Sexta-feira, 18 de Março de 2011

O Desafio da Criação - Juan Rulfo

Ensaio

 


Juan Rulfo  O Desafio da Criação

 

 

Infelizmente, eu não tive quem me contasse histórias; na nossa aldeia, as pessoas são fechadas, sim, completamente, ali, uma pessoa é um estrangeiro.

 

Eles estão a conversar; sentam-se, à tarde, nos seus cadei­rões de verga a contar histórias e coisas dessas; mas assim que uma pessoa chega, ficam calados ou começam a falar do tempo: «hoje parece que vêm para aí nuvens...». Enfim, eu não tive essa fortuna de ouvir os mais velhos a contarem histórias; por isso, vi-me obrigado a inventá-las e eu creio, precisamente, que um dos princípios da criação literária é a invenção, a imaginação. Somos mentirosos; todo o escritor que cria é um men­tiroso, a literatura é mentira; dessa mentira, porém, sai uma recriação da realidade: recriar a realidade é, assim, um dos princípios fundamentais da

criação.

 
Considero que existem três passos: o primeiro destes é criar a personagem, o segundo, criar o ambiente onde essa persona­gem se vai mover e o terceiro é como essa personagem vai falar, como se vai exprimir. Estes três pontos de apoio são tudo o que é necessário para contar uma história; agora, eu tenho receio da folha em branco e, sobretudo, do lápis, porque eu escrevo à mão; mas quero dizer, mais ou menos, quais são os meus procedimentos de uma forma muito pessoal. Quando eu começo a escrever, não acredito na inspiração, nunca acreditei na inspiração, escrever é uma questão de trabalho; pormo-nos a escrever para ver o que é que sai e encher páginas e páginas para que, de repente, apareça uma palavra que nos dê a chave daquilo que há a fazer, do que é que aquilo vai ser. Às vezes acontece-me escrever cinco, seis ou dez páginas e não aparece a personagem que eu queria que aparecesse, aquela persona­gem viva que tem de se mexer por si própria. De repente, apa­rece e surge, e vamo-la seguindo, vamos atrás dela. À medida que a personagem adquire vida, já podemos, então, ver até onde vai; seguindo-a, somos levados por caminhos que desco­nhecemos mas que, estando ela viva, nos conduzem a uma rea­lidade, ou a uma irrealidade, se quiserem. Ao mesmo tempo, conseguimos criar aquilo que se pode dizer, aquilo que, afinal, parece que aconteceu, ou podia ter acontecido ou podia acon­tecer mas nunca aconteceu. Assim, creio eu, nesta questão da criação é fundamental pensar naquilo que sabemos, em que mentiras vamos dizer; pensar que, se entramos na verdade, na realidade das coisas conhecidas, naquilo que vimos ou ouvi­mos, estamos a fazer história, reportagem.

 

 

A mim, os meus conterrâneos criticaram-me muito, dizendo que conto mentiras, que não faço História, ou que tudo aquilo que digo ou escrevo, dizem eles, nunca aconteceu; e assim é. Para mim, o primordial é a imaginação; dentro desses três pon­tos de apoio de que falávamos antes, está a imaginação a cir­cular; a imaginação é infinita, não tem limites, e há que que­brar o círculo onde ele se fecha; há uma porta, pode haver uma porta de emergência e há que desembocar, há que sair por essa porta. Assim aparece outra coisa, que se chama intuição: a intuição leva-nos a pensar em algo que não aconteceu mas que está a acontecer na escrita. Concretizando, trabalhamos com: imaginação, intuição e uma aparente verdade. Quando isto se consegue, então conseguimos a história que queremos dar a conhecer: o trabalho é solitário, o trabalho colectivo na literatura é inconcebível, e essa solidão leva-nos a converter-nos numa espécie de médium de coisas que a própria pessoa desconhece, sem saber que somente o inconsciente ou a intuição a levam a criar e a continuar a criar. Creio ser esta, em princípio a base de todos os contos, de todas as histórias que queremos contar. Agora, há outro elemento, outra coisa muito im­portante também, que é querer contar algo sobre certos temas; sabemos perfeitamente que não existem mais do que três temas básicos: o amor, a vida e a morte. Não há mais, não há mais temas, pelo que, para captar o seu normal desenvolvimento, há que saber como tratá-los, que forma dar-lhes; não repetir o que outros disseram. Então, o tratamento que se dá a um conto leva-nos a dizer as coisas de outra forma, ainda que o tema tenha sido infinitamente tratado; estamos a contar a mesma coisa que foi contada desde Virgílio até não sei quem mais, os chineses ou quem quer que seja. Mas há que procurar o fundamento, a forma de tratar o tema, e creio que dentro da criação literária, a forma — chamam-lhe forma literária — é quem rege, quem determina que uma história tenha interesse e chame a atenção dos outros. Assim que se publica um conto ou um livro, esse livro está morto; o autor não volta a pensar nele. Pelo contrário, se não está completamente terminado, aquilo dá-lhe, constantemente, voltas na cabeça: o tema continua a rodar até que nos apercebemos, por experiência própria, de que não está concluído, de que há algo que ficou lá dentro; então, há que voltar a iniciar a história, há que ver onde está a falta, há que ver qual foi a personagem que não se moveu por si pró­pria. No meu caso pessoal, tenho a característica de me elimi­nar da história, nunca conto um conto em que haja experiên­cias pessoais ou haja algo de autobiográfico ou que eu tenha visto ou ouvido, tenho sempre de o imaginar ou recriar, se porventura existe algum ponto de apoio. Esse é o mistério, a cria­ção literária é misteriosa, mas o mistério é dado pela intuição; a própria intuição é misteriosa, e chegamos à conclusão de que se a personagem não funciona e o autor tem de a ajudar a sobreviver, então falha imediatamente. Estou a falar de coisas elementares, vocês devem perdoar-me, mas as minhas expe­riências foram estas, nunca relatei nada que tivesse acontecido; a minha base é a intuição e, dentro disso, surgiu o que é alheio ao autor. O problema, como vos dizia antes, é encontrar o tema, a personagem e aquilo que essa personagem vai fazer, como vai adquirir vida. Assim que a personagem é forçada pelo autor, é imediatamente enfiada num beco sem saída. Uma das coisas mais difíceis, que mais me custou fazer, é precisamente a eliminação do autor, eliminar-me a mim próprio. Eu deixo que aquelas personagens funcionem por si e não com a minha inclusão porque, nessa altura, entro na divagação do ensaio, na elucubração; uma pessoa chega e mete as suas próprias ideias, sente-se filósofa, enfim, e tenta, até, fazer crer na ideologia que tem, na sua maneira de pensar sobre a vida, ou sobre o mundo, sobre os seres humanos, sobre qual o princípio que movia as acções do homem. Quando isto acontece, tornamo-nos ensaistas. Conhecemos muitos romances-ensaio, muita obra literá­ria que é romance-ensaio; mas, regra geral, o género que menos se presta a isso é o conto. Para mim, o conto é um género realmente mais importante do que o romance, porque temos de nos concentrar numas quantas páginas para dizer muitas coisas, temos de sintetizar, temos de nos refrear; nisso, o contista parece-se um pouco com o poeta, com o bom poeta. O poeta tem de ir refreando o cavalo e não partir disparado: se dispara e escreve por escrever, as palavras saem-lhe umas atrás das outras e, então, pura e simplesmente, fracassa. O essencial é, precisamente, contermo-nos, não partirmos desenfreada­mente, não nos esvaziarmos; o conto tem essa particularidade; eu prefiro precisamente o conto ao romance, sobretudo porque o romance se presta muito a essas divagações.

 

O romance, dizem, é um género que abarca tudo, é um saco onde cabe tudo, cabem contos, teatro ou acção, ensaios filosó­ficos ou não filosóficos, uma série de temas com os quais se vai encher aquele saco; em contrapartida, no conto temos de redu­zir-nos, sintetizar e, em algumas palavras, dizer ou contar uma história. É muito difícil, é muito difícil que em três, quatro ou dez páginas se possa contar uma história que outros contam em duzentas páginas; esta é, mais ou menos, a ideia que eu tenho sobre a criação, sobre o princípio da criação literária; claro que não é uma exposição brilhante esta que vos estou a fazer, mas, falo-vos de forma muito elementar porque, na realidade, eu sou muito elementar, porque eu tenho muito medo dos intelectuais e por isso os tento evitar; quando vejo um intelectual, passo ao lado, e considero que o escritor deve ser o menos intelectual de todos os pensadores, porque as suas ideias e os seus pensamen­tos são coisas muito pessoais que não têm motivo para influir nos outros; não deve tentar influir nos outros, nem fazer o que ele quer que os outros façam; quando se chega a esta conclu­são, quando se chega a este lugar, ou chamemos-lhe fim, então uma pessoa sente que algo foi conseguido.

 

Como todos vocês sabem, não há nenhum escritor que escreva tudo aquilo que pensa, é muito difícil transpor o pen­samento para a escrita, creio que ninguém o faz, nunca nin­guém o fez, mas existem simplesmente muitíssimas coisas que, ao serem desenvolvidas, se perdem.

 

(in O galo de ouro e outros textos dispersos, Cavalo de Ferro)

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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