Terça-feira, 8 de Março de 2011

Carnaval à moda da PortoLazer - por Carla Romualdo

De bom grado eu passaria a tarde de Carnaval em casa, esquecendo que é Carnaval, e aproveitando somente o dia livre, mas quando se tem filhos pequenos é preciso alinhar num quantos programas muito atractivos para eles e um tanto penosos para nós. Tinha-me constado que a autarquia da minha cidade preparara um programa de festejos pensado em particular para as crianças, e apesar da minha desconfiança em relação a tudo aquilo que vem com o selo “Porto Lazer”, lá fui eu, com a minha criança, disposta a dar o benefício da dúvida à autarquia de que eu desconfio sempre tanto.


Quando chegámos, debaixo de uma chuvinha miúda que conferia aos Aliados um tom pardacento condizente com a animação dos festejos, deparamo-nos com um palco onde uma cantora, sozinha com a sua viola, e sem telhado que a protegesse da chuva, se esforçava por animar os foliões. Era um concerto unplugged, e menos mal, porque a chuva não estava para parar e a coisa ainda podia acabar mal.


Uma senhora atirava serpentinas às outras, que não respondiam, ou fingiam não ver, como quem tenta soprar a centelha da alegria numa fogueira apagada. As crianças olhavam em silêncio para o palco, muito sérias, enquanto a cantora dedilhava a viola e introduzia a próxima canção.


“Sozinho na noite

Um barco ruma, para onde vai?

Uma luz no escuro brilha a direito

Ofusca as demais”

 

A Branca de Neve, o Zorro, o Homem-Aranha e uma pequenita sevilhana mantinham-se quietas, os olhinhos redondos fixos no palco. Que diabo, eu também não aprecio o samba brasileiro metido à pressão, mas desde quando é que o “Homem do Leme” é uma canção de Carnaval?

 

“No fundo do mar

Jazem os outros, os que lá ficaram.

Em dias cinzentos

Descanso eterno lá encontraram.”


Já nem as serpentinas voam na praça. As crianças murcham entre as pernas dos pais. Os adultos abrem o guarda-chuva e chegam ao pescoço as golas dos casacos. A praça afunda-se numa tristeza sem fim. É a História Trágico-Marítima a tolher-nos a alegria carnavalesca, é esta maldição de ser português. E chega o refrão, como uma bátega de água gelada que o mar nos cospe na cara:

 

“E uma vontade de rir nasce do fundo do ser.

E uma vontade de ir, correr o mundo e partir,

A vida é sempre a perder…”

 

É então que eu percebo a piada e desato à gargalhada, para espanto de quem está à minha volta. É uma partida, claro! Começar um concerto de Carnaval para crianças com o “Homem do Leme” só pode ser uma partida. E agora sim, virá o “Balancé, balancé” e o  “Fungagá da Bicharada” ou outra coisa semelhante.


 

Uns anémicos aplausos à cantora, que até tem uma voz bonita, e aguardemos pela próxima, esta sim é para valer. Reconheço os acordes mas não quero acreditar na minha memória auditiva até ela começar:

 

“Oh where oh where could my baby be

The Lord took her away from me

She’s gone to heaven so I’ve got to be good

So I can see my baby when I’ll leave this world”

 

(Qualquer coisa como:

Oh onde, oh onde estará o meu amor

O Senhor levou-a para longe de mim

Ela foi para o céu por isso eu tenho de ser bom

Para poder ver o meu amor quando abandonar este mundo)


Se isto não é espírito carnavalesco, que caia já um raio em cima do edifício da Câmara Municipal! Mas, já agora, que seja só durante a próxima reunião do executivo.


Os velhotes resmungam, sacodem os ombros e afastam-se. Faço a mesma coisa, desço os Aliados com a sensação de que estão a gozar com a minha cara, e vou ver a outra parte da festa. “Lambarices”, “Farturas” e um carrossel com uma longa fila de espera. Pão e circo, a preço de feira.

 

A autarquia anuncia um programa de festas, um Carnaval para crianças, mas o que faz é ceder o espaço aos vendedores de cachorros, farturas e algodão doce, e aos que põem o velho carrossel a rodar, cobrando seguramente as respectivas licenças para a ocupação desse espaço, e paga a uma cantora, que não sabe bem o significado nem de Carnaval nem do adjectivo “infantil”, que debite umas quantas canções em cima de um palco mal-amanhado.  Isto é cultura, isto é animação, isto é Porto Lazer.  


Damos meia-volta, atravessamos a rua para nos afastarmos dos Aliados, enquanto a cantora grita a plenos pulmões mais um refrão do Entrudo:

 

“In your head, in your head,

Zombie, zombie, zombie,

Hey, hey, hey, What’s in your head,

In your head,

Zombie, zombie, zombie?”


publicado por CRomualdo às 22:00

editado por Carlos Loures às 20:52
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3 comentários:
De Luis Moreira a 8 de Março de 2011
É carnaval ninguem leva a mal...
De Carlos Loures a 9 de Março de 2011
Bom texto, como sempre, Carla.

O declínio dos festejos de Carnaval é, quanto a mim, uma prova de inteligência colectiva. Descaracterizaram a nossa maneira de o festejar, importaram ritmos e modos que, transplantados para Portugal, são supinamente ridículos.

Salários congelados, desemprego... no Inverno do nosso descontentamento que sentido faz o Carnaval?
De adão cruz a 9 de Março de 2011
Vale o texto, Carla

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