disse o homem, e, de qualquer modo, também se estariam a marimbar para as regras — iriam zarpar naquela Arca, ou alguém ia ter de lhes explicar porquê. O homem disse que a Arca não aguentaria nem metade deles — e, além disso, eles vinham com fome e devorariam tudo o que lhes aparecesse à frente, incluindo a colecção de animais e a família.

 

Todos estes factos foram suprimidos do relato bíblico. Não encontrareis uma alusão que seja a eles por lá. A cena inteira foi abafada. Nem sequer os nomes daquelas enormes criaturas são mencionados. Isto mostra-vos que, quando alguém deixa uma lacuna repreensível num contrato, pode ser tão desonesto em re­lação a isso em Bíblias como noutro sítio qualquer. Aqueles po­derosos animais seriam de inestimável valor para o homem nos dias de hoje, nos quais o transporte é tão solicitado e tão caro, mas todos eles estão perdidos para ele. Todos eles perdidos, e por culpa de Noé. Afogaram-se todos. Alguns deles já há oito milhões de anos.

 

Muito bem, então o estranho contou o que tinha para con­tar, e Noé viu que tinha de se ir embora antes de os monstros chegarem. Teria zarpado de imediato, mas os estofadores e os decoradores da sala de estar da mosca-doméstica ainda tinham alguns acabamentos para fazer, o que o fez perder um dia. Per­deu-se outro dia a pôr as moscas a bordo, pois havia sessenta e oito mil milhões delas, e a Divindade ainda estava com receio de que não fossem suficientes. Perdeu-se outro dia a estivar qua­renta toneladas de porcaria para sustento das moscas.

 

Depois disso, enfim Noé zarpou — e foi mesmo na altura certa, pois a Arca tinha acabado de desaparecer no horizonte, quando os monstros chegaram e juntaram os seus lamentos aos da multidão de pais e mães chorosos e de criancinhas assustadas que, debaixo da chuva torrencial, se agarravam às rochas batidas pelas ondas e faziam ascender preces suplicantes a um Ser Todo-Justo e Todo-Clemente e Todo-Compassivo que nunca res­pondera a qualquer prece desde que aqueles rochedos haviam sido construídos, grão após grão tirado das areias, e que conti­nuaria sem responder a nenhuma, quando as eras fizessem com que eles se desmoronassem e voltassem a ser areia.

 

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)


 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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