Zona euro: uma organização deficiente
A zona euro teria podido ser menos atingida que os Estados Unidos ou que o Reino Unido pela crise financeira. Os sistemas financeiros nesta zona são mais arcaicos. As famílias estão na zona euro claramente menos envolvidas nos mercados financeiros. O euro teria podido ser um factor de protecção contra a crise financeira mundial. A taxa de câmbio fixa entre as moedas europeias eliminou um dos maiores factores da instabilidade. No entanto, não foi nada assim: a Europa foi mais duramente atingida e mais está prolongadamente afectada pela crise que o resto do mundo. Em 2010, o défice público global da zona euro (6% do PIB) é inferior ao dos Estados Unidos (11,%) ou ao do Reino Unido (10,5%). No entanto, praticamente todos os países da zona euro estão sob a pressão de Procedimento de défice excessivo. No entanto, ainda assim, os mercados continuam a especular contra certos países da zona, impondo-lhes taxas de juro insustentáveis, apesar da garantia do BCE e do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FESF).
Esta situação explica-se pelas próprias modalidades da União Monetária. As instâncias europeias estão centradas, desde a criação do euro, sobre o respeito do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) que devia impor aos países constrangimentos nas suas finanças públicas que não têm nenhum significado económico. Não foram capazes de impulsionar uma estratégia coerente na zona. Desde a criação do euro, os desequilíbrios aumentaram entre os países do Norte (Alemanha, Áustria, Países Baixos, países escandinavos), que contiveram os seus salários e as suas procuras internas assim como acumularam excedentes externos, e os países do Sul (Espanha, Grécia, Irlanda), que conheciam um crescimento vigoroso, impulsionado por taxas de juro baixas relativamente à taxa de crescimento e que acumulavam défices externos.
De 1999 para 2007, os mercados não se preocuparam com o aumento das disparidades da taxa de inflação na zona. Em Junho de 2007, as taxas de juro a 10 anos iam de apenas de 4,5% na Alemanha a 4,65% para a Grécia e para a Itália.
Durante a crise, o forte aumento das dívidas e dos défices públicos não provocaram aumentos das taxas de juro de longo prazo à escala mundial, antes pelo contrário, estas baixaram, os mercados estimavam que as taxas monetárias (a curto prazo) continuariam a ser baixas e durante muito tempo, uma vez que a depressão era tal que não havia risco de inflação ou de sobreaquecimento.
A partir daí, a partir de meados de 2008, os mercados deram-se conta de uma falha na organização da zona euro. Enquanto que os governos dos outros países desenvolvidos não podem declarar-se em situação de falência porque podem sempre ser financiados pelo seu Banco Central, se necessário pela criação monetária, os países da zona euro renunciaram a esta possibilidade. O BCE está proibido de refinanciar os Estados e o artigo 125 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia proíbe a solidariedade financeira entre os Estados-Membros. De imediato, o financiamento dos países da zona euro depende dos mercados financeiros e isto não está assegurado. A especulação pôde desencadear-se sobre aos países mais frágeis da zona: Grécia, Espanha, Irlanda, os países que tinham conhecido um forte crescimento antes da crise, mas que deviam alterar o seu modelo de crescimento. A crise financeira é transformada numa crise da zona euro.
O desenvolvimento da especulação sobre a dívida dos países desenvolvidos é paradoxal e perigoso. Desde 1945, nenhum país desenvolvido ficou numa situação de não cumprimento sobre a sua dívida pública. Os mercados especulam sobre um risco que nunca se materializou. Certamente, a situação alterou-se, dado que a independência dos bancos centrais (e em especial do BCE) poderia conduzir a situações inéditas onde o Banco central recusaria vir em socorro do Estado do seu país em dificuldade. Mas esta situação nunca se produziu; a crise de 2007-2008 tem, pelo contrário, mostrado a capacidade dos Bancos centrais em intervir em caso de perigo. Como imaginar que um Banco central não intervenha para socorrer o seu país, como o fez para salvar os bancos?
A especulação foi facilitada pela actuação das agências de notação, que consideraram arriscadas as dívidas dos países do Sul da zona euro, ao mesmo tempo que nessa mesma altura o cenário em que um país da zona euro pudesse entrar em situação de incumprimento era a priori de uma probabilidade muito fraca. São as próprias agências de notação que reforçaram esta probabilidade. A avaliação financeira não é neutra: afecta o objecto medido, constrói o futuro que ela própria imagina. Assim as agências de notação financeiras contribuem largamente para determinar as taxas de juro nos mercados obrigacionistas ao atribuírem as suas notações, os seus ratings, concedidas com uma grande subjectividade - quando não há mesmo a vontade de alimentar a instabilidade - e são assim uma fonte de lucros especulativos. Quando as agências de notação - privadas - degradam a nota de um Estado, obrigam diversos investidores institucionais a deixarem de ter títulos da dívida deste Estado, ou a cobrirem-se no mercado de títulos, cobrindo-se do risco de incumprimento do país devedor com contratos de swaps (os CDS): esta cobertura faz aumentar a taxa de juro sobre os títulos da dívida pública deste Estado, e aumenta-a exactamente pelo risco de incumprimento que as agências de rating anunciaram. Um país pode ter uma dívida pública sustentável enquanto os mercados aceitarem emprestar-lhe a uma taxa de juro de 3 % por ano; mas a dívida torna-se insustentável se os mercados pedem 10%, porque então o país deve ter que criar um forte excedente primário, reduzindo as suas despesas públicas e aumentando os seus impostos. Este esforço faz cair o seu crescimento, reduz as suas receitas fiscais e pode paradoxalmente conduzir a um aumento do ratio dívida pública/PIB.
A especulação também foi facilitada pelo desenvolvimento do mercado dos CDS, que permitem especular sobre as dívidas públicas e privadas. Os gestores de fundos estão sucessivamente à procura de fontes de lucros elevados, superiores aos das actividades produtivas. Encontram-nas seja na criação de bolhas financeiras, seja na especulação, que é tanto mais rentável quanto mais voláteis são os mercados; os fundos especulativos ganham o dinheiro quer vendendo coberturas contra esta volatilidade, quer explorando as suas capacidades de reagir mais rapidamente que os outros intervenientes. As instituições financeiras encontraram uma nova fonte de lucros criando o mercado dos CDS sobre as dívidas soberanas dos grandes países que é um mercado especulativo, parasitário e destabilizador. Este mercado muito específico permite dinamizar o mercado dos títulos públicos, que outrora era relativamente inerte, mas não sem interesse para os especuladores. Permite especular sobre a falência dos Estados. Difundindo a ideia de se ter dúvidas quanto aos Estados soberanos poderem assumir os seus compromisso, os fundos especulativos obrigam os fundos de aplicações em títulos a cobrirem-se, o que permite aos fundos especulativos venderem a estes últimos CDS’s.
O mercado dos CDS permite a certos operadores ganharem dinheiro vendendo as referidas protecções contra o risco, os CDS’s, e vendem-nos sempre com a ideia de não terem que vir a assumir esses riscos (ou que pensam em nunca terem que os vir a assumir); outros fundos ganham dinheiro comprando protecções. É assim possível comprar protecções contra uma falência do Estado grego ainda que não se detenha nenhum título sobre a dívida pública grega. Estes últimos fundos, os hedge funds, especulam então sobre o aumento do risco - por exemplo, podemos comprar uma protecção a 5 anos e paga-se a protecção a 2%; entretanto aumenta o medo de incumprimento e o prémio de risco sobre a Grécia sobe e podemos revender essa protecção dois meses mais tarde a 3 ou 4 % - ou ainda, se a situação se complica , não vendem, se a Grécia for à falência ganhar-se-á uma boa indemnização sobre os títulos de dívida grega quando não se tem nenhum título sequer. Outros fundos podem jogar na baixa do risco ou mesmo na não falência do Estado grego (faço circular a ideia de que os CDS permitem a um prestamista assegurar-se, junto de um organismo que vende CDS, contra o risco de incumprimento do emprestador, quando não acredito mesmo nada na ideia que faço circular. Vendo CDS, recebo os prémios de risco e depois não há risco nenhum a executar. Ganhei, pois vendi uma segurança contra o risco quando não havia nada em risco). Os perdedores na operação são o Estado grego que deve pagar mais caro o seu endividamento, o que fragiliza ainda mais a sua situação orçamental, e também os fundos que já detinham títulos sobre a dívida grega, pois vêem-nos depreciar-se, devem-nos vender então a baixo preço ou então devem cobrir-se e gastar assim nessa protecção parte dos juros que os títulos rendem.
Os fundos que perderam dinheiro sobre os títulos gregos ou irlandeses sentem-se escaldados; rapidamente procuram vender os seus títulos espanhóis, portugueses, até mesmo italianos, belgas ou franceses. A crise é contagiante.
O risco é de fazer desaparecer o mercado da dívida soberana (a dívida emitida pelos Estados), como desapareceu, em grande parte, o mercado da dívida do Terceiro Mundo. Os fundos reclamarão taxas mais elevadas dado que os títulos públicos serão considerados como títulos arriscados. Os países sentem repugnância em endividar-se sabendo que com isso ficam colocados sob a dependência dos mercados; paradoxalmente, a finança internacional fará progressivamente desaparecer todos os mercados!
O risco é que amanhã, um país da zona euro, não possa aumentar mais o seu défice, com o medo de que os mercados provoquem um aumento das taxas de juro, sob o pretexto dos prémios de risco mais elevados. Este aumento das taxas tornaria impotente a política orçamental. Não se pode deixar que os mercados financeiros paralisem as políticas económicas, não se pode deixar que os incendiários dêem instruções aos bombeiros. Por outro lado, o risco de falência dos Estados deve ser nulo: o Banco Central deve sempre assumir que tem a obrigação de financiar os Estados, mesmo na zona euro. A zona euro terá que escolher entre dissolver-se ou mudar as suas instituições para assegurar a garantia da dívida pública dos seus Estados membros.