Celebra-se amanhã o Dia Mundial da Poesia. Mais um daqueles «dias» de que não gosto. Esta moda dos «dias», quando não é pura operação de marketing, parece-me ser uma maneira de pagar dívidas – o dia da mulher, maltratada e secundarizada ao longo dos tempos, o dia dos direitos humanos, permanentemente esquecidos e violados… Uma maneira de pagar dívidas com moedas falsas, digamos. O dia da poesia, não foge à regra – numa sociedade cada vez mais prosaica e utilitária, cada vez mais voltada para o ter, em detrimento do ser, o dia da poesia surge como uma compensação mal amanhada ao desprezo a que a arte poética é votada. Mas, podemos aproveitar o ensejo para abordar o tema do papel da poesia e do lugar do poeta na sociedade dos nossos dias.
Há meses atrás, a propósito da “maratona poética” que realizámos, interrogava-me se os poetas seriam ladrões de fogo ou artífices do verbo? Ladrões de fogo” foi uma expressão de Jean-Arthur Rimbaud que usei num texto que publiquei no terceiro número da revista “Pirâmide”. Nesse texto comparava os poetas a Prometeu. O poeta é um ladrão de fogo, um mago. Pelo poder da palavra cria a beleza para a ofertar aos homens. A comparação faz sentido, é sugestiva, mas talvez haja outra, menos bela, mas não menos verdadeira, pois o poeta produz esta magia usando palavras comuns. A capacidade de, com palavras usadas no dia a dia, construir um poema, pode conduzir-nos à tal conclusão, complementar da primeira – além de mago, o poeta é um artífice.
A comparação com Prometeu trazendo o fogo do Olimpo para a Terra ou, como também já li algures, com Orfeu enfeitiçando a natureza, homens, animais e plantas, com o seu canto melodioso, é muito bonita. Mas equipará-lo a um trabalhador leva-nos a uma imagem, menos “poética” no sentido convencional, mas mais integradora da arte poética no quotidiano.: o poeta é um artífice. A expressão «artes e ofícios» tem aqui pleno cabimento - o poeta é, portanto, um homem comum, um artista como um sapateiro ou um alfaiate o são. Em vez de cabedal ou de tecido, usa palavras, sentimentos e conceitos como matéria prima.
Porque, na verdade, a divinização do poeta, isola-o e condena-o ao ostracismo. Ora um poeta, um escritor, um artista deveria ter uma função na sociedade. Como teve. Bem sei que na Pré-História não havia televisão, nem blogues, mas quem, nas sociedades primitivas dispensaria que à noite, acabadas as tarefas diárias, se contassem histórias? Podemos puxar pela imaginação: o fulgor das labaredas das fogueiras cria sombras sinistras nas paredes da caverna. O poeta, o contador de histórias descreve as peripécias da caçada, as crianças aconchegam-se temerosas às mães e as passagens mais excitantes da narrativa são sublinhadas com gritos de medo ou com um rumor de assentimento. Esse contador de histórias, o aedo da Grécia, bardos, jograis, trovadores, tiveram a mesma tarefa de um poeta, ou de um escritor dos nossos dias – efabular a realidade e devolvê-la, valorizada pelo verbo, aos seus protagonistas - os homens comuns. Não me digam que isto não é um trabalho.
Vejo persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas e ideias imprecisas. Ora, na minha maneira de ver, a poesia nada tem a ver com essa indefinição. Ela é, tal como o sonho na “Pedra Filosofal” como diz o Gedeão . "uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” e o poeta, um trabalhador tão necessário como todos os outros. Claro, há grande poesia intimista, que ao dar-nos conta da dor, da angústia do indivíduo que a confessa, nos torna conscientes das nossas próprias dores e angústias. Não estou a querer reduzir o território da poesia. Estou a retirá-lo das regiões etéreas e a trazê-lo para o mundo dos homens.
Um dos sortilégios da poesia é explicar num verso o que, de outra maneira, só pode ser dito em muitas palavras. Mais do que mil explicações que aqui desse, há um poema de Gabriel Celaya (La Poesía es un Arma Cargada de Futuro) onde o que, para mim, a poesia deve ser cabe em quatro versos:
Poesía para el pobre, poesía necesaria
como el pan de cada día,
como el aire que exigimos trece veces por minuto,
para ser y en tanto somos dar un sí que glorifica.
E, noutros quatro versos, diz também o que entendo que a poesia não deve ser:
Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse
Mas é melhor ouvirmos todo o poema na voz de Paco Ibañez:
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
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. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
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