Segunda-feira, 14 de Março de 2011

A Vida Não É Muito Séria Nas Suas Coisas - Juan Rulfo

Quem conta um conto...

 

 

Juan Rulfo  A Vida Não É Muito Séria Nas Suas Coisas

 (tradução do castelhano de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu)

 

Juan Rulfo (1918-1986) impôs-se, no século XX, como

um nome grande da literatura mexicana. Tem obras

traduzidas em mais de 10 línguas, sendo Pedro Páramo o

seu romance mais conhecido. A maior parte dos textos deste

volume era inédita aquando da sua morte e muitos

deles foram escritos para guiões de filmes.  

 

 

 

 

 

Aquele berço onde Crispín dormia nessa época, era mais do que grande para o seu pequeno corpinho. Sem ainda conhecer a luz, visto que ainda não tinha nascido, ele dedicava-se apenas a viver no meio daquela escuridão e, sem o saber, a tornar cada vez mais lentos os passos que a sua mãe dava, ao caminhar pelos corredores, pela galeria e, às vezes, em algumas manhãs limpas, indo visitar o curral, onde ela se confortava, irritando as galinhas ao roubar-lhes os franguinhos e escondendo dois ou três debaixo do seio, talvez na esperança de que a vida do seu filho se tornasse menos aborrecida ao ouvir alguns dos ruí­dos do mundo.

 

Por outro lado, Crispín, apesar de já estar há oito meses lá dentro, não abrira os olhos nem por uma só vez . Até se adivi­nhava que, sempre acocorado, não tentara esticar um braço ou alguma das suas perninhas. Não, por esse lado não dava sinais de vida. E não fora o seu coração bater com umas pancadinhas suaves através da parede que o separava dos olhos da mãe, ela ter-se-ia julgado enganada por Deus e não faltaria senão um bocadinho para que fosse reclamar com ele, ainda que apenas em segredo.

 

— Que o Senhor me perdoe — dizia para si mesma — mas eu teria que o fazer se ele não estivesse vivo.

 

No entanto, ele estava bem vivo. É certo que se sentia um pouco incomodado por estar enrolado como um caracol, mas, no entanto, vivia-se bem ali, dormindo sem parar e sobretudo, cheio de confiança; com a confiança que dá o embalar-se den­tro daquele berço grande e seguro que era a sua mãe.

 

A mãe considerou a existência de Crispín como um consolo para si. Ainda não descansava das suas lágrimas; ainda havia longos períodos nos quais se agarrava à recordação do Crispín que lhe tinha morrido. Ainda, e isto era o pior para ela, não se atrevia a cantar uma canção que sabia para adormecer as crianças. Contudo, em certas ocasiões, ela cantava-lhe em voz baixa, como que para si mesma; mas, logo a seguir, via-se cer­cada por uma vontade louca de chorar e chorava como só a ausência «daquele» podia merecê-lo.

 

Depois, acariciava o seu ventre e pedia perdão ao seu filho.

 

Noutras ocasiões, esquecia-se por completo de que o seu filho existia. Qualquer coisa vinha pôr diante dos seus olhos a figura do Crispín mais velho. Então, semicerrava os olhos, sol­tava o pensamento e, desse modo, as horas passavam, correndo atrás das suas boas recordações. E era naqueles momentos sem consciência que Crispín batia com mais força no ventre dela e a acordava. E logo a ela ocorria que os batimentos do coração do seu filho não eram batimentos mas sim uma chamada de atenção que ele lhe fazia como se lhe ralhasse por ela o deixar sozinho e por se afastar tanto. E começava imediatamente a arranjar um monte de reprimendas que dava a si própria, não parando de o fazer até se sentir tranquila e sem medo.


Porque, isso sim, tinha um medo muito grande de que alguma coisa acontecesse ao seu filho enquanto ela passava o tempo, de sonho em sonho, com o outro. E nada mais lhe pas­sava pela cabeça senão desesperar-se por nada poder saber. «Talvez sofra», dizia a si mesma. «Talvez esteja a sufocar cá dentro, sem ar; ou talvez tenha medo da escuridão. Todas as crianças se assustam quando estão às escuras. Todas. E ele também. Porque é que não se assustaria ele? Ah, se estivesse cá fora eu saberia defendê-lo; ou, pelo menos, veria se a sua carinha ficava pálida ou se os seus olhos se entristeciam. Então, eu saberia o que fazer. Mas agora não; não onde ele está. Ali, não.» Era isto que dizia a si própria.


Crispín não tinha conhecimento disto. Só se mexia um bocadinho, ao sentir o vazio que os suspiros da mãe produziam num dos seus lados. Por outro lado, até pareciam acomodá-lo melhor, de modo a poder continuar a dormir, embalado por sua vez pelo som semelhante e repetido que o sangue, ali perto, fazia ao subir e descer, hora após hora.

 

Assim ia a coisa. Ela, longe dos seus maus bocados, afei­çoava-se aos dias que estavam para vir. E era perturbador vê-la fazer os gestos de alegria que todas as mães aprendem um bocadinho antes, para estarem prevenidas. E a maneira de cui­dar das suas mãos, alisando-as, com o propósito de não ferir muito aquela carne quase quebradiça que iria passear nua sobre os seus braços.

 

Assim ia a coisa.

 

A vida, porém, não é muito séria nas suas coisas. Seria de supor que ela já sabia isto pois vira-a brincar com o Crispín mais velho, escondendo-se dele, até isto ter como resultado que nenhum dos dois voltou a encontrar-se. Fora isto que aconte­cera. Mas, por outro lado, ela não imaginava a morte senão de uma forma tranquila: tal como um rio que vai crescendo, passo a passo, e vai empurrando as águas velhas e as cobre lenta­mente; mas sem se precipitar como faria um ribeiro novo. Era assim que ela imaginava a morte, porque a viu aproximar-se mais do que uma vez. Viu-a também em Crispín, seu marido, e embora ao princípio não lhe fosse possível reconhecê-la, ao fim e ao cabo, quando notou que tudo nele se decompunha, não duvidou de que fosse ela.

 

Deste modo, ela bem se apercebia do que a vida costuma fazer a uma pessoa, quando uma pessoa menos o espera.

 

Naquela manhã, ela quis ir ao cemitério. Como costumava sempre perguntar a Crispín, o não nascido, se estava de acordo, fê-lo: «Crispín - disse-lhe, - parece-te bem irmos? Prometo-te que não vou chorar. Só nos sentaremos um bocadinho a con­versar com o teu pai e depois voltamos; vai ser bom para ambos, queres? A seguir, tentando adivinhar em que lugar poderia aquele seu filho ter as mãozinhas: Vou levar-te pela mão durante o tempo todo». Foi isto que lhe disse.

 

Abriu a porta para sair; mas, logo a seguir, sentiu um vento frio, encostado ao chão, como se andasse a varrer as ruas. Então voltou, para ir buscar um casaco, pois o que aconteceria se ele sentisse frio? Procurou-o entre as roupas da cama; pro­curou-o no roupeiro; encontrou-o lá em cima, num cantinho. Mas o roupeiro era muito mais alto do que ela e teve de subir ao primeiro degrau, depois pôs o joelho no segundo e alcançou o casaco com a pontinha dos dedos. Nesse momento, pensou que Crispín talvez tivesse acordado com aquele esforço e des­ceu a toda a pressa...

 

Desceu muito fundo. Algo a empurrava. Debaixo dela, o chão estava longe, fora do seu alcance...

 

(in O galo de ouro e outros textos dispersos, Cavalo de Ferro)


 


 

 

.


 

 

.

.

publicado por Augusta Clara às 19:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links