Muito pouco estudada, a retórica da dedicatória feita a mão no próprio livro e destinada a um outro escritor, predominante um crítico, oferece as mais variadas possibilidades para atenta reflexão sob tantas perspectivas, em especial aquelas referentes à história da literatura e à crônica da vida literária. Mas, além dessas angulações mais tecnicamente ligadas a dois setores que se consideram sérios quando a retórica da dedicatória vem equacionada, outras talvez menos sérias podem oferecer elementos de enriquecimento para aqueles que participam ativamente a uma tal discussão. Para melhor exemplificar possíveis casos dessa natureza, passo a relatar sobre dois que me aconteceram e marcaram. Ambos se referem a roubos de livros dedicados ou furtos somente da direta dedicatória. Quanto ao primeiro caso, posso contar aqui o que me aconteceu em 1983, no Rio de Janeiro, e que se refere a um livro de poesia de Carlos Drummond de Andrade. Em síntese, estava sendo lançada naquele ano a magnífica edição da Obra Poética de Carlos Drummond de Andrade (19 livros de poesia), Nova Reunião, em 4 vols, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1983. Estando de férias na minha Cidade Maravilhosa, um certo dia vejo chegar-me um pacote que continha os vols. III e IV da dita obra. Os outros dois iniciais volumes jamais me chegaram às mãos. Quando de dois sábados seguintes partecipo da viva e tradicional reunião do “Sabadólio”, isto é, o encontro de escritores na casa no Leblon do bibliófilo Plínio Doyle, ex-diretor da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, ali encontrei o grande poeta e logo lhe contei o episódio. Carlos Drummond me confirmou de haver feito uma dedicatória dos quatro volumes na página de rosto do vol. I. Recordava-se igualmente que os livros eram remetidos aos destinatários, com endereço do remetente, em dois pacotes. Depois de trocarmos muitas idéias sobre o episódio, ficamos convencidos que o pacote com o vol. I fora identificado e retido furtivamente por um funcionário dos Correios cariocas, certamente colecionador de dedicatórias. Era mais uma demonstração de que a antiga instituição dos Correios do Rio de Janeiro, criada em 1817, se fizera uma verdadeira escola de amor pela literatura nacional...
O segundo episódio ocorre anos antes e em Veneza. Corria o ano de 1965. Eu, desde 1964, chegado a Veneza em novembro de 1962, com destinação às minhas definitivas (então eu ainda ignorava que assim teria sido no próximo futuro) atividades universitárias, no início de 1964 eu alugara um belo, ainda que pequeno, apartamente mobiliado, situado no popular bairro veneziano de Castelo. Em junho de 1965, devendo viajar em férias para o Rio, e era a primeira vez que o fazia desde o início da minha nova vida italiana, entrei em acordos com os proprietários do apartamento quanto a suspensão momentânea do meu aluguel. Já sabíamos que o mesmo interessava a um jovem casal de bolsistas americanos, apenas chegados diante das águas de Veneza. No acordo que fiz com os proprietários do apartamento constava que eu deixava ali também a minha biblioteca, sempre in progress. Viajei tranquilo e feliz, porém retornando três meses depois a Veneza abatido pela morte de meu pai, falecido diante do filho que ele esperava de ver pela última vez, como um dom da vida que se ia para sempre. Quando me reinstalo no meu apartamento de Castelo, naturalmente começo logo a retomar em mãos os meus livros. Foi quando, tomando por acaso a bela edição em papel biblia do Decamerão bocacciano de 1960 (Giovanni Boccaccio, Il Decamerone, ottava edizione integrale, pref. e glossario di Angelo Ottolini, Editore Ulrico Hoepli, Milano, 1960), presente do meu querido amigo Luís Fernando Nazareth, diplomata e poeta, então 2º. Secretário da Embaixada brasileira em Roma, mais tarde um dos mais brilhantes embaixadores do Brasil contemporâneo, me surpreendo ao ver que faltava a página de rosto do volume, justamente aquela com a bela e afetuosa dedicatória de meu amigo. Revelava-se assim aos meus olhos sempre curiosos a existência de novos colecionadores de dedicatórias, mas até mesmo daquelas endereçadas a outras pessoas... A diferença negativa existente entre os larápios estadudinenses e aquele dos Correios carioca, é que esse amava também os livros...
Tratando da retórica da dedicatória, além de qualquer outro elemento apenas de derivação, me vejo interessado a algumas questões teóricas, diversas das já lembradas referentes à história da literatura e à vida literária, mas já de direto interesse quanto a compreensão do problema da recepção que me conduzia desde o momento em que decidi a coligir, na minha biblioteca de média dimensão e que não supera os três mil volumes, os livros com dedicatórias a mim endereçadas especialmente. Assim agindo, logo constatei que o fazia tão somente em relação aos exemplos de remessas para mim de ofertas manualmente autografadas e que não trataria de outras formas de dedicatórias, a principal das quais consideramos aquela pela qual vem impressa na abertura do livro a dedicatória que o autor faz a um confrade a ser homenajeado. Entre os casos desse último tipo, referidas diretamente a mim, logo encontro entre os livros agora coligidos dois particulares exemplos, o de Eduardo Portella, no seu ensaio Cruz e Sousa, de 1961, em edição do Anuário da Literatura Brasileira, e aquele de Cassiano Ricardo que me dedica o seu livro mais especificamente vanguardista, “Babilônia“, parte de seu genial volume de poemas, Jeremias Sem-chorar, de 1964,em edição José Olympio.
Tratando de dedicatórias, logo verifico que entro especificamente no campo mais amplo da literatura. Tão amplo que contém até mesmo a auto-biografia e o livro de memórias. Fundindo as duas possíveis práticas literárias, por enquanto naturalmente em grandes sínteses, tenho desde logo uma grande surpresa: constato como as centenas de dedicatórias, que acabo de coligir, traduzam em amplas e variadas linhas a minha atividade literária começada nos primeiros anos da década de 1950, atividade sempre em continuação, e como tais dedicatórias me possam dar uma espécie mesma de minha dimensão de literato. Analisando essas centenas de comunicações excepcionais, posso percorrer, procurando não deixar-me tomar pela vaidade, a importância que a literatura sempre teve e tem para mim, bem como a minha manifestação tenha alcançado tão viva recepção entre os meus confrades, não só brasileiros, como veremos mais abaixo. Este capítulo de uma minha possível auto-biografia se me depara de surpreeendente força e dinamicidade. Com ele me reintegro num percurso vivo de interrelações que me fizeram crescer sempre; um crescimento que retomo mais de meu profundo subconsciente, do que habitualmente eu traduza em meus naturais gestos quotidianos.
E rememorando tantos e gratos eventos me se prospecta um livro de memórias que parte da Cidade Maravilhosa e chega até a minha sempre mágica vivência de Veneza.
O trabalho que começo com as presentes páginas, ainda que sintético, deverá tratar de tantas coisas e gentes. Isto porque, percorrendo em constantes surpresas, os meus livros, vejo que os testemunhos de apreço e amizade que me chegaram são tantos e de forte impacto. Eu sempre desejei, desde as minhas primeiras experiências literárias, unir poesia e crítica, ao mesmo tempo que me abria para a narrativa e para o ensaio. As presentes e outras dedicatórias que não aparecerão nessa oportunidade dão um testemunho surpreendente de como esse meu empenho atingia o meio externo. São tantos esses testemunhos que tenho a necessidade de dividir o meu atual trabalho de seleção e análise em várias partes. Esta primeira tem o sentido de uma introdução à questão e de uma derivada elaboração teórica. A ela seguirão outras, interessadas aos diversos gêneros aos quais os livros a mim dedicados pertencem. Começarei com os livros de poesia, seguindo aqueles outros de narrativa, ensaio, bem como outros gêneros literários. São dezenas e centenas esses livros de poesia com dedicatórias, com autores brasileiros, portugueses, italianos e, bela surpresa, também de outras origens: angolanos, espanhóis, galegos, catalanos. E, mais surpresa ainda, um húngaro e um esloveno. E por fim, um guatemalteco, o poeta Miguel Angel Astúrias, Prêmio Nobel para a literatura, em 1967, conhecido na sua viagem italiana a convite da Universidade Ca’ Foscari, de Veneza.
Mas, igualmente para a narrativa, ensaio e outros gêneros, a história será quase a mesma...
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